INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 111 - Fevereiro / 2002





 

Coordenador chefe:

Janaina C. Paschoal

Coordenadores adjuntos:

Andréa Cristina D'Angelo, Carlos Alberto Pires Mendes, Celso Eduardo Faria Coracini, Daniela

Conselho Editorial

Editorial

A "nova" lei antidrogas

José Silva Júnior

Procurador de Justiça aposentado

No dia 11 de janeiro último, o presidente da República sancionou a Lei nº 10.409, aprovada pelo Congresso Nacional, que dispõe sobre a prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle e a repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícito, de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, assim elencados pelo Ministério da Saúde, e dá outras providências.

O assunto despertava o mais vivo interesse, não só entre operadores do direito, mas, diante de sua relevância, no âmbito da saúde pública da própria coletividade. Por isso mesmo, os órgãos de comunicação (imprensa, rádio e televisão), principalmente nos dias subseqüentes à aprovação do projeto de lei, alargam o espaço reservado ao tema que, por mais de uma década ocupara nossos legisladores! Anunciava-se que a Lei de Drogas envelhecera, resumindo-se a um conjunto de normas divorciadas da nossa realidade social. Estaria irremediavelmente superada! Aguardava-se, em clima de compreensível ansiedade, a edição de um diploma legal aprimorado, que incorporasse novos valores da sociedade e o sucesso de experiências ostentadas em codificações alienígenas. Enganamo-nos todos. A reforma simplesmente não aconteceu. Tem vigência a Lei Antitóxicos de 1976 - nº 6.368 -, conquanto derrogada pelas alterações advindas, algumas de manifesta impropriedade, comprometendo seu sistema e causando-lhe fissuras no arcabouço. Acrescente-se que, os vetos apostos não contornaram a situação. Ao contrário, produziram maiores estragos, a exigir urgentes reparos.

Aliás, nesse sentido, a mensagem presidencial esclarece que estão em curso estudos visando a elaboração de projeto de lei em regime de urgência para, sanados os vícios, alcançar à sociedade os aspectos positivos que o legislador sensivelmente expressou (nº 25, de 11.01.02). Essa promessa será cumprida? Ou somaremos mais uma década perdida? Poderá parecer exercício de adivinhação, mas a indagação tem pertinência e não deve ser tida como precipitada, pois não acreditamos venha a ser rejeitado o veto presidencial, para o que há exigência de maioria absoluta dos deputados e senadores (v. art. 66, § 4º, CF).

Antecedentes - processo legislativo

O PL nº 1.873/1991 (nº 105/1996 no Senado), de certa forma, foi enriquecido por diversas proposições legislativas. Merecem referência: PL nº 2.454/1992, elaborado a partir dos trabalhos da CPI do Narcotráfico; PL nº 2.765/1992, seguido do PL nº 391/1993 e, neste mesmo ano o PLS 94, do Senado, que veio a ser reunido ao PL nº 4.591/1994. Apensados, constituiu-se Comissão Especial que, ao final, apresentou substitutivo conforme relatório do deputado Ursicino Queiroz. Essas iniciativas, de modo geral, expressavam a preocupação de adequar a legislação vigente a uma nova política nacional de drogas, com ênfase na prevenção.

Em todas as proposições, destaca-se a situação do usuário-infrator, a exigir punição mais branda, algumas direcionadas até à despenalização. O PL nº 203/91, e.g., do senador Francisco Rollemberg, propunha a supressão do art. 16, da Lei nº 6.368/76. A justificativa do PLS nº 94/1993 (autoria do senador Lourival Baptista realça: A proposição de uma Política Nacional de Drogas está assim definida: a proposta de que o tratamento ao uso de drogas não seja no âmbito do direito penal, não significa, absolutamente, a liberação do uso. O que se quer é que a infração seja de outra natureza que não penal, como hoje se contempla no art. 16 da Lei nº 6.368/76, de 21.10.1976. A infração, no caso, pode ser sanitária ou administrativa. Lê-se, a seguir: A referida proposição preverá que: o órgão ou autoridade a quem incumbir a execução dos programas de prevenção apreenderá, sempre, a droga destinada a uso pessoal e ilícito. Portanto a apreensão, sempre da droga, não da pessoa, que tem sido a causa maior de tantos desmandos de alguns policiais, com o fomento da corrupção ativa e passiva. Prevê-se que será exercido no caso de uso de drogas, o Poder de Polícia do Estado, e não exclusivamente o Poder da Polícia. O projeto vem assim sanar a ambigüidade, o comportamento moralista e duplo da própria autoridade pública que incentiva a criação e a manutenção de centros de prevenção integral, em que, portanto, se realiza o tratamento de problemas decorrentes do consumo de drogas, e propõe, ao mesmo tempo, a prisão para a clientela desses centros, pela conduta do uso.

Fixado no mesmo tema, instruindo e ilustrando a justificativa do projeto (PL nº 3.901/1933 - autoria do deputado Eduardo Jorge), extrai-se: Há duas vertentes principais e bem distintas na questão das drogas: uma diz respeito ao consumo e a outra refere-se à oferta. A primeira tem no usuário, com suas diferentes espécies, o centro de suas atenções e a última ocupa-se, basicamente, do tráfico ilícito e de todas as ações próprias à sua realização. O legislador deve cuidar, evidentemente de ambas as vertentes. Entretanto, a matéria específica de cada uma exige a adoção de diferentes instrumentos. E é nesse ponto, precisamente, que vimos, ao longo dos anos, adotando e promovendo teratológica mistura, odiosa confusão, reduzindo toda a questão ao âmbito do direito penal. A lei em vigor é fundamentalmente, lei penal, apoiada pela ótica 'psiquiatrizada' dos problemas causados pelo 'uso de drogas'. Qual o instrumento previsto para o usuário de drogas - não dependente - na lei vigente? É o vexame da prisão, do camburão, do distrito policial e, muitas vezes, lamentavelmente, a agressão física e o achaque. Tudo por conta do art. 16 da Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976, que prevê a pena de seis meses a dois anos para o portador de droga, para uso próprio. Impõe-se, entretanto, uma importantíssima indagação: a criminação do usuário e a conseqüente repressão ao mesmo reduziram o consumo? Positivamente, não. Ao contrário, o uso de drogas - e de todos os tipos, lícitas e ilícitas -, ganhou proporções inéditas. E não foi por falta de prender usuário, o que há décadas as nossas leis chamadas 'antitóxicos' contemplam. Urge, entretanto, reparar as diferentes sedes onde devam ser tratados as duas matérias.

A última proposição (PL nº 154/1997), de autoria do senador Lúcio Alcântara, converge na mesma direção, melhor adequando o tema, preconizando ao dependente tratamento social.

Definição do projeto

Dos projetos mencionados foram extraídos elementos que, adicionados à estrutura do PL nº 1.837, de autoria do deputado Elias Murad (nº 105/96, no Senado), possibilitaram fossem ofertados substitutivos. O decurso do tempo encarecia a necessidade de compatibilização à legislação mais recente - de natureza substantiva e adjetiva; formulações de caráter administrativo (funcional e orçamentário - por exemplo, a organização da Presidência de República e dos Ministérios por medidas provisórias). Cumpre ressaltar, por exemplo: Lei nº 9.034/95 - crime organizado, Lei nº 9.080/95 - delação premiada, Lei nº 9.503/97 - CTB, Lei nº 9.613/98 - Lavagem de capitais, Lei nº 9.714/98 - Penas alternativas, Lei nº 9.804/99 - altera a redação do art. 34, da Lei nº 6.368/76, Lei nº 9.099/95 - Juizados Especiais, Lei nº 9.271/96 - altera dispositivos do CPP, Lei nº 9.807/99 - Proteção à vítima e testemunhas, LC nº 107/2001 - altera a LC nº 95/98 - dispõem sobre padrões normativos e ainda o Decreto nº 3.696, de 23.12.2000 - dispõe sobre o Sistema Nacional Antidrogas. No desempenho da relatoria da Comissão de Educação do Senado, primeiramente o senador Artur da Távola, e, a partir de 22.03.01, o senador Ricardo Santos envidaram esforços para esse ajustamento. Foram colhidas manifestações de inúmeras entidades: Magistratura, Ministério Público, Ordem dos Advogados, Polícia Federal, Conselhos de Juristas, pensadores de correntes variadas, da área médica, assistência social, professores, educadores, assessores do Senad, representantes de associações filantrópicas, sobressaindo o empenho dos senadores Lúcio Alcântara e Romeu Tuma, no sentido de atualizar dados e coligir sugestões.

Apreciação dos substitutivos

No Senado, os projetos nºs 105/96 (nº 1.873, CD) e 154/97, tramitaram conjuntamente. O parecer subscrito pelo então relator, senador Artur da Távola, concluiu pela rejeição do último e conseqüente aprovação do primeiro, sob forma de substitutivo compreendendo 57 artigos e prevendo a expressa revogação da Lei nº 6.368/76.

Observa-se que, analisando o tema, buscou afastar conceitos impróprios, nomenclaturas ambíguas, conflito entre comandos normativos, adequação dosimétrica das penas e conciliação aos novos órgãos administrativos criados por medidas provisórias. Avocando a relatoria o senador Ricardo Santos, da Comissão de Educação, após discussão e debates, com acolhimento de emendas, apresentou como conclusão de seu parecer, substitutivo ao projeto (Emenda nº 4 - CE).

Referido parecer foi complementado e o texto consolidado, apreciado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Nesta, ainda o relator senador Ricardo Santos, manifestando-se pela constitucionalidade e reiterando o mérito, discorre: ... Estamos, pois, diante de um texto que resulta de grande esforço social, submetido ao crivo desta Comissão, para analisar, no mérito, sua capacidade de oferecer resposta à questão da produção, tráfico e consumo de substâncias ilícitas, e servir de paradigma às decisões judiciais. Mas a despeito do grande esforço social, e da pertinácia de todos os ilustres parlamentares que se dedicaram ao assunto, não é possível congregar todas as filosofias num só projeto, porque há pensamentos antípodas e discrepantes. Assim como os que vêem os dependentes como doentes sociais - e ai está o segmento mais representativo da sociedade - há os que preferiam vê-los privados da liberdade. Há pessoas que não concordam com a proliferação de presídios, e recomendam a adoção de melhores políticas educacionais de prevenção e educação, as que sugerem a total reorganização estatal, descriminação de algumas drogas hoje consideradas ilícitas. No campo processual, existem os que apregoam o sobrestamento do processo judicial até que se confirme a integral recuperação do dependente. De outro lado, há os que defendem o arquivamento dos autos e a minimização da questão processual, sob a alegação de que aumenta o volume das questões dessa natureza submetidas ao Poder Judiciário. Nesse contexto a proposta procura atender os segmentos de maior representatividade social, aferidos em audiência pública realizada na Comissão de Educação do Senado Federal, em setembro de 2000. Todas as críticas ali manifestadas, ou para ali remetidas, foram sopesadas, analisadas, e acolhidas ou não, conforme seu ajustamento ao eixo de sustentação filosófica da proposição. E, muito foi aceito: da revisão dosimétrica à natureza de algumas sanções; dos procedimentos jurisdicionais aos mecanismos de arrecadação e destinação do patrimônio apreendido ao tráfico; de médicos, juristas, sociólogos e educadores, a audiência pública colheu críticas e sugestões e procedeu à revisão de todo o texto da proposta, o que resultou no atual texto substitutivo. Finalmente, submetido à votação, foi o projeto aprovado na forma do substitutivo.

Avaliação do processo legislativo

Inicialmente, penitenciamo-nos pela extensão deste retrospecto. A par da complexidade da questão das drogas ilícitas, a intenção foi a de registrar os avanços e os recuos dessa larga tramitação. Posições assumidas - despenalização, descriminalização, liberação, espaço maior à prevenção, endurecimento repressivo - ideologicamente antagônicas, particularmente no trato do usuário de drogas, por vários segmentos, carrearam argumentos para o debate.

O esforço político visando a uma composição dessas correntes, obviamente, não vingou. A revisão - falava-se em substituição - da Lei nº 6.368/76, a que se mostraram sensíveis os parlamentares da Câmara e do Senado, ao que tudo indica, foi preterida. O objetivo de diferenciação entre o usuário eventual e o dependente de drogas ilícitas, mereceu a maior atenção (cf. art. 20 - vetado), para exclusão da conduta criminosa ou adoção de medidas mais brandas para esses infratores. O caminho a ser trilhado, aberto por perseverante trabalho jurisprudencial, ao que se depreende da fundamentação do veto presidencial, poderá, de lege ferenda, concretizar-se.

A apreciação dos vetos, por outro lado, ditará novos rumos?

Alterações introduzidas pela Lei nº 10.409/2.002 - Análise comparativa

A Lei nº 6.368, de 21.10.1976, derrogada dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências. Em cinco capítulos, a saber: I - Da Prevenção; II - Do Tratamento e da Recuperação; III - Dos Crimes e das Penas; IV - Do Procedimento Criminal e V - Disposições Gerais, distribuem-se 47 artigos. A Lei nº 10.409, de 11.01.02, dispõe sobre a prevenção, o tratamento, a fiscalização, o controle, e a repressão à produção, ao uso e ao tráfico ilícitos de produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica, assim elencados pelo Ministério da Saúde, e dá outras providências. Em oito capítulos, a saber: I - Disposições Gerais; II - Da Prevenção, Da Erradicação e Do Tratamento - Seção I - Da Prevenção e da Erradicação; Seção II - Do Tratamento; III - Dos Crimes e Das Penas; IV - Do Procedimento Penal - Seção única - Do Procedimento Comum; V - Da Instrução Criminal; VI - Dos Efeitos da Sentença - Seção I - Da Apreensão e da destinação de Bens; Seção II - Da Perda da Nacionalidade; VII - Da Cooperação Internacional e VIII - Disposições Finais, abrigam-se 59 artigos.

Lei nº 10.409/2.002 - Incidência dos vetos

A relação indica os capítulos, artigos, parágrafos e incisos vetados.

No Capítulo I - arts. 1º e 3º

No Capítulo II - §§ 3º, 7º e 8º, do artigo 8º

 - inciso II do parágrafo único do art. 9º

 - inciso I do parágrafo segundo do art. 10

 - art. 12 caput


O Capítulo III foi integralmente vetado (composto de 13 artigos)

No Capítulo IV - art. 28 caput

 - art. 32 caput e § 1º

 - parágrafo único do art. 34

 - arts. 35 e 36

No Capítulo V - arts. 42, 43 e 44 caput

No Capítulo VI - art. 49


O Capítulo VII foi integralmente vetado (composto de 2 artigos)

No Capítulo VIII - arts. 54, 56, 57, 58 e 59

Nota


* A presente análise terá seqüência no próximo número do Boletim

José Silva Júnior

Procurador de Justiça aposentado



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