INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 322 - Setembro/2019





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Bechtlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

Fragilização democrática e poder judiciário: A cumplicidade dos juízes no processo de ascensão de autoritarismos no Brasil

Autores: Bruno de Almeida Passadore e Camila Rodrigues Forigo

1 Introdução

O presente estudo terá por objeto de análise a fragilização da democracia brasileira a partir da eleição de Jair Bolsonaro, fazendo-se um paralelo entre referida situação e o papel do Judiciário. Será apresentada hipótese acerca das razões para ascensão do líder demagogo, bem como será abordado um movimento em sentido próximo, de viés altamente oligárquico e autoritário no âmbito da magistratura nacional.

2 Democracia brasileira em crise

O projeto de 30 anos atrás de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”; “garantir o desenvolvimento nacional”; “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (art. 3º da CF) parece algo vazio ante a persistente pobreza, desigualdade e injustiça que se mantém no Brasil.

Por natural, criou-se uma situação de desencanto em relação às previsões contidas na Constituição, colocando-a em claro descrédito social. A população, claramente insatisfeita com a situação, em detrimento de buscar novas formas de aprofundamento democrático para fazer valer a plena dignidade sua e de seus pares, iniciou um ciclo de desconfiança do regime iniciado em 1988.(1)

A resposta buscada, portanto – e incentivada por uma inadequada influência de alguns setores políticos insatisfeitos com uma série de privilégios que a Constituição lhes ceifou (ou deveria tê-lo) –, foi a tolerância com a exclusão e violações a direitos.

Afinal, sendo a sociedade uma organização artificial, pela qual uma ordem é gerada com o fito de estabelecer as bases políticas necessárias para que a sociedade se desenvolva em sua plenitude (SADEK, 2003, p. 18), o descompromisso com a factibilidade dos direitos sociais abre espaço para descontentamentos e buscas por alternativas fora do marco constitucional.

Como lembra Dahl, “a existência de convicção bastante disseminada entre cidadãos e líderes, incluindo as convicções nas oportunidades e nos direitos necessários para a democracia”, é algo que aumenta substancialmente as chances de sucesso de um regime democrático (DAHL, 2001, p 63). Consequentemente, a descrença nesses paradigmas, ocasionada por uma falha da organização política em garanti-los, é um fator de abertura para autoritarismo.

A crise da democracia brasileira deu mostras de evidente recrudescimento com a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência. Alçou-se ao mais importante cargo da administração pública personagem claramente descomprometido com as balizas normativas e com padrões internacionais de Direitos Humanos; que levanta dúvidas sobre a legitimidade do sistema político brasileiro; nega legitimidade aos seus oponentes; encoraja a violência; e mostra clara propensão a restringir direitos e garantias fundamentais (FOLHA DE S. PAULO, 2018). Assim, possível, a partir do escólio de Levitsky e Ziblatt, classificá-lo como demagogo autoritário com tendências a subverter a ordem e romper com o pacto democrático (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p. 33/34).

Historicamente, a literatura especializada igualmente justifica a ascensão de diversos totalitarismos em solo europeu na primeira metade do século XX a partir da incapacidade dos regimes liberais do entreguerras em fazer frente às crises econômicas do período e que levaram diversos países à bancarrota juntamente com seus cidadãos (MAZOWER, 2001, p. 19).

Utilizando-se de paradigma weberiano, cria-se uma situação pela qual fragilizam-se as características da dominação predominantemente burocrática na realidade do país, e em lugar de uma forma de organização baseada na universalidade das normas e capazes de conferir impessoalidade ao poder, se inaugura um movimento em prol de um regime sem limites. Essa nova organização política, fundada no carisma de alguém e não mais nas leis ou Constituição, legitima-se em uma fonte de poder extracotidiana livre de controle e, assim, capaz de realizar uma ligação direta entre o líder e o povo. Nesse aspecto, à liderança carismática é conferida a possibilidade de derrubar o passado e, de forma revolucionária, garantir-lhe a eficiência necessária para solucionar as mazelas que afligem a sociedade e incapazes de serem resolvidas pelas bases políticas tradicionais em ruínas.(2)

3 O judiciário nesta crise

Na mesma linha da crise democrática apresentada, entende-se que, na atual conjuntura, os órgãos jurídicos se aristocratizaram e, no momento, também assumiram uma postura de fragilização constitucional. Sem querer esgotar o tema, por ser este o local inadequado para tanto, analisa-se brevemente estudo do então magistrado Sérgio Moro acerca da operação Mani Pulite.

Percebe-se nítido descontentamento do autor com o arcabouço normativo, sendo proposto seu desrespeito com ares de “democrático”; e justificam-se medidas de legalidade duvidosa, uma vez que, na atualidade e supostamente, a “magistratura ganhou uma espécie de legitimidade direta da opinião pública” (MORO, 2004, p. 57)e, para mantê-la, deveria corresponder a anseios midiáticos(3) ainda que isso signifique promover o vazamento de informações sigilosas, a deslegitimação do parlamento, a busca de delações e confissões ao arrepio da ordem jurídica, entre outras coisas (MORO, 2004, p. 58/59). Afinal, “a opinião pública favorável também demanda que a ação judicial alcance bons resultados” (MORO, 2004, p. 61) e, para corresponder a essa nova fonte de legitimidade da atuação jurisdicional – aparentemente não mais decorrente da Constituição –, diversas garantias constitucionais e a forma processualmente estabelecida para formação da culpa – como a observância da presunção de inocência – tornam-se claros empecilhos.(4) Ademais, a intolerância com o iter processual penal ao arrepio da lei e da Constituição poderia criar um sentimento popular de que o Poder Judiciário seria inadequado ao combate à corrupção e ao crime organizado.(5)

Por outro lado, como se pode facilmente perceber, ao agir de acordo com a opinião pública e sob uma suposta ligação direta entre a sociedade e o juiz, insere-se na esfera de dominação, e tal qual na situação do líder carismático, um claro fator de irracionalidade e, portanto, de abertura para novas formas de organização que usualmente são exploradas pelo líder político demagogo e de tendência autoritária (WEBER, 1982, p. 256/257).Veja-se curiosa passagem doutrinária de José Renato Nalini: É isso o que deve legitimar um novo protagonismo do juiz contemporâneo. Protagonismo saudável, consequência da possível anomalia da função legislativa. […] O ordenamento torna-se opaco e o juiz lhe devolverá transparência, à medida que vier a aplicá-lo. O juiz, que já foi considerado braço do Executivo, é hoje o braço legitimador do Legislativo. É exclusivamente seu o desafio de fazer conformar a vontade da lei à vontade da Constituição”. (NALINI, 2008, p. 323)

Há, assim, um sistema jurídico no qual os supostos garantidores da ordem jurídica parecem entender que sua autoridade decorre de algum instituto supralegal e hipotético, acima das leis, oligopolizador e que eleva o magistrado a um local social acima do restante da sociedade. Preso nesse paradigma, e antes de ser guardião da lei, “o juiz torna-se o próprio juiz da lei” (MAUS, 2000, p. 196). Não surpreende, portanto, que o poder público deixa de se considerar submetido à Constituição, enquanto programa normativo vinculante, libertando-o a exercer poder sobre a sociedade de forma não racional e não universalizante.

Nesse corpo aristocratizado e altamente politizado, há forte dificuldade de ascensão de certos setores da comunidade, apesar de uma igualdade formal no acesso ao cargo de magistrado pela via de concurso público. A respeito, de acordo com pesquisa do Conselho Nacional de Justiça de 2018, “o perfil da magistratura no país é de homem, branco, católico, casado e com filhos” (CNJ, 2018), havendo, inclusive, uma acentuação do caráter masculino dos juízes brasileiros a partir de 2011, momento em que o percentual de juízas caiu para índices pré-década de 1990 (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2018, p. 9).

Em face dessa situação, conclui-se, na linha de Mosca, que prevalece como critério de acesso à burocracia brasileira – notadamente no Judiciário – menos o conteúdo e mais a submissão a um procedimento formal de aquisição de conhecimento. Para o autor siciliano, uma avaliação baseada unicamente na capacidade intelectual poderia ser prejudicial a esta elite e, assim, seria mais adequado conferir importância a um processo mais facilmente controlado no intuito de reproduzir a elite dominante (MOSCA, 1939, p. 58/59).

Assim, reproduz-se um perfil de escalonamentos sociais que se fecha para certos setores e facilita acesso a outros, permitindo um movimento inercial das elites que, apesar de alterações dos ocupantes de cargos a título individual, mantém no poder uma mesma ordem de privilegiados ainda que sob um discurso democrático.(6)

Disso, e em que pese um pretenso projeto democrático, pelo qual a sociedade atuaria sobre si mesma, programando suas leis e Constituição, as quais, por sua vez, programariam e garantiriam a sua necessária execução através das decisões de órgãos administrativos, consolidou-se um movimento contrário. Os órgãos administrativos acabam por funcionalizar o Estado, direcionando, a seu juízo, a forma como a organização administrativa será imposta ao cidadão, e, assim, deslocam o procedimento de legitimação da sociedade para si próprios em evidente prejuízo à democracia (HABERMAS, 1990, p. 107/108; FAORO, 2012).

Percebe-se, tanto em Nalini como em Moro, clara tendência antidemocrática quando, em detrimento de reconhecer uma origem legal de seu cargo, que lhe confere anterioridade e legitimidade, abre-se a possibilidade para uma “ligação direta” e, nesse aspecto, extracotidiana entre o magistrado e os dominados, tal qual na análise da ascensão do líder carismático anteriormente exposto.

Ademais, enquanto representante dos novos “donos do poder”, não é surpreendente que o mesmo magistrado que entende que o Judiciário deva conferir legitimidade ao Legislativo, através de interpretações ousadas (para dizer o mínimo) de suas leis, defenda a concessão de auxílio de legitimidade duvidosa aos seus pares, uma vez que estes “tem 27% de desconto de Imposto de Renda” e “precisam comprar ternos e não dá para ir toda hora para Miami comprar terno”.(7) Afinal, ante essa aristocratização que não é limitada por uma racionalização impessoal, abre-se espaço para, em detrimento de um paradigma baseado na igualdade intrínseca – imperiosa em uma democracia –, um sistema que tem por característica a superioridade de uma casta que funcionaliza as instituições (DAHL, 2001, p. 75/81).

4 Conclusão

A hipótese apresentada não se mostra de simples defesa e exposição, mormente em razão das limitações de espaço a que foi proposto o corrente estudo. Por outro lado, entende-se delimitada a sintonia entre o discurso que venceu as eleições presidenciais de 2018 e aquele gestado no Judiciário em mesmo período, algo que pode ser inclusive corroborado pela ascensão de Sérgio Moro ao cargo de ministro de Estado.

O argumento é o mesmo. Esgarçamento da racionalidade no modo de dominação e busca por fatores extracotidianos que supostamente possam conferir melhor resposta aos anseios populares. Como aponta Mosca, um dos principais fatores de manutenção ou mudança de elites é a sintonia ou não delas com as forças políticas dominantes que se apresentam (MOSCA, 1939, p. 65/66). Assim, ao ganhar campo um conjunto de ideias que procuram fragilizar uma ordem jurídica racional democrática, nada surpreendente que a mesma elite que comanda a estrutura jurídica que teria por pressuposto a manutenção dessa ordem milite em favor de uma estrutura irracional e altamente oligárquica, exatamente na linha dessas novas forças.

Referências

FOLHA DE S. PAULO. Confiança na democracia sobe, mas insatisfação com seu funcionamento é de 58%. São Paulo, 04. Jun. 2019. Disponível em: . Acesso em: 04 jun. 2019.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Perfil sociodemográfico dos magistrados brasileiros. Brasília, 2018.

Dahl, Robert. Sobre a democracia. Brasília: Ed. UnB, 2001.

Faoro, Raymundo. Os Donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 5. ed. São Paulo: Globo, 2012. Versão e-book.

Habermas, Jürgen. Soberania popular como procedimento: um conceito normativo de espaço público. Trad. Márcio Suzuki. Revista do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), n. 26, mar. 1990.

Lebrun, Gerard, O que é poder? São Paulo: Abril Cultural, 1984.

Levitsky, Steven; Ziblatt, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

Maus, Ingebord. O Judiciário como superego da sociedade. Revista do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), n. 58, nov. 2000.

Mazower, Mark. Continente sombrio: a Europa do século XX. São Paulo:  Cia das Letras, 2001.

Moro, Sérgio Fernando. Considerações sobre a operação Mani Pulite. Revista CEJ, Brasília, v. 8, n. 26, jul.-set. 2004.

Mosca, Gaetano. The rulling class. Londres: Mcgraw-Hill Book Company, 1939.

Nalini, José Renato. A rebelião da toga. 2. ed. .Campinas: Millennium, 2008.

Sadek, Maria Tereza. Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtù. In: Weffort, Francisco (org.). Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 2003.

FOLHA DE S. PAULO. Veja 11 frases polêmicas de Bolsonaro. São Paulo, 06 out. 2018. Disponível em: . Acesso em: 02 jul. 2019.

Weber, Max. Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1982.

_____, Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v. 1. Brasília: Ed. UnB, 1999.

Notas

(1)  Vale registrar que esse dilema é corroborado por pesquisas recentíssimas sobre a opinião dos brasileiros acerca da democracia nacional e suas instituições. Segundo pesquisa veiculada em 04 junho de 2019 pelo jornal Folha de S. Paulo, 60% dos brasileiros consideram a democracia a melhor forma de governo, mas 58% se dizem insatisfeitos com as instituições, colocando o Brasil entre os últimos colocados em comparações com outros países em que a mesma questão foi avaliada (CONFIANÇA na democracia sobe, mas insatisfação com seu funcionamento é de 58%).

(2)  “A dominação carismática, como algo extracotidiano, opõe-se estritamente tanto à dominação racional, especialmente a burocrática, quanto à tradicional, especialmente a patriarcal e a patrimonial ou estamental. Ambas são formas de dominação especificamente cotidianas – acarismática (genuína) é especificamente o contrário. A dominação burocrática é especificamente racional no sentido da vinculação a regras discursivas analisáveis; a carismática é especificamente irracional no sentido de não conhecer regras. A dominação tradicional está vinculada aos precedentes do passado e, nesse sentido, é também orientada por regras; a carismática derruba o passado (dentro de seu âmbito) e, nesse sentido, é especificamente revolucionária. Esta não conhece a apropriação do poder senhorial ao modo de uma propriedade de bens, seja pelo senhor seja por poderes estamentais. Só é ‘legítima’ enquanto e na medida em que ‘vale’, isto é, encontra reconhecimento, o carisma pessoal, em virtude de provas; e os homens de confiança, discípulos ou sequazes só lhe são ‘úteis’ enquanto tem vigência sua confirmação carismática.” (WEBER, 1999, p. 160).

(3)  “[A] opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é também essencial para o êxito da ação judicial. […] Enquanto ela [a atuação judicial] contar com o apoio da opinião pública, tem condições de avançar e apresentar bons resultados” (MORO, 2004, p. 57 e 61).

(4)  “A presunção de inocência, no mais das vezes invocada como óbice a prisões pré-julgamento, não é absoluta, constituindo apenas instrumento pragmático destinado a prevenir a prisão de inocentes. […] Tal construção representa um excesso liberal com uma pitada de ingenuidade.” (MORO, 2004, p. 61).

(5)  “Em alguns casos, de fato, a descoberta de ilegalidade disseminada provoca críticas ao sistema judicial no sentido de que este estaria sendo inadequado para combater a corrupção.” (MORO, 2004, p. 62).

(6)  O perfil dos magistrados brasileiros é de pessoas com família de altíssima educação e originárias dos estratos sociais mais elevados; e tal oligopolização vem apresentando tendências de acentuação nos últimos anos. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2018. p. 15).

(7)  Fazemos referência à entrevista do então Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, José Renato Nalini, à TV Cultura, defendendo a instituição do famigerado auxílio-moradia a juízes e promotores. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2019.

Bruno de Almeida Passadore
Mestre em Direito pela USP.
Especialista em Direito Internacional pela Georgetown University.
Defensor Público no Estado do Paraná, Curitiba.
ORCID: 0000-0002-7513-1377
bruno.passadore@defensoria.pr.def.br

Camila Rodrigues Forigo
Mestre em Direito pela PUCPR.
Secretária da Comissão da Advocacia Criminal da OAB-PR. Advogada.
ORCID: 0000-0002-5046-0713
camila.forigo@gmail.com
Recebido em: 03.07.2019
Aprovado em: 26.07.2019
Versão final: 09.08.2019



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