Autor: Fauzi Hassan Choukr
Sumário:
Ponto reitor da investigação criminal: A dignidade da pessoa humana
O modelo acusatório constitucional e suas conseqüências
O papel do titular da ação penal e da polícia judiciária
O status do investigado
O papel do Magistrado
Conclusões
Ponto reitor da investigação criminal: a dignidade da pessoa humana.
O processo penal, e, particularmente o brasileiro neste momento de nossa história, não pode ser compreendido em seus fundamentos sem que se conheça a fundo a matriz constitucional que o sustenta que, pelos valores que adota, exige uma completa revisão do Código de Processo Penal, não apenas para a adequação formal deste àqueles primados, como pela necessidade de entronizar nos operadores do direito a cultura democrática que deu vida a atual carta política.
Esta necessidade de remodelação transparece em todos os momentos do autoritário codex instrumental mas, com especial atenção, a fase prévia ao ajuizamento da ação penal está a clamar por mecanismos que deixem de tratar o suspeito como mero objeto da atividade estatal, inserindo nesta etapa da persecução os meios necessários para vivificar o grande valor que norteia as sociedades ditas civilizadas, o da dignidade da pessoa humana, ponto central de toda a metodologia constitucional contemporânea.
Como afirma Eser, transpondo-se para o processo penal esta baliza fundamental, a persecução penal acaba por pautar-se pelo ser humano antes que o estado, com sua proteção como pedra angular e entendido não somente como indivíduo, mas, também, como membro da comunidade humana (vínculo interpessoal que funda obrigações) pois mesmo no processo penal, donde sea preciso que el Estado se haga cargo de su función de protección del ser humano y en definitiva de la humanidad, non debe perderse de vista en ningún momento el caracter basicamente subsidiario y de servicio de aquél. El estado non puede llegar a erigirse en fin de si mismo sino que, por el contrario, debe orientarse siempre a la protección de la persona y al bienestar de la sociedade humana a la que sirve' '_. Assim, definitivamente não se pode compreender a persecução penal pela visão ex parte principi que vê a proteção do Estado como seu fim último, tampouco qualquer prática de operadores do direito que tenha vida como ato unilateral de autoridade, sem a devida correspondência com o primado da dignidade da pessoa humana.
O modelo acusatório constitucional e suas conseqüências
Como já tivemos oportunidade de sustentar em estudos anteriores, a constituição pátria, rica em avanços (ao menos formais) na linha antes apontada, edificou um processo penal condizente com sua premissa, criando pela primeira vez uma estrutura nitidamente acusatória, com a divisão de papéis entre o órgão julgador, o promovente da ação penal (que tem ao seu lado a polícia judiciária) e o investigado, agora dotado de um arsenal de garantias advindas do texto constitucional e dos tratados internacionais assinados pelo Brasil na seara dos direitos fundamentais.
Mais do que a simples e rasteira interpretação de "reserva de mercado" para as atividades persecutórias, a constituição estabelece diferente funções (ou como já foi dito, papéis) das agências públicas naquela atividade, estrutura esta que, passados mais de dez anos da entrada em vigor do atual texto constitucional, continua a ser explorada timidamente pela doutrina e ignorada pela maioria das decisões de nossos Tribunais, inclusive da Corte Suprema, que insistem em interpretar a Constituição à luz do Código de Processo Penal, e não o contrário, o que seria obviamente correto, dificultando desta forma a sedimentação da cultura constitucional
O papel do titular da ação penal e da polícia judiciária
A Constituição reserva um tratamento dialético diferenciado entre as agências policiais e o Ministério Público, sendo que a este último foi conferido o papel de titular da ação penal pública, além de dotar-lhe da atribuição de exercitar o controle externo da atividade policial. Já em vigor há mais de uma década, esta forma de controle, pouquíssimo operada na prática, tem sido alvo de constantes atritos entre os próprios órgão estatais, e em nada modificou para positivo o "direito vivido" na investigação criminal. Enfim, o modus operandi de condução das investigações não sofreu qualquer alteração substancial pela adoção do modelo constitucional, quer por não ter sido compreendido em sua função estrutural, quer por não haver vontade política para tal no quotidiano dos operadores. O que rendeu de efetivo esta norma (de resto pessimamente ubiquada no corpo da Constituição) foi o ajuizamento de algumas ações diretas de inconstitucionalidade sobre o tema, todas com o mesmo desfecho patético._
No limite, o Ministério Público continua a servir-se à distância do produto da investigação criminal, pouco acrescendo em juízo àquilo que foi produzido no contexto investigatório, apenas ratificando-o judicialmente. A ação penal continua sendo, assim, um mero apêndice da investigação _. Esta postura ainda passiva dessa agência pública, gera repercussões teóricas distorcidas (e alimentadas ainda pelo ranço corporativo), sendo a mais comum de ser encontrada, ao completo arrepio do texto político, é a da messiânica idéia do "juizado de instrução", em completa decadência no mundo ocidental,_ mas aqui defendida, inclusive por membros da mais alta Corte, como algo constitucionalmente viável.
A polícia judiciária, ainda lamentando-se pela "perda" da possibilidade de atuações sem controle judicial (v.g. na disciplina anterior das buscas e apreensões domiciliares sem mandado) e de alguma legitimidade ativa para agir (v.g. no finado procedimento judicialiforme), tem dificuldade para compreender a nobreza da atividade investigativa que reside na tecnologia dos meios empregados na sua consecução. Descura-se com muita facilidade de algo que é observável a olho nu: que a credibilidade das atividade policiais judiciárias vem do produto tecnologicamente irrefutável de suas conclusões. A prova técnica dispensa a cultura da violência, de reconhecida permanência entre nós na fase prévia à ação penal.
Em todo este contexto, salvas para a iniciativa da Polícia Civil de São Paulo, cuja edição da Portaria DGP 18/98, de cunho eminentemente garantista, e criada muito mais por homens idealistas (mas não românticos) significou um marco legislativo-administrativo ímpar. Sua aplicação no mundo da vida ainda não reflete a magnitude de sua concepção. No entanto, sua derrogação é inviável do ponto de vista político e jurídico, pois denunciaria um retrocesso sem igual e o descompasso com o modelo constitucional. Sob qualquer ângulo que se veja sua edição, ela é, portanto, um avanço de cultura e civilização.
O status do investigado
Como apontam Schöonbohm, Horst & Löosing, Norbert., 'en un estado de derecho liberal, cuya base es la liberdad del hombre, el estado debe respetar la dignidad humana, incluso cuando interviene drásticamente en los derechos de lo individuo para proteger los intereses de seguridad generales... de ahí se deriva, por lo menos para el procedimiento penal, que el acusado, el inculpado, no es solamente un objecto del proceso, sino que también hay que darle la oportunidad para que se manifeste, que presente una defesa efectiva". Estas palavras, escritas em vista do período processual da persecução, servem inegavelmente para a preparação da ação penal.
No direito brasileiro, a leitura dos direitos do investigado emana do texto constitucional, assim como dos tratados internacionais assinados pelo Brasil no campo dos direitos fundamentais, em especial do Pacto de San José da Costa Rica, cuja inserção em nosso direito positivo, consoante melhor doutrina se dá em sede constitucional, tratando-se de "nova tendência de Constituições latino-americanas recentes de conceder um tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos e garantias individuais internacionalmente consagrados "I, no dizer de Cançado Trindade, sem embargo das reiteradas negativas do STF
Não se pode deixar de imaginar um cenário no qual o Estado disponha de meios para efetivar a investigação criminal de forma condizente com o tipo de crime praticado ‚ahora bien, cuanto más incisivos sean los instrumentos de investigación en la persecución penal, mayor será, a su vez, la necessidad para el acusado de garantias protectoras ante posibles abusos de poder de los órganos estatales', como afirma uma vez mais Eser
Isto somente pode acontecer quando a matriz acusatória do processo é compreendia na sua essência cultural, que também poderia ser denominada de "cultura da alteridade" no processo penal, cuja manifestação mais direta sempre se dá com o contraditório, mas que a ele não se resume. A alteridade pressupõe a consciência da existência do "outro", premissa para a própria concepção da liberdade. Quando o Estado se nega a reconhecer no investigado o "outro" da relação persecutória, antes de proteger a cidadania da matriz acusatória, protege a si mesmo, fomentando a falecida estrutura inquisitiva e o autoritarismo que a sustenta.
O papel do Magistrado
Em todo esse novo cenário, que verdadeiramente afronta estruturas fossilizadas do conhecimento e da prática processuais penais brasileiras, o papel do magistrado outro não é senão o do verdadeiro guardião das garantias constitucionais, zelando pelo equilíbrio entre a persecução e a liberdade do investigado.
Assim, do ponto de vista sistêmico, fica bastante claro que ao magistrado é reservado, sem exceções, o papel de mitigar (jamais suprimir) os direitos constitucionais como liberdade, intimidade, privacidade, patrimônio, dentro dos mais estritos padrões de legalidade. Não por outra razão, prisões cautelares, interceptações telefônicas, quebra de sigilos bancário ou fiscal, buscas e apreensões domiciliares, jamais podem ser realizadas sem a autorização do magistrado, único constitucionalmente autorizado a determiná-las.
No entanto, a prática ainda demonstra a predominância da cultura inquisitiva sobre a acusatória, em especial no campo das cautelares pessoais, e não raras vezes essas decisões são determinadas sem a verificação dos pressupostos de sua admissibilidade, limitando-se a meras repetições dos enunciados legais, esvaziadas de qualquer embasamento substancial
Conclusões
De todo o exposto resta a certeza do descompasso entre as práticas quotidianas da investigação criminal e os primados culturais lançados na Constituição, com seus respectivos reflexos na investigação preparatória ao exercício da ação penal. O caminho da construção de fundo da nova ordem processual penal exige a consciência da cultura democrática e acusatória que a inspira, refletindo-a no direito vivo. Iniciativas legislativas, ainda que de âmbito restrito, como a Portaria DGP 18/98 de São Paulo, são sinalizações claras e concretas que é possível absorver e atuar essa cultura e práticas. Basta que se tenha em mente que o Homem constrói o Direito e o Estado para libertá-lo, e não para escravizá-lo.
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