Carlos Alberto Pires Mendes
Andréa Cristina D'Angelo, Fernanda Velloso Teixeira, Leopoldo Stefanno Leone Louveira e Paulo
A internacionalização dos direitos humanos pode ser localizada a partir da segunda metade do século XIX, com manifestação no terreno do direito humanitário, iniciando-se com a luta contra a escravidão e com a regulação dos direitos do trabalhador assalariado.
Ao início do século XXI, ainda não nos livramos nem do trabalho escravo — é conferir os jornais e a forma de exploração desse tipo de trabalho no campo, com trabalhadores rurais e mesmo na cidade, com imigrantes ilegais, e tampouco o trabalhador assalariado tem seus direitos respeitados — que o diga o dia-a-dia da tão atarefada Justiça do Trabalho.
É cediço que os Direitos Humanos nunca fizeram parte de nosso patrimônio cultural. As duas condições históricas para a realização concreta dos Direitos Humanos confluem na vida comunal européia, a partir do século XII: a abolição da sociedade de estamentos e o fundamento comunitário do direito. Ora, nenhuma dessas condições históricas existiu na América Latina. Desde o início de nossa colonização, as duas grandes características foram: a escravidão e o oficialismo.
As pistas de superação desse impasse cultural devem ser encontradas em políticas que privilegiem a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos e reconheçam seu caráter internacional. O nascimento da Organização das Nações Unidas, em 1946, depois dos horrores da 2ª Guerra Mundial, logo seguida da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e da Universal dos Direitos Humanos, em 1948, prova a afirmação.
À fase das declarações seguiu-se a etapa de reforçar os mecanismos internacionais de proteção dos direitos — tanto no âmbito universal quanto no regional — de estabelecer e implementar os pactos internacionais. Criaram-se instâncias de caráter quase judicial, como o Comitê de Defesa dos Direitos Humanos e mesmo Tribunais Internacionais, como a Corte Européia, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, entre outros. Admitiu-se a competência de vários desses organismos para abrigar disputas entre o indivíduo e seu próprio país de origem, sempre que esgotada a jurisdição interna e não utilizada outra via internacional. Outros mecanismos de proteção e promoção dos direitos humanos foram criados, sempre por incentivo das inúmeras situações de violação que esses direitos e seus defensores enfrentaram, mundo afora, na América Latina, e no Brasil inclusive. Foram gerados outros mecanismos muito criativos de proteção, como visitas e missões a países, nomeação de relatores especiais por países ou por temas, medidas que salvaram vidas e protegeram pessoas.
Algumas convenções internacionais, como a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, instituíram a jurisdição universal, habilitando outras jurisdições que não apenas a do país do torturador, para processá-lo e julgá-lo por crimes ainda que não ali cometidos, presentes determinadas condições.
A jurisdição universal é um claro exemplo de superação dos parâmetros conservadores baseados na "soberania nacional". Entende-se, entretanto, que esta nunca pode ser utilizada como pretexto para impedir o acionamento desses mecanismos de defesa, salvo, é claro, em épocas de ditadura.
O Brasil sempre participou ativamente desse cenário, desde a própria fundação da ONU. Mulheres e homens brasileiros integraram diversos desses órgãos de proteção, inclusive compõem cortes internacionais, são relatores especiais ou tiveram outros papéis relevantes na redação de instrumentos ou declarações internacionais. Um brasileiro, Sérgio Vieira de Mello, cuja lúcida e intensa trajetória internacional, em favor dos direitos humanos, ainda é viva em nossa memória, chegou a exercer o posto de Alto Comissário da ONU para Direitos Humanos.
Tudo isto se disse para qualificar como pequena, própria de concepções autoritárias e oitocentista a resistência esboçada por alguns setores em relação à presença no Brasil do advogado argentino Leandro Despouy, relator especial da ONU para questões relacionadas à independência de juízes e advogados.
A reflexão internacional já produziu vários standards, hoje considerados mínimos necessários para inúmeras atividades como o papel dos funcionários encarregados de cumprir a lei, o exercício de atividades por juízes e promotores, a proteção a defensores de direitos humanos e o exercício independente da advocacia. Leandro Despouy é exatamente especialista nesses instrumentos, tendo ajudado a construí-los como experto da ONU. Daí a extensão do seu mandato e a razão de sua escolha.
Leandro Despouy chegou ao Brasil a 13 de outubro, convidado pelo Governo brasileiro, para, no exercício de seu mandato de relator, conhecer e se pronunciar sobre a situação brasileira. Reuniu-se com juízes, membros do Ministério Público, advogados, e autoridades; visitou tribunais e associações de operadores do Direito; falou com a sociedade civil. Recebeu membros do IBCCrim em audiência especial. O IBCCrim tratou com o relator dos temas importantes da atualidade jurídica e judiciária nacional.
O IBCCrim igualmente reforçou no relator a boa impressão que já lhe fora causada pela política pública dos Centros de Integração da Cidadania (CICs), experiência paulista, sobre a qual este instituto já havia realizado exaustiva investigação. O relator recebeu um exemplar do livro publicado pelo IBCCrim com o conteúdo da pesquisa sobre os CICs.
Após cumprir sua agenda em vários Estados Brasileiros, com base nas informações coletadas durante a viagem, o relator formulará um Relatório a ser apresentado à Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas.
Espera-se que suas recomendações sejam seriamente levadas em conta e provoquem o debate, o interesse, a atenção que a sua própria visita provocou. Lembremo-nos todos que a questão do Judiciário não está reservada apenas para operadores do direito. Ela afeta toda a cidadania. É matéria de direitos humanos.
Em momento em que o Brasil se projeta no cenário internacional, participa de missões de paz, sugere políticas mundiais de combate à pobreza e chega a pleitear assento permanente no Conselho de Segurança, seria penoso sustentar que a Justiça é matéria de ordem interna e que a ONU "não tem nada a ver com isso".
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