INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 322 - Setembro/2019





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Bechtlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

Linguagem político-criminal do extermínio: aproximações entre a LTI e o governo Bolsonaro

Autor: Décio Franco David

“É voz corrente dizer que a linguagem é a expressão de uma época.
Da mesma forma pode-se dizer que é o retrato de um tempo e de um país”.(1)

1. Conforme defendia Mikhail Bakhtin, todo discurso ou visão de mundo parte de construções linguísticas que proporcionam um quadro de mundo no qual as palavras perdem sua neutralidade e ganham direcionamentos ideológicos e significados.(2) Assim, diante do atual contexto político-social em que os mecanismos penais estão inseridos, a obra LTI: A linguagem do Terceiro Reich, de Victor Klemperer, torna-se obrigatória. O filólogo alemão foi professor catedrático de letras latinas na Universidade de Dresden, tendo sido removido do cargo em 1935, em virtude de sua ascendência judaica, ainda que fosse protestante. Sobreviveu aos abusos do holocausto sem ter sido enviado a campos de concentração por ter um casamento misto (sua esposa era protestante e considerada ariana), tendo exercido trabalhos forçados e vivido em uma Judenhaus até fugirem.

Ao longo do período nazista, Klemperer fez anotações em um diário, que após modificações pontuais realizadas por ele se converteu na mencionada obra. O livro possui 36 capítulos que traçam características relevantes de como a linguagem foi uma arma de enorme importância à implementação do regime e ao convencimento do povo de que as práticas governamentais eram normais e necessárias. Eis aqui o cerne de aproximação entre a LTI e as práticas governamentais da gestão Bolsonaro, haja vista que, assim como na LTI, o discurso e as práticas apresentadas pelo atual governo se constroem enquanto linguagem fascista e contrária ao modelo democrático, o que é comprovado pela metodologia da Análise Crítica do Discurso(2), adotada no presente artigo.

2. Da mesma forma que Jacques Lacan, anos mais tarde, afirmará que o inconsciente é estruturado como linguagem,(4) Klemperer afirma que “a linguagem sempre revela o que uma pessoa tem dentro de si e deseja encobrir, de si ou dos outros, ou que conserva inconscientemente”.(5) Daí o acerto da análise de Slavoj Žižek, ao afirmar, baseado em Lacan, que a linguagem é “um presente tão perigoso para a humanidade quanto o cavalo foi para os troianos: ela se oferece para nosso uso gratuitamente, mas depois que a aceitamos, ela nos coloniza”;(6) ou, conforme demonstra a LTI, escraviza e extermina.

Já nos capítulos iniciais, Klemperer demonstra que o sentido dos conceitos foi sendo abandonado de propósito para que ocorresse o empobrecimento linguístico, isto é, as palavras passaram a ter seus significados desvirtuados. Em especial, demonstra como o ensino da filosofia foi renegado e diminuído diante do perigo que o exercício do livre-pensar significava para um modelo que exige uma doutrinação de submissão das massas.(7) O autor demonstra como a mentira foi utilizada como tática de governo para mascarar fatos para a população(8) e como o regime nazista passou a se valer de terminologias diferentes,(9) abreviaturas(10) e repetições textuais(11) para adesão de seus ideais no inconsciente coletivo e para criar sua identificação linguística.

Nesse sentido já é possível identificar a aproximação entre a LTI e o discurso do governo Bolsonaro. O empobrecimento linguístico é uma das características centrais do próprio presidente, o qual não domina o português culto, fazendo uso de expressões demasiadamente simplistas em uma tentativa nada obscura de ser mais popular. Quanto ao uso de terminologias específicas, os discursos de posse de seus ministros demonstram claramente o uso de expressões próprias, como atesta reportagem de O Globo.(12) Quanto ao desprezo pela filosofia, a simples importância atribuída a Olavo de Carvalho dispensa maiores reflexões.(13) Por sua vez, o uso de “fake news” como tática de campanha repete a tática nazista da mentira.

Além disso, a LTI deturpou o significado do termo revolução, afirmando que a ascendência do nazismo ao poder foi uma revolução.(14) Do mesmo modo, Bolsonaro e seus partidários afirmam que não houve uma ditadura, mas, sim, uma revolução em 1964. E, como forma de limitar o pensamento, duas práticas de discurso foram implementadas: a retirada de nomes importantes da ciência e o confronto direto com o sistema anterior (instituído pela Constituição de Weimar) que deveria ser reconhecido como negativo.(15) Na LTI o nome de Einstein desapareceu dos cursos de física, e foi vetado o uso do termo hertz para designação da unidade de frequência.(16) No Brasil bolsonarista, Paulo Freire, maior educador da história nacional, é atacado sem qualquer argumento plausível. Se a LTI atacava as benesses sociais da República de Weimar, o discurso bolsonarista ataca os desenvolvimentos sociais das gestões anteriores. Impossível não reconhecer a simetria.

3. Klemperer afirma que a “LTI foi uma linguagem de cárcere (tanto do carcereiro quanto do encarcerado)”,(17) demonstrando a conotação punitiva e de extermínio. Eis aqui a conexão com o campo penal.

Não obstante o empobrecimento do discurso político-criminal na adoção de medidas completamente absurdas e injustificadas do ponto de vista científico, como a imensa propaganda sobre um “direito de legítima defesa” para facilitar o porte e a posse de armas de calibres altamente letais e a “punição para os vagabundos”, a linguagem bolsonarista amplia a seletividade e a exclusão de pessoas pelo sistema punitivo, notadamente ao confrontar com os fundamentos humanistas e democráticos do Direito Penal.

Em sua obra, Klemperer destaca como a palavra humanismo foi utilizada de forma sarcástica por Rosenberg, Hitler e Goebbels em seus discursos, aparecendo sempre entre aspas e acompanhada de adjetivos de desdém.(18) Para os adeptos das políticas bolsonaristas e, em especial para o próprio Bolsonaro, os direitos humanos só são aplicáveis aos “humanos direitos”, desvirtuando o significado historicamente atribuído ao termo e empobrecendo ainda mais o coletivo social. A disseminação em massa desse discurso de ódio popularizou imagens nas redes sociais de partidários do presidente usando tacos de baseball com a expressão “direitos humanos” escrita no objeto.

Ainda em sua campanha, Bolsonaro afirmou, em um comício no Acre, “vamos fuzilar a petralhada”(19), e sempre direciona críticas ao pensamento de esquerda e aos comunistas (em generalidade ao pensamento crítico de esquerda como se fosse completamente uniforme(20)), identificando-os como um verdadeiro inimigo. Como bem anota Klemperer, os membros do partido comunista alemão passaram a ser perseguidos a partir de 1933,(21) sendo que, para a LTI, os judeus e os bolcheviques eram Weltfeinde (inimigos mundiais).(22) Ainda, destaca-se da obra de Klemperer como os discursos do führer abusavam do desprezo e de contar vantagens, “enumerando de maneira prolixa as próprias proezas e xingando depreciativamente o adversário”;(23) tonalidade idêntica aos discursos do governo bolsonarista.

Não é de hoje que as agências de controle social sofrem influência de discursos opressores e de extermínio. O que não significa que isso seja aceitável. Pelo contrário, o empobrecimento da reflexão crítica torna a exclusão e o extermínio de indesejáveis um sistema objetivado de violência, conforme explica Žižek,(24) de modo que a sociedade passa a aceitar esta forma de abuso como algo corriqueiro, integrante do sistema.

Nesse passo, a violência é ampliada: sai das agressões discursivas bolsonaristas contrárias aos negros, indígenas, homossexuais e mulheres e adentra ao campo da prática forense. O Pacote Anticrime é apenas o primeiro ato do show de horrores que está por vir. Em especial, a quarta medida (modificações sobre a legítima defesa) demonstra claramente a política de extermínio pela pobreza linguística e técnica.

De imediato, observa-se que há uma completa ausência de necessidade de modificação legislativa no dispositivo. Não há nenhum acréscimo dogmático ou político-criminal (em consonância com o ordenamento constitucional) que legitime os três itens apresentados pelo Pacote ao referido tema. Facilmente, verifica-se que a proposta apresentada busca satisfazer o anseio leigo de justiça enquanto vingança, e ampliar os elementos valorativos para abrandar abusos em casos limítrofes de excesso punível.

Para melhor compreensão, destaca-se que a legitima defesa – assim como as demais causas justificadoras – se vincula diretamente à compreensão de identificação de um injusto penal. A partir da teoria neokantista de Max E. Mayer, o tipo penal passa a constituir um indício de ilicitude que será confirmado pela inexistência de causas de justificação da conduta, dentre as quais, repete-se, está a legítima defesa. Assim, a valoração não fica isolada no campo da antijuricidade, tendo, ainda que minimamente, uma valoração integrada aos elementos de composição do tipo penal. Embora, doutrinariamente, haja um campo fértil para reflexão teórica acerca da relação entre tipo penal e antijuridicidade, a proposta não apenas ignora essa possibilidade de reflexão, como também limita-se a baixar o nível técnico de interpretação do dispositivo legal.

De nada adianta apresentar um novo parágrafo ao art. 23, com a seguinte redação: “§ 2º O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”, valendo-se de palavras que proporcionam uma ampliação valorativa injustificável ao fato em concreto. Observa-se que, há muito, as teorias mais evoluídas do dolo buscam se afastar de elementos puramente subjetivos e cognitivos. Assim, incluir uma causa minorante, com possibilidade de perdão judicial, pautada em elementos intrínsecos e psicológicos, é altamente temerário.

Os outros dois itens (Art. 25, P.U. I - o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; II - o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes) são integrados apenas para tentar restringir interpretações de casos merecedores de punição por excesso. Isso é facilmente desmascarado, por dois motivos: 1) Se a conduta de um agente policial já possui os requisitos de composição de uma legítima defesa, não há razão técnica alguma que necessite a imposição de uma explicação aprofundada em parágrafo; 2) As previsões fáticas descritas em dispositivos de parte geral servem para delimitar o campo interpretativo do conteúdo normativo. No entanto, reafirmando que não existe linguagem neutra, é evidente que os dois itens servirão para “justificar” os abusos praticados por profissionais de segurança pública que desonram suas atividades.

Uma norma penal deve buscar sempre uma racionalização que limite o poder punitivo estatal, de modo que seu conteúdo só é legítimo se em sua funcionalidade forem produzidos efeitos melhores que os existentes antes de sua vigência. E, lembrando-se que o Direito Penal expressa, na forma mais contundente possível, as relações de interesse e poder existentes em um ordenamento, uma norma que legitime uma valoração ampliativa para tais casos espelha uma face ainda mais violenta do instrumento que deve servir de termômetro das garantias constitucionais. Em síntese, na atual conjectura política, a democracia é agredida de forma direta pelas modificações de discurso da “justiça criminal”, confirmando-se como uma política de extermínio, pois busca apagar incêndio com gasolina.

4. Para superar tal dilema, é preciso confrontar o modelo vigente. As ciências criminais podem servir de instrumental de resistência dos valores democráticos. Um bom exemplo disso, é o PL 4373/2016, de autoria do deputado Wahdi Damous (PT/RJ), que propõe a instituição da Lei de Responsabilidade Político-Criminal, exigindo-se para aprovação de leis penais estudos de impacto social (número de novos processos e vagas prisionais que a nova lei exigirá) e orçamentário (custos estimados das vagas prisionais e de novos processos).

Daí a conclusão de que a afronta ao estudo, ao pensamento e à filosofia seja uma arma em comum dos dois discursos (LTI e bolsonarista); afinal, “quem pensa não quer ser persuadido, mas sim convencido; é bem mais difícil convencer quem está habituado a pensar sistematicamente”.(25) Mais do que nunca, os juristas defensores de um pensamento humanista penal precisam estar unidos em prol dos anseios democráticos e das garantias constitucionais. Precisamos, juntos, dizer não à política-criminal de extermínio. E, “dizendo não ao egoísmo suicida dos poderosos, que converteram o mundo em um vasto quartel, nós estamos dizendo sim à solidariedade humana, que nos dá sentido universal”.(26)

Notas

(1) Klemperer, Victor. LTI: A linguagem do Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. p. 48-49.

(2) “A palavra é o fenômeno ideológico por excelência. A realidade toda da palavra é absorvida por sua função de signo. A palavra não comporta nada que não esteja ligado a essa função, nada que não tenha sido gerado por ela. A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social. (...) Mas a palavra não é somente o signo mais puro, mais indicativo; é também um signo neutro. Cada um dos demais sistemas de signos é específico de algum campo particular da criação ideológica. Cada domínio possui seu próprio material ideológico e formula signos e símbolos que lhe são específicos e que não são aplicáveis a outros domínios. O signo, então, é criado por uma função ideológica precisa e permanece inseparável dela. A palavra, ao contrário, é neutra em relação a qualquer função ideológica específica. Pode preencher qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral, religiosa”. (BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. São Paulo: HUCITEC, 2006. p. 34-35).

(3) “A ACD é a análise das relações dialéticas entre semioses (inclusive a língua) e outros elementos das práticas sociais” (Fairclough, Norman. Análise crítica do discurso como método em pesquisa social científica. Linha D’Água, v. 25, n. 2, p. 307-329, 2012. Disponível em: ). No Brasil, seguindo a proposta de Fariclough, encontramos o método pelo nome de Análise de Discurso Crítica, cf. Ramalho, Vivane; Resende, Viviane de Melo. Análise de discurso (para a) crítica: o texto como material de pesquisa. Campinas: Pontes Editores, 2011. p. 31.

(4) Esse conceito é adotado em diversas passagens da obra de Lacan, citando-se, por todos, Lacan, Jacques. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 27.

(5) Klemperer, op. cit., p. 49.

(6) Žižek, Slavoj. Como ler Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 20.

(7) “A LTI é a linguagem do fanatismo de massas. Dirige-se ao indivíduo – não somente à sua vontade, mas também ao seu pensamento –, é doutrina, ensina os meios de fanatizar e as técnicas de sugestionar as massas” (Klemperer, op. cit., p. 66).

(8) Klemperer, op. cit., p. 93.

(9) Id. ibid., p. 89 e ss.

(10) Id. ibid.., p. 161.

(11) Id. ibid., p. 55.

(12) O GLOBO. Dicionário do governo Bolsonaro: veja o significado de palavras que viraram moda nos discursos. 06/01/2019. Disponível em: .

(13) Excelente crítica em: Rosa, Pablo Ornelas; Rezende, Rafael Alves; Martins, Victória Mariani de Vargas. As consequências do etnocentrismo de Olavo de Carvalho na produção discursiva das novíssimas direitas conservadoras brasileiras. Revista NEP – Núcleo de Estudos Paranaenses da UFPR, v. 04, n. 02, dez./2018, p. 164-203. Dispoível em: .

(14) Klemperer, op. cit., p. 297.

(15) Idem, ibidem, p. 169 e ss.

(16) Id. ibid., p. 141.

(17) Id. ibid., p. 148.

(18) Id. ibid., p. 228.

(19) Sobre o assunto: .

(20) A generalidade também é uma característica da LTI, cf. Klemperer, op. cit., p. 340.

(21) Klemperer, op. cit., p. 262.

(22) Idem, ibidem, p. 336.

(23) Klemperer, op. cit., p. 338.

(24) Žižek, Slavoj. Violência. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 18.

(25) Klemperer, op. cit., p. 170.

(26) Galeano, Eduardo. Nós dizemos não. Rio de Janeiro: Revan, 1990. p. 14.

Décio Franco David
Doutorando em Ciência Jurídica pela UENP.
Professor de Direito Penal da FAE Centro Universitário. Advogado.
ORCID: 0000-0001-7284-3910
decio@dfdavid.com
Recebido em: 03.07.2019
Aprovado em: 01.08.2019
Versão final: 12.08.2019



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