INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

     OK
alterar meus dados         
ASSOCIE-SE

Política de Drogas



Coordenador:
Luís Carlos Valois e Silvio Almeida

Política de Drogas, Cultura do controle e Propostas Alternativas

Não há mais como se negar que a proibição das drogas levou a resultados contraditórios aos fins que declara perseguir e gerou conseqüências adicionais tão graves ou mais graves que esses resultados. Em quase um século de proibição não se diminuiu os riscos à saúde dos usuários, pelo contrário, esses se agravaram.

Considera-se, com base em dados estatísticos das Nações Unidas, que a política proibicionista, além de não ter conseguido “proteger” a saúde pública, serviu de fator agravante na panepidemia da AIDS, diante do alto número de usuários de drogas injetáveis que foram contaminados em decorrência do compartilhamento de seringas, por fazerem uso da droga na clandestinidade. Esse “fracasso” ocorreu tanto nos países ricos, que possuem toda a estrutura necessária, inclusive financeira, tanto de repressão quanto de saúde, quanto nos menos desenvolvidos, nos quais as conseqüências danosas foram ainda mais graves.

Os efeitos perversos do proibicionismo são potencializados nos países marcados pela desigualdade e pela exclusão social, como é o caso do Brasil e dos demais países em desenvolvimento, muito embora sejam também detectados nos países desenvolvidos.

Porém, esses efeitos não devem ser vistos como um descuido, nem como decorrentes da má operação do sistema penal, pois ao contrário, se deve considerar que: “a seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais”[1].

Um dos maiores especialistas franceses em direito da droga afirma que, na França, falar sobre os efeitos perversos da proibição foi durante muito tempo um assunto tabu, mas que a verdade é que a proibição não funciona[2]. A base para esta afirmação está nos resultados desastrosos da política oficial proibicionista que, no plano econômico, determinou a criação de um monopólio criminal de distribuição de estupefacientes de uso recreativo, que garante às organizações, cartéis e máfias lucros exorbitantes. Considera Caballero que, por mais paradoxal que possa parecer, a proibição é uma grande aliada do tráfico, e que a economia da droga é dinamizada pela proibição.

Alan Labrousse[3] acrescenta ainda outro efeito perverso da proibição, qual seja, a circulação de capital ilícito, pois o enriquecimento dos traficantes gera a necessidade da lavagem de dinheiro oriundo do comércio ilícito de entorpecentes, que contamina o sistema bancário e favorece a corrupção das elites.

A corrupção constitui outro efeito ligado ao modelo proibicionista, que se torna ainda mais marcante nos estados de maior fragilidade institucional, onde chega a alcançar o próprio poder político, como ocorre em países verdadeiramente “gangrenados” pelo tráfico de drogas, que Labrousse exemplifica como sendo a Birmânia, o Paraguai, e o Suriname, onde os recursos permitiriam que os “narco-governantes” permaneçam no poder[4].

Outro relevante efeito perverso do modelo proibicionista é a violação dos direitos humanos e a redução de direitos e garantias individuais que decorrem das exceções admitidas e das penas exorbitantes previstas nas leis de drogas. Isso ocorre não só nos países ocidentais ditos democráticos, mas especialmente naqueles sem tradição democrática (em sua maioria, ditaduras); como China, Vietnam, Irã, Malásia, Líbia, Arábia Saudita e Indonésia, nos quais a posse de algumas dezenas de gramas de heroína ou cocaína, e de três a quatro quilos de ópio ou de haxixe pode levar à aplicação da pena de morte.

Nesses países, assim como nos Estados Unidos, o proibicionismo é ainda mais reforçado. Considera-se menos grave matar duas ou três pessoas do que ser pego transportando cem gramas de drogas “pesadas”. No entanto, essa aplicação de penas desproporcionais não leva a qualquer reação das Nações Unidas, ou de seus órgãos de controle de drogas, talvez por se considerar que a crítica poderia desencorajar tais países em sua “guerra contra as drogas”.

Nesse sentido, a prisão, que havia sido apontada por Foucault[5] e Garland[6] como exemplo de punição da modernidade, se manteve como protagonista das estratégias punitivas no século XXI, período da chamada pós-modernidade, no sentido de Boaventura de Souza Santos[7], diante do endurecimento das penas, e do alcance do direito penal simbólico como discurso ideológico autoritário que vem sendo construído desde o final do século passado, ao mesmo tempo em que o direito penal da droga ganhou importância e destaque, não só em termos de quantidade de leis repressivas editadas, como pelo incremento das sanções e conseqüente aumento da representatividade nas estatísticas penitenciárias de condenados por delitos ligados a tóxicos.

No plano social, a proibição da droga conduz a um aumento considerável da criminalidade e da delinqüência, pois a dependência econômica de alguns viciados os leva a cometer delitos contra pessoas e bens para sustentar o seu vício, e satisfazer suas necessidades, além da utilização da prostituição, ou da própria revenda de drogas como meio de subsistência.

No caso do Brasil, em especial após a lei dos crimes hediondos, a opção proibicionista é clara e o impacto social é especialmente dramático. Os pequenos traficantes ao saírem da prisão estão mais integrados nas redes criminosas, e o índice de reincidência aumenta proporcionalmente à ausência de investimentos na área social. A segurança pública sofre também as conseqüências de uma política criminal com derramamento de sangue, que vem aumentando o poderio financeiro e bélico dos traficantes sem que o Estado, corrupto e desorganizado, consiga resolver o problema da saúde pública e da violência, ainda que tenham sido reduzidas, de forma reflexa, as sanções para o usuário.

A única contribuição positiva do modelo proibicionista talvez seja a comprovação empírica de que não há como se inibir o uso e a venda de drogas mediante o controle penal, quando a sociedade não quer e não aceita esse controle; além de ter ensinado que um modelo uniforme de controle não tem condições de prosperar, diante da diversidade das características culturais, econômicas e sociais dos diversos países.

No entanto, ideólogos e defensores do proibicionismo preferem ignorar o que já foi dito pelos especialistas: que muitas pessoas experimentam substâncias proibidas e fazem usos diferenciados, mas a maior parte faz uso ocasional, na maioria das vezes sem conseqüências danosas, por mais “imoral” que essa conduta possa parecer para alguns. Uma pequena parte destes usuários ocasionais passa para padrões de risco e alguns deles vêm a se tornar dependentes, mas há substâncias e padrões de consumo que não podem ser considerados prejudiciais e que não necessariamente levam o usuário à dependência, como por exemplo, grande maioria dos usuários tanto de álcool como de maconha são unicamente usuários ocasionais, que administram o consumo desses produtos sem conseqüências danosas e sem riscos para a saúde[8].

Além de não se apresentar apropriado à solução de um problema de saúde pública, nem ter fundamentos sólidos, mas emocionais e simbólicos, o proibicionismo causa impactos negativos no tecido social. Na ótica dos países em desenvolvimento em geral, e especialmente no Brasil os impactos sociais são muito graves, podendo ser elencados da seguinte forma:

Na saúde pública: i) ausência de controle e adulteração das substâncias consumidas o que gera riscos graves à saúde dos consumidores; ii) o alto nível de contágio do vírus HIV e outras doenças entre usuários de drogas injetáveis na marginalidade; iii) a dificuldade de implementação de políticas de redução de danos aos dependentes inseridos na ilegalidade e oposição do proibicionismo aos modelos mais atuais de ajuda ao viciado; iv) o contínuo enfrentamento do sistema penal pelos adictos que fazem uso das substâncias, mesmo à margem da lei; v) aumento no número de mortes em decorrência das disputas e da repressão ao tráfico de drogas[9].

No sistema jurídico-constitucional citam-se: vi) o reforço excessivo do sistema policial em detrimento do sistema judicial; vii) a utilização de meios penais e processuais extraordinários, violadores de princípios e garantias constitucionais; viii) as medidas de exceção destinadas ao grande tráfico são aplicadas aos pequenos e médios traficante-viciados, que lotam as penitenciárias; ix) desumanização das penas e do sistema penitenciário; x) superlotação carcerária.

Na ótica sócio-econômica podem ser ainda adicionados: xi) aumento da vigilância, controle e violência imposta aos mais desfavorecidas, que são suspeitos de tráfico, até prova em contrário, o que leva à discriminação; xii) favorecimento do envolvimento de jovens com o crime, desagregação familiar; xiii) incremento do tráfico de armas; xiv) incremento das possibilidades de lavagem de dinheiro; xv) a alta dos preços derivada da ilegalidade torna cada vez mais poderosas as organizações de traficantes; xvi) aumento da corrupção nos poderes públicos e na polícia, em especial nos países em desenvolvimento; xvii) aumento da violência e do número de homicídios nos grandes centros urbanos.

Mesmo diante desse triste quadro, o proibicionismo ainda se mantém, como um ato de poder baseado em um falso discurso. Qual seria então a razão de sua permanência?

A única resposta que pode ser dada é a inserção da política de drogas no projeto punitivo da pós-modernidade, ou da modernidade tardia, analisada por David Garland como o momento atual da “cultura do controle”, caracterizada por uma nova cultura de controles e de exclusões, dirigida contra os grupos mais afetados pela dinâmica das mudanças sociais e econômicas: os pobres urbanos, os dependentes da previdência social e as minorias[10].

Percebe-se que os países avançados, na pós-modernidade, por meio do fortalecimento do Estado penal, estão se aproximando dos países menos desenvolvidos, como o Brasil, que sempre fizeram da prisão a forma mais utilizada de controle social sobre as populações desfavorecidas.

O estudo do controle penal sobre a droga mostrou a confluência da política criminal de droga com a política de encarceramento em massa das minorias étnicas nos EUA, e da manutenção da estrutura penitenciária brasileira, que passa a ter uma maior representação relativa de presos por tráfico, em comparação à tradicional presença de condenados por crimes contra o patrimônio. Na Europa, que sempre manteve uma taxa de encarceramento baixa, em decorrência do endurecimento da política de drogas, o crescimento do número de presos também vem ocorrendo.

Diante deste quadro, quais seriam então as perspectivas e alternativas possíveis de serem implementadas?

O final do século XX e início do XXI, marca um momento em que o proibicionismo, apesar de questionado por seu fracasso, ainda se mantém forte graças à postura norte-americana, que continua defendendo sua estratégia punitiva e militarista, e evitando políticas de redução de danos.

Por outro lado, o continente europeu vem se destacando na implementação de estratégias alternativas ao proibicionismo, desde a despenalização da posse e do uso, prevista na ampla maioria dos países europeus, passando pela descriminalização levada a cabo por Portugal, Itália e Espanha, até a experiência holandesa que despenalizou, além da posse de drogas, o cultivo e o pequeno comércio de cannabis. Estas são estratégias de política criminal a serem observadas e analisadas, pois representam uma oposição moderada ao proibicionismo, ainda que mantendo suas características principais, especialmente com relação ao tráfico, objeto de extrema severidade, inclusive na Europa.

Nos EUA, contudo, mantém-se a estratégia repressiva, com as prisões superlotadas gerando negócios de bilhões de dólares em solo americano enquanto as cadeias brasileiras estão superlotadas, com presos em condições desumanas e sem qualquer perspectiva. Mesmo a Europa, tradicionalmente menos repressiva, viu os números de presos aumentarem, pelo reforço da severidade penal, inclusive com relação ao tráfico de drogas.

Enquanto isso a política brasileira com relação ao usuário já mudou, notadamente com a edição da Lei n. 11.343/06, pelo menos com relação àquele que não precisa traficar para consumir sua droga. A estratégia penal foi fracionada: para o viciado, o modelo descarcerizador, influenciado pelo discurso médico-sanitário; ao traficante, a prisão, justificada pelo discurso político-jurídico simbólico do proibicionismo. Além de aumentar penas, aumentou-se o seu tempo de cumprimento em prisão fechada para traficantes.

Ainda não se sabe como será o reflexo da nova lei de drogas, que aumentou ainda mais as penas para os traficantes, apesar de prever causas de diminuição para acusados primários, sem envolvimento com o “crime organizado”, bem como diante da nova disciplina dos crimes hediondos, com a edição da recente Lei n. 11.464/07, mas o fato é que o modelo proibicionista não é questionado, mas apenas adaptado aos novos tempos.

Seguindo a conclusão de Luciana Boiteux em sua tese de doutorado[11], não se tem qualquer dúvida de que o modelo proibicionista, além de não se mostrar apropriado para proteger a saúde pública, causou impactos tão negativos que o tornam hoje racionalmente insustentável. Tanto é que os países europeus cada vez mais estão se posicionando contrariamente às estratégias punitivas norte-americanas, enquanto que os EUA vêm sendo acompanhados na sua cruzada moral contra a droga por países de tradições antidemocráticas.

A dúvida que resta é a seguinte: qual modelo seria adequado para substituir o proibicionismo? São muitas dúvidas, mas elas precisam ser enfrentadas e resolvidas, sob pena de se manter uma política irracional por inércia e falta de propostas alternativas concretas.

Do ponto de vista teórico, não se tem dúvidas de que o modelo alternativo mais humano, racional, ponderado e adequado é o da legalização controlada, próximo da formula apresentada por Francis Cabalero e Yann Bisiou[12], muito embora se tenha consciência de eventuais dificuldades práticas de implementação de uma proposta como essa.

Assim, considera-se que a legalização controlada, como sustentada por Francis Caballero e defendida em termos gerais por Nils Christie[13] não é uma utopia, e que tem sim condições de ser pensada como uma política a ser aplicada a longo prazo, por diversas razões, mas especialmente pela sua visão pragmática, humana e coerente com uma perspectiva garantista, que limita o direito penal a uma intervenção mínima.

Longe de ser uma utopia, há que se pensar em modelos que possam ser concretamente aplicados, tendo em vista que a superação do modelo proibicionista dependerá da aplicabilidade de possíveis alternativas.

Além disso, alguns indicativos de mudança do modelo proibicionista têm sido identificados, razão pela qual ousaremos tecer aqui algumas previsões otimistas quanto à mudança de rumos do controle internacional de drogas.

Em primeiro lugar, entende-se que talvez o próprio funcionamento do sistema capitalista atual possa contribuir para essa mudança pela característica especial da mercadoria droga: seu valor econômico. Na verdade, já existe uma grande movimentação mundial em favor da legalização de drogas, notadamente da cannabis, encabeçadas por ONG’s que defendem o fim da guerra às drogas. Algumas dessas organizações são financiadas por grandes empresas, que já notaram o potencial dos lucros de um mercado lícito de drogas. Caso isso aconteça, é importante elaborar-se um modelo de legalização controlada capaz de proteger o consumidor, além de se garantir o necessário investimento em saúde pública e prevenção.

As notícias de pesquisas sobre os efeitos medicinais da cannabis e o movimento claro de despenalização e descriminalização das drogas leves na Europa constituem outros indicativos de mudanças, muito embora ainda mantenham o proibicionismo em sua essência.

Além disso, o aumento da importância estratégica da Europa na política internacional, com o alargamento de suas fronteiras, também é um ponto a ser considerado. Afinal, a política européia moderada tem como carro-chefe o sucesso das políticas de redução de danos, que em breve, espera-se, conseguirão ultrapassar as ortodoxas barreiras proibicionistas.

É possível se prever uma possível mudança de paradigma da política internacional de drogas, ainda que não radical, para 2009, quando a Comissão de Entorpecentes da ONU se reunirá para discutir o problema da droga, ocasião na qual poderá ser reconhecido o modelo de redução de danos de forma definitiva pela comunidade internacional.

Diante dessas evidências, mas sem querer ser demasiadamente otimista, entende-se que a posição dos Estados Unidos contrária à redução de danos tem chances de se tornar minoritária, e tenderá ao isolamento, como já vem ocorrendo desde 1998, quando foi sentida a pressão dos órgãos de saúde pública da ONU e dos países europeus.

Ao mesmo tempo, nota-se o fortalecimento de novas lideranças na América Latina - não alinhadas com Washington -, e com forte apoio popular para resistir às pressões norte-americanas. O exemplo da Bolívia é emblemático, com eleição do “cocalero” Evo Morales à Presidência daquele país andino, com novas propostas, sendo ele um sindicalista conhecedor da causa das comunidades andinas vítimas da guerra às drogas, o que pode também contribuir para uma maior oposição ao proibicionismo na vertente norte-americana.

Além disso, em termos geopolíticos, o direcionamento das atenções da política externa dos EUA para o Oriente Médio, a invasão do Iraque e a guerra ao terrorismo fizeram com que aquele país se distanciasse da América Latina e da war on drugs, tendo o narcotraficante latino deixado de ser o inimigo número um dos norte-americanos. Além disso, com a recente eleição de Barak Obama para a Presidência dos EUA, este talvez possa ser um momento oportuno para se pressionar por mudanças, uma vez que, em campanha, o então candidato se posicionou favoravelmente à política de redução de danos. E, afinal, não há dinheiro suficiente, nem a opinião pública consegue acompanhar mais de duas guerras ao mesmo tempo.

Reconhece-se, por outro lado, que não há a menor condição de um país conseguir individualmente modificar o sistema proibicionista atualmente em vigor, nem se deve subestimar a força da cruzada moralista norte-americana.

Porém, uma eventual mudança de rumos no palco das Nações Unidas, e o reconhecimento oficial, ainda que parcial, do fracasso do modelo atual, pode levar a uma flexibilização que libere os países para refletirem sobre uma política de drogas mais adequada à sua realidade. A perspectiva otimista, no entanto, não deve retirar a visão pragmática e objetiva que são essenciais para se refletir sobre o problema da droga.

Essas são conjunturas ainda muito distantes, meras especulações. O mais importante é reconhecer a situação atual do Brasil como insustentável, que aponta para o agravamento dos efeitos perversos do modelo proibicionista nos países em desenvolvimento, caso insistam em manter a política atual.

O impacto do proibicionismo sobre o sistema penal e a sociedade foi avaliado pelo confronto da realidade social com a atuação do controle penal em relação aos fins declarados, que fundamentam a proibição – a proteção à saúde pública – e às metas propostas – ideal de abstinência –, bem como aos meios utilizados para alcançar esse fim: o direito penal.

Apesar de as investigações no campo da droga ainda estarem longe de serem conclusivas quanto aos riscos e benefícios das substâncias hoje proibidas, se constatou o fracasso absoluto desse modelo de controle penal.

Sob o ponto de vista dos países desenvolvidos, o saldo de quase cem anos de proibicionismo pode ser resumido da seguinte forma: a oferta de drogas não foi reduzida, o consumo aumentou, a situação da saúde pública agravou-se, o sistema prisional está superlotado e próximo à falência, aumentou a corrupção, e os grandes traficantes continuam soltos; os lucros nunca foram tão altos, e a circulação de dinheiro sujo não diminuiu; novas drogas estão disponíveis nos mercados, as drogas naturais foram geneticamente modificadas e estão cada vez mais potentes.

No Brasil, em especial, a espiral de crescimento da violência está intimamente relacionada com o aumento da repressão ao tráfico de drogas, e à alta lucratividade do comércio ilícito. Nos países em desenvolvimento, onde o mercado ilícito é marcado pela violência e pela exclusão social em níveis alarmantes, os efeitos perversos são ainda mais visíveis: as prisões estão cheias de dependentes de drogas que se transformam em criminosos para sustentar seu vício, e a violência na resolução dos conflitos ligados ao tráfico é generalizada.

A conclusão a que se chegou é no sentido de que o proibicionismo acarreta maiores danos à sociedade e à saúde pública do que protege esses mesmos fins, razão pela qual defende-se deva ser substituído por um modelo alternativo mais tolerante e humanitário

A proposta de legalização controlada defendida se baseia no ideal de moderação como meta e tem por objetivo controlar o abuso das drogas, ao propor a legalização do comércio e da venda de parte das substâncias hoje ilícitas mediante o controle sanitário pelo Estado, servindo os tributos decorrentes da venda dos produtos para financiar a prevenção e a informação aos usuários, e os custos das estratégias de redução de danos como forma de reduzir os riscos do abuso de drogas.

Por mais que a proposta de legalização controlada ainda tenha que ser discutida, aperfeiçoada e trabalhada quanto à forma concreta de sua aplicação, e das dificuldades de qualquer mudança, pelas sensíveis questões que o tema envolve, não há dúvidas de que esta pode ser a melhor das opções, ainda que precise ser adaptada à realidade sócio-econômica local.

O tema da superação do modelo proibicionista ainda continuará a despertar controvérsias a nível internacional, pois pressupõe a modificação das convenções internacionais, e certamente terá a oposição dos Estados Unidos, tornando essa tarefa ainda mais árdua. Apesar de tudo espera-se que o fortalecimento da União Européia na esfera internacional possibilite ao menos uma atenuação do modelo atual, a médio prazo e sua superação no longo prazo. Espera-se também que os resultados (ou fracassos) da guerra à droga deflagrada pelo proibicionismo possam ser avaliados, bem como que se reconheça oficialmente a política de redução de danos pelo CND, já em 2009.

Muito embora nenhum sistema de controle de drogas esteja imune a críticas, o mais adequado deverá adotar o respeito a princípios e garantias individuais como base, e ter a melhoria do bem-estar dos indivíduos como meta, assim como sustentar um enfoque preventivo preponderante. A legalização controlada parece ter as melhores condições de sucesso, na superação da perspectiva proibicionista-militarista vigente.

Enquanto não é implementada a alternativa mais ampla, espera-se que a política de drogas brasileira possa ser repensada, levando-se em conta a necessidade de equilíbrio e de redução da violência, o que somente ocorrerá quando estratégias autoritárias forem abandonadas em prol de medidas mais humanas, democráticas, garantistas e pragmáticas.

Por mais que se acredite na utopia abolicionista de Hulsman da superação do sistema penal, enquanto isso não ocorre, é preciso que se consiga pelo menos reduzir seus efeitos perversos, limitando o alcance do controle penal e desmascarando o efeito simbólico que vem sendo-lhe atribuído de forma equivocada, buscando tornar menos desumanas as sanções, a curto e médio prazo, como uma estratégia alternativa intermediária viável e pragmática.

Com o objetivo de pavimentar o caminho, é hora de começar a trabalhar por uma mudança radical do controle penal, e de lutar por modificações imediatas da lei brasileira de drogas, com o objetivo de reduzir o impacto negativo do proibicionismo.

Por mais que se considere como viável a futura implementação do modelo de legalização controlada como meta a ser buscada, esta deve ser vista como uma política a longo prazo, e precisará ainda ser adaptada à realidade nacional, em especial pelos custos da burocracia. Porém, os danos sociais causados pelo modelo proibicionista são muito extensos, sendo essencial que se reformule o quanto antes a política criminal de drogas adotada pelo Brasil.

A atual Lei n. 11.343/06 apresenta características muito semelhantes à anterior lei de tóxicos, e peca por manter o modelo proibicionista, ainda que moderado pela descarcerização da posse de drogas e legitimação das estratégias de redução de danos. Além disso, mantém o tráfico como crime equiparado a hediondo apenado somente com longas penas de prisão.

Desta forma, o que se está propondo nesse momento são medidas intermediárias entre o proibicionismo e a legalização, com forte influência das estratégias de redução de danos, sob o marco teórico do Garantismo de Ferrajoli. As alterações sugeridas situam-se ainda dentro do modelo de controle penal de drogas, mas procuram reduzir o alcance da esfera repressiva, na linha do direito penal mínimo, sob a ótica jurídico-constitucional.

Para serem implementadas, algumas delas nem precisariam de alteração legislativa, pois constiuem propostas de adequação constitucional da lei de drogas. Portanto, seria recomendável uma maior conscientização dos operadores do direito para deixarem de atuar na prática como meros reprodutores de uma política de drogas irracional e violenta, além de inconstitucional. A nova Lei de Drogas já nos fornece novos paradigmas constitucionais que devem ser adotados pelos operadores do Direito Penal nas exegeses da casuística e na solução de eventuais conflitos. Além disso, algumas outras mudanças poderiam ser regulamentadas pelo CONAD e/ou Ministério da Saúde, dentre outros órgãos governamentais.

A estratégia que se apresenta é, aliás, mais fácil do que convencer os congressistas, em sua maioria conservadores, a alterarem uma orientação político-criminal repressiva, seria interpretar a lei de drogas atual de acordo com princípios garantistas, e desconsiderar a jurisprudência repressiva dos tribunais, o que pode ser feito por meio da conscientização dos operadores do direito.

Assim, considerando-se a necessidade de dar uma resposta mais rápida até que se consiga implementar um modelo de controle de drogas fora do direito penal, podem ser sugeridas as seguintes medidas:

Propostas de Redução de Danos

  1. Reconhecimento dos direitos humanos dos usuários de drogas. Aplicação e fortalecimento de medidas de redução de danos e campanhas informativas de prevenção;
  2. Previsão legal e regulamentação de tratamentos de substituição; salas de consumo (consumption rooms); usos terapêuticos de psicotrópicos, dentre outros.
  3. Oferecimento de tratamento voluntário de dependência de drogas na rede pública de saúde;

Propostas de Alteração da Lei de Drogas

  1. Descriminalização do uso e da posse não problemáticos[14] de pequenas quantidades de todas as substâncias hoje ilícitas, especialmente da cannabis.
  2. Proposta de administrativização do controle de drogas, segundo o modelo português.
  3. Determinação legal (ou administrativa) de quantidades máximas permitidas para a posse de cada uma das substâncias proibidas, levando em consideração a natureza da substância e sua potencialidade lesiva à saúde individual.

Na perspectiva de descriminalização do uso e da posse de drogas como etapa intermediária, é necessário que se limite a atividade repressiva, dando condições ao usuário de se prevenir. Tal determinação de quantidade, no entanto, não seria vinculante para o juiz, que poderia considerar ainda outras circunstâncias em benefício do réu, mas não em seu desfavor.

Como inspiração, indica-se os exemplos de alguns países europeus. Na Holanda, não há persecução penal pela posse de até 5g de cannabis e 0,2g de outras drogas, enquanto que entre 5 e 30g de maconha a punição é apenas multa; na Áustria a “pequena quantidade é limitada a 2g. Portugal, por outro lado, adota como critério a quantidade individual de 10 dias (dose diária admitida de 2,5g de maconha, 0,5g de haxixe e 0,5g de THC). Também definem a quantidade de uso: Finlândia, Bélgica, República Tcheca, Dinamarca, Alemanha, Espanha[15].

  1. Classificação das substâncias em drogas “leves” e “pesadas”, e diferenciação das penas do delito de tráfico.

Deve-se estabelecer as diferenças de acordo com considerações técnicas e estudos sobre a danosidade do produto, como ocorre na maioria dos países Europeus estudados: Austria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Holanda, Portugal e Reino Unido.

Para garantir um mínimo de proporcionalidade, há que se diferenciar a quantidade de droga apreendida, e o efetivo grau de participação do acusado no comércio considerado ilícito. Neste sentido, a Alemanha prevê o critério de “quantidade insignificante” para determinar a resposta penal nos delitos de tráfico de drogas[16]. De acordo com certos estudos, os pequenos traficantes seriam os varejistas que trabalham com quantidades inferiores a 10 quilos, autônomos ou gerentes de “boca”[17], que poderiam ter sua escala penal reduzida.

Da mesma forma, o traficante-dependente, que se diferencia do traficante-comerciante por praticar o comércio com o único objetivo de sustentar o seu vício, deve ser tratado de forma mais branda, o que é admitido por algumas legislações européias, como a austríaca. Independentemente das possibilidade de exclusão ou redução de pena na forma mantida pela nova lei de drogas, sugere-se a previsão de escala penal inferior para o pequeno traficante dependente, admitindo-se, ainda, a substituição por penas alternativas, para evitar a marginalização deste tipo de usuário.

  1. Criação de um tipo privilegiado de tráfico para traficante que atua sem violência, como um tipo intermediário, com a expressa previsão de penas alternativas na forma geral prevista no Código penal.

É essencial que se faça a diferenciação entre aqueles que praticam o tráfico munidos de armamentos e os pequenos traficantes que atuam sem violência ou uso de armas, os quais devem receber uma pena mais branda, evitando-se seu encarceramento.

  1. Previsão legal de penas alternativas para os delitos de tráfico, por medidas que incluam a presença em cursos de qualificação profissional, e a facilitação da busca por emprego, de forma a afastá-la do comércio ilícito;

Tais medidas, ainda que limitadas, já são bastante polêmicas, pelo fato de se oporem ao paradigma atual. Constituem, porém, o mínimo necessário para o inicio de para um processo de adequação das leis de drogas a limitações constitucionais e do reconhecimento da supremacia dos tratados internacionais de direitos humanos sobre as convenções antidrogas do século passado.

Estas propostas não são suficientes senão para reduzir um pouco os danos sociais – notadamente a superlotação carcerária -, e reforçar a idéia de liberdade e tolerância, além da razoabilidade e proporcionalidade violadas pelo modelo proibicionista, que precisa ser superado, por absoluta desumanidade, ineficiência na proteção da saúde individual e coletiva e iniqüidade, além de irracionalidade e violação de direitos fundamentais.

[1] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 15.

[2]La prohibition ça ne marche pas”. CABALLERO, Francis; BISIOU, Yann. Droit de la drogue. Paris: Dalloz, 2000, p. 103.

[3] LABROUSSE, Alain. For The Antiprohibitionist Reform Of The Un Conventions On Drugs"

Disponível em : http://servizi.radicalparty.org/documents/lia_paa_conference/
index.php?func=detail&par=418.

[4] Idem.

[5] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 18.ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1998

[6] GARLAND, David, Punishment and modern society: a study in social theory. Chicago: University of Chicago Press, 1990.

[7] SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 10 ed. Porto: Afrontamento, 1998.

[8] SILVEIRA, Dartiu Xavier; MOREIRA, Fernanda Gonçalves. Reflexões preliminares sobre a questão das substâncias psicoativas. In: ______ . Panorama atual de drogas e dependência. São Paulo, Atheneu, 2006, p. 4-6.

[9] Aqui se mencionam os pontos indicados por DE LA CUESTA, Jose Luis. Legislación europea occidental sobre drogas. Doctrina Penal: teoria y práctica en las Ciencias penales, p. 453-454, com algumas outras inclusões que se entendeu pertinente.

[10] GARLAND, David. The culture of control: crime and social order in contemporary society. Oxford: University Press, 2001, p. 195.

[11] BOITEUX, Luciana; ou RODRIGUES, Luciana Boiteux de Figueiredo. O controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo sobre o sistema penal e a sociedade. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito da USP, 2006.

[12] CABALLERO, Francis; BISIOU, Yann. Droit de la drogue. Paris: Dalloz, 2000.

[13] CHRISTIE, Nils. Reflections on drugs. In: http://www.drugtext.org/library/articles/christie1.html

[14] O “uso não problemático” refere-se ao uso por maiores de idade, em locais privados, sem causar distúrbios à ordem pública, sem atingir interesse de terceiros e sem o envolvimento de menores, além de excluir as hipóteses de posse de drogas na prisão e em estabelecimentos educacionais, prédios públicos ou locais freqüentados por menores. É previsto em várias legislações européias, como a belga e a espanhola.