INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 322 - Setembro/2019





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Bechtlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

JURISPRUDÊNCIA ESPECIAL
CORTES INTERNACIONAIS E SUAS DECISÕES COMENTADAS
O Caso Herzog. Breves considerações sobre acesso à justiça, interdição da tortura e o primado do Direito sobre a força

Autor: Pedro de Paula Lopes Almeida

 1 Introdução

A publicação da sentença relativa ao caso Herzog, proferida em 15 de março de 2018, reacendeu as discussões jurídicas em torno de alguns aspectos centrais da proteção internacional dos direitos humanos. Parece-nos fundamentalmente oportuno analisar três eixos sobre os quais repousam as repercussões jurídico-processuais desse caso.

O primeiro deles diz respeito à impunidade histórica que até hoje o circunda e que tem projetado seus efeitos deletérios por mais de quarenta anos. A persistente invocação, por parte das instâncias nacionais, de óbices como prescrição, anistia, coisa julgada material e necessidade de respeito à segurança jurídica segue inviabilizando, na prática, a elucidação dos fatos criminosos e das circunstâncias que lhes são adjacentes, a correta identificação de sua autoria e o subsequente processamente e julgamento dos possíveis culpados por sua prática.

A reflexão sobre a tortura e morte de Vladimir Herzog e a análise dos argumentos defensivos apresentados pelo Estado brasileiro convida à discussão sobre a sindicabilidade da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (CIPPT) por parte dos órgãos que compõem o SIPDH e sobre as consquências que podem advir de uma interpretação limitativa dessa possibilidade.

Por fim, parece-nos necessário enfrentar, ainda que brevemente, um aspecto que permeia a cultura jurídica nacional: habitualmente, a análise dos mecanismos internacionais de proteção dos direitos humanos, de suas decisões e dos marcos normativos que as delimitam parte de uma ótica eminentemente doméstica, calcada em conceitos como o de soberania nacional. Antecipamos que nos restam claras as perniciosas consequências que daí decorrem à eficácia dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos.

2 Impunidade e denegação de justiça

Nascido no território da antiga Iugoslávia, Vladimir Herzog migrou para o Brasil em 1946, juntamente com os pais, aos nove anos de idade. Em 1959, começou a trabalhar no jornal O Estado de S. Paulo. Em 1965, após o golpe militar de 64, mudou-se para Londres, onde trabalhou como produtor e locutor da BBC por por mais de dois anos.(1)

Na noite do dia 24 de outubro de 1975, dois agentes do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do Segundo Exército(2) compareceram à sede da TV Cultura, onde trabalhava Vladimir Herzog, a pretexto de acompanhá-lo àquele órgão, com a finalidade de prestar depoimento. Restou acordado que o Sr. Herzog compareceria ao DOI-CODI no dia seguinte, voluntariamente, o que efetivamente ocorreu. O que se seguiu, em resumo, foi o interrogatório, tortura e homicídio de Vladimir Herzog.

A versão oficial divulgada pelo Exército brasilero ao tempo dos fatos dava conta de que Herzog teria morrido em decorrência de suicídio praticado por enforcamento. Uma foto do cadáver em suspensão parcial, com uma cinta ao redor do pescoço, atada à grade da cela onde estaria, circulou mundo afora e seria, segundo as autoridades nacionais, uma das evidências da ação autocida de Vladimir Herzog.

A versão de suicídio divulgada pelas autoriades nacionais jamais gozou de credibilidade junto à opinião pública. Evidentemente, tampouco foi aceita pelos familiares da vítima. A comoção social decorrente do bárbaro homicídio resultou na instauração do Inquérito Policial Militar (IPM) 1173/75, presidido pelo General de Brigada Fernando Guimarães Cerqueira Lima.(3)

Conduzido sem a devida atenção a quaisquer parâmetros mínimos de isenção e devida diligência, o IPM 1173/75 ratificou a versão de suicídio; e seu arquivamento foi homologado pela Justiça Militar da União.(4) Neste ponto, já se pode identificar a criação de um primeiro pretenso óbice jurídico-processual a quaisquer tentativas posteriores de investigação dos fatos e punição de seus autores. A decisão de homologação de arquivamento, com base na ocorrência de suicídio em lugar de homicídio, poderia em tese ter aptidão para formar coisa julgada material e inviabilizar qualquer investigação futura. Como adiante explicitado, porém, a gravidade do crime e o contexto histórico-político do seu cometimento permitem sua caracterização como crime contra a humanidade, o que torna de nenhum efeito a decisão que acolheu a promoção de arquivamento do IPM.

Insatisfeitos com o resultado do IPM, cujas conclusões repousaram em laudos periciais ideologicamente falsos,(5) os familiares do senhor Herzog ajuizaram a ação declaratória 136/76 contra a União Federal, cujo objeto consistia no reconhecimento judicial da sua responsabilidade pela detenção ilegal, tortura e morte de Vladimir Herzog. Julgada procedente, a demanda transitou em julgado em 27 de setembro de 1995.

Em 28 de agosto de 1979, por outro lado, a edição da lei 6.683/79 (lei de anistia) impôs novo obstáculo à tentativa de elucidação dos fatos aqui discutidos. A norma, cuja edição supostamente pavimentaria o caminho à redemocratização, na realidade contribuiu para a impunidade de graves violações de direitos humanos, até hoje jamais adequadademente investigadas. Lamentavelmente, o Supremo Tribunal Federal, ao conhecer da ADPF 153, declarou a compatibilidade da lei de anistia com a Constituição Federal de 1988, em clara violação à jurisprudência constante da CtIDH quanto ao tema.

No ponto, convém rememorar que a incompatibilidade das leis de anistia quanto a crimes que constituem graves violações de direitos humanos já havia sido afirmada por ocasião do julgamento do caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) e outros vs. Brasil, ainda em 2010(6). Em 2018, a sentença do caso Herzog reforçou essa orientação jurisprudencial, rememorou a inércia do Estado brasileiro quanto à necessidade de afastamento da lei 6.683/79 como óbice ao processamento e julgamento da sua prisão ilegal, tortura e homicídio e demonstra claramente a enorme resistência do sistema de justiça nacional para internalizar decisões oriundas de instâncias internacionais de proteção de direitos humanos.

Regressando à cronologia dos fatos, é preciso lembrar que, em 1992, foi instaurado no âmbito da Polícia Civil do Estado de São Paulo o Inquérito Policial (IP) 487/92, oriundo de solicitação feita pelo então deputado federal Hélio Bicudo, cujo ponto de partida foi uma entrevista concedida por Pedro Antonio Mira Grancieri. Na entrevista, o Sr. Pedro Antonio Mira Granciere se apresentava como o único responsável pelo interrogatório de Vladimir Herzog. Em decorrência do manejo de Habeas Corpus, o IP em questão foi arquivado, em cumprimento às disposições da lei de anistia.(7)

Cabe destacar, por fim, duas tentativas de esclarecimento dos fatos levadas a cabo pelo Ministério Público Federal. A primeira delas, decorrente de provocação do Advogado Fábio Konder Comparato, consistiu na abertura de IP tombado sob o nº 2008.61.81.01343-2, que restou arquivado em razão da ocorrência coisa julgada material e do óbice da prescrição da pretensão punitiva.(8) Ainda em 2008, por outro lado, o MPF ajuizou ação civil pública, cujas pretensões centrais consistiam, dentre outras, na tentativa de tonar pública toda a informação relativa às atividades desenvolvidas no DOI-CODI do II Exército, na apuração das responsabilidades de seus ex-comandantes e na perda de suas funções públicas.

O histórico jurídico-processual acima descrito demonstra que a inefetividade das investigações (como no caso do IPM) ou o acolhimento de teses defensivas habitualmente deduzidas em processos criminais comuns (à semelhança das alegações de violação à proibicão de bis in idem, de ocorrência de coisa julgada e da incidência da lei de anisitia) contribuíram sobremaneira para a perpetuação da impunidade de um crime de gravidade indizível, planejado, concebido e executado por agentes de Estado.

Diante desse contexto, o reconhecimento, por parte da CtIDH, de que a detenção ilegal, tortura e homicídio de Wladimir Herzog constituiu crime contra a humanidade, praticado no marco de um ataque generalizado e sistemático contra a população civil, demonstra a extrema gravidade dos fatos. A propósito, convém transcrever a definição apresentada pea própria Corte quanto aos elementos que constituem tais crimes: “Os crimes contra a humanidade são um dos delitos reconhecidos pelo Direito Internacional, juntamente com os crimes de guerra, o genocídio, a escravidão e o crime de agressão. Isso significa que seu conteúdo, sua natureza e as condições de sua responsabilidade são estabelecidos pelo Direito Internacional, independentemente do que se possa estabelecer no direito interno dos Estados”.(9) Fixada essa premissa, dela decorrem sem maiores dificuldades as condições necessárias à investigação dos fatos e apuração das responsabilidades. Por força de norma constumeira internacional, atualmente positivada em distintos tratados (vide, por exemplo, o art. 7º do Estatuto de Roma do TPI), os crimes contra a humanidade são imprescritíveis. A eles tampouco se pode cogitar de estender os efeitos de anistia ou indulto, pela suficiente razão de que afrontam os mais caros valores da consciência jurídica universal. Sua impunidade, assim, constitui violação indiscutível do direito de acesso à justiça, ocasionando séria afronta ao direito às garantias judiciais e à proteção judicial, consagradas nos arts. 8º e 25 da Conveção Americana sobre Direitos Humanos (CADH).

3 A sindicabilidade da interdição da tortura pela CtIDH

Se o marco normativo central relativo à discussão do caso Herzog é a CADH, não se pode perder de vista que a prática da tortura constituiu uma traço característico do regime militar no Brasil. Nesse sentido, a CtIDH analisou minuciosamente os métodos de tortura física e psicológica adotados no período(10) e sua inserção no contexto de um aparato repressivo organizado para a prática de detenções ilegais, tortura e execuções extrajudiciais. Neste ponto, convém transcrever trecho muito eloquente da sentença analisada, relativo ao suplício e subsequente execução extrajudicial de Herzog: “Sua tortura e morte não foi (sic) um acidente, mas a consequência de uma máquina de repressão extremamente organizada e estruturada para agir dessa forma e eliminar fisicamente qualquer oposição democrática ou partidária ao regime ditatorial, utilizando-se de práticas e técnicas documentadas, aprovadas e monitoradas detalhadamente por altos comandos do Exército e do Poder Executivo”.(11)

Causa especial preocupação o fato de, no âmbito do caso Cosme Rosa Genoveva e outros (Favela Nova Brasília), as alegações de tortura igualmente terem restado comprovadas. Tenha-se em mente que este último caso é relativo à realização de operações policiais nos anos de 1994 e 1995, alguns anos após a redemocratização e cerca de trinta anos depois dos fatos que vitimaram Vladimir Herzog.

Os relatos de tortura, violência sexual e execuções extrajudiciais inscritos na sentença do caso “Favela Nova Brasília” apontam para necessidade imperativa de que a CIPPT seja revisitada pelos órgão do SIPDH, sempre que desponte como possível a ocorrência de tortura no continente americano. Na seara da proteção jurídica dos direito humanos, a superposição de instrumentos e mecanismos protetivos contribui para a especialização da prevenção e repressão às suas graves violações, incrementa a qualidade da prova coletada e apresenta à vítima uma reposta tão mais densa quanto melhor embasada juridicamente.

Nesse sentido, a reafirmação por parte da CtIDH de sua competência para analisar violações de direitos à luz da CIPPT é não apenas a reafirmação do princípio da compétence de la compétence, mas sinaliza para a preocupação concreta da Corte com relação ao flagelo da tortura e de outras práticas abjetas, historicamente presentes no continente americano.

4 Conclusão

A publicação da sentença relativa ao caso Herzog é, sem dúvida alguma, um marco histórico na afirmação dos direitos humanos no continente americano. A determinação expressa de que o Estado brasileiro deve reiniciar, com a devida diligência, a persecução relativa aos fatos ocorridos em 25 de outubro de 1975 é prova de que a impunidade não pode ser admitida quando estão em jogo os mais caros valores da consciência jurídica universal.

Se, por um lado, os efeitos do passar de tantos anos podem, ao fim, permitir que alguns ou todos os autores dos crimes se furtem à persecução penal (em razão do esvaimento das provas, ou do falecimento dos perpretadores, por exemplo), a iniciativa de justiciar tais pessoas, colher seus depoimentos e elucidar os fatos de forma séria, na maior extensão possível, demonstra não apenas deferência aos familiares, mas sobretudo reverência às decisões das instâncias internacionais de proteção dos direitos humanos. Está em jogo, em última análise, o primado do Direito sobre a força e a absoluta repulsa à violência estatal ilegítima.

Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.

Cançado Trindade, Antônio Augusto. International law for humankind: towards a new jus gentium – general course on public international law. Leiden/Boston: Martinus Nijhoff Publishers, 2006.

Comparato, Fabio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005 .

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). Novembro/1969. Disponível em: . Acesso em: 28 jul. 2019.

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Iteramericana para Prevenir e Punir a Totura. Novembro/1969. Disponível em: < http://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/a-51.htm>. Acesso em: 28 jul. 2019.

Piovesan, Flávia. Temas de direitos humanos. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

Ramos, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

Notas

(1) Corte Idh. Caso Herzog E Outros Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações E Custas. Sentença De 15 De Março De 2018. Serie C, No. 353, Par. 113 E 114. Disponível Em: . Acesso Em: 28 Jul. 2019.

(2) Na Estrutura Contemporânea Do Exército Brasileiro, O Ii Exército Corresponderia, Atualmente, Ao Comando Militar Do Sudeste, Sediado Em São Paulo/Sp, Que Geograficamente Engloba O Estado De Mesmo Nome.

(3) Corte Idh, Caso Herzog E Outros Vs. Brasil, 2018, Par. 126.

(4) Id., Par. 128.

(5) Id, Par. 127.

(6) Corte Idh. Caso Gomes Lund Y Otros (“Guerrilha Do Araguaia”) Vs. Brasil. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações E Custas. Sentença De 24 De Novembro De 2010. Serie C No. 219. Disponível Em: . Acesso Em: 28 Jul. 2019.

(7) Corte Idh, Caso Herzog E Outros Vs. Brasil, 2018, Par. 143.

(8) Id., Par. 156.

(9) Id., Par. 222.

(10) Id., Par. 240.

(11)Id., Par. 241.

Pedro de Paula Lopes Almeida
Mestre em Direito Ambiental pela UEA.
Defensor Público Federal.
Ex-membro do pessoal associado junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos – OEA.
Membro do Instituto Dom Helder Camara (IDHeC).
ORCID: 0000-0002-8167-5223
pedrodepaulalopesa@gmail.com
Recebido em: 29.07.2019
Aprovado em: 29.07.2019
Versão final: 01.08.2019



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