INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 322 - Setembro/2019





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Bechtlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

EIXO 4: Justiça criminal, democracia e conjuntura política
Porque interpretação não constrangida é vitamina para os anseios de tirania

Autor: Lenio Luiz Streck

Em face dos acontecimentos recentes, lembrar de Joseph K. e seu Processo é inevitável. Em determinado momento da trama de Kafka, K. vai ao encontro de um contato, Titorelli, que – ficou sabendo – poderia ajudá-lo a agilizar seu Processo, sobre o qual não possuía qualquer informação. Ao chegar ao local, em determinado momento do diálogo, K. depara-se com um quadro, encomendado ao pintor Titorelli pelo próprio Tribunal – quase onipresente, onisciente e, ao mesmo tempo, sorrateiro e inacessível. A pintura retratava, como pareceu em um primeiro momento, a deusa da Justiça. Então, questiona K.: “mas vejo asas em seus calcanhares e ela não está em plena corrida?” Responde o pintor: “é que se trata de uma simbiose entre a deusa da Justiça e a deusa da Vitória”. Sorrindo, K. retrucou com delicadeza: “a Justiça precisa estar em repouso, senão a balança poderá oscilar e um veredicto justo é impossível”.

Com a frente tomada pelo The Intercept Brasil, revelando diálogos “privados” (sobre assuntos de interesse público e em razão das funções e cargos públicos ocupados pelos atores dos diálogos) entre procuradores da força-tarefa da operação Lava Jato e o então juiz Sergio Moro, tais notícias trouxeram para o centro do debate público a questão retratada por Kafka, no diálogo acima, sobre os limites da atuação entre juízes e partes: acha(re)mos normal que juiz não tenha imparcialidade?

A pergunta é: O Direito pode ser instrumentalizado em favor da cruzada anticorrupção? Concorda(re)mos que juiz possa ser acusador? Juiz pode “comandar” o atuar do MP? Permitiremos que a Justiça, em busca da Vitória, dispare em plena corrida?

Essas questões devem ser enfrentadas de frente. Afinal, embora muitos (inclusive o próprio ministro Moro, que ora nega a autenticidade das revelações, ora as combate como se de fato fossem autênticas) queiram dar a entender que a promiscuidade entre juízes e partes seja normal, se convalidarmos essa premissa, o “precedente” fará com que nossa democracia (já a respirar por aparelhos) saia extremamente enfraquecida da tormenta que vem enfrentando. Os elementos para a tempestade perfeita já temos.

No entanto, todos os fatos revelados até o momento, envolvendo atropelos da legalidade e posturas consequencialistas das autoridades judiciárias, são apenas sintomas de um problema mais enraizado, que há muito venho combatendo: o problema da interpretação do Direito em face da sua necessária autonomia contra seus principais predadores (moral, política e economia). Autonomia entendida como democracia, em que o Direito é condição de possibilidade. Democracia só existe no Direito e por meio do Direito.

O caso The Intercept, para além de revelar a promiscuidade com que juízes se relacionam com interesses difusos, privados ou coletivos (caprichosos ou em favor de certo projeto político de poder), colocando-os acima da Lei e no exercício de suas funções, revela a fragilidade do Direito e da sua autonomia. Revela que a dogmática jurídica não conseguiu forjar uma tradição de garantias e liberdades. Produziu próteses para fantasmas.

É preciso sempre lembrar: o Direito é, nesse sentido, garantia, mas, ao mesmo tempo, algo que deve ser garantido. É garantia, por ser condição de possibilidade para o que se compreende enquanto Estado Democrático de Direito, devendo ser garantido, na medida em que se manifesta por meio da interpretação – dos cidadãos, dos agentes políticos, mas, principalmente, das Cortes. Não basta, portanto, afirmá-lo – em um plano epistemológico – quando nos deparamos com casos como a Lava Jato, apenas mais um na lista em que poderíamos inserir o Mensalão, é preciso defendê-lo.

Necessário dizer o que é Direito e, ao mesmo tempo, dizer como ele deve ser aplicado. Sempre. Em outras palavras, não basta que coloquemos em debate o papel do juiz no exercício do poder jurisdicional do Estado; não basta responder da melhor maneira possível as perguntas acima direcionadas, se ignorarmos a necessidade de construir, dentro de um campo mais sofisticado da racionalidade jurídica (claro, sem ignorar a importância de se debater os limites da relação juízes-procuradores), uma teoria da decisão, problemática que enfrento em Verdade e consenso e no Dicionário de hermenêutica.

No fundo, o que temos é um eterno retorno à teoria do Direito. “O que é o Direito?” – eis a questão. Por isso, importa muito dizer a seguinte obviedade, embora o óbvio seja ladino: ativismo judicial e, principalmente, Lawfare – conceito geral do qual a Lava Jato pode ser considerada um particular – são apenas produtos de uma comunidade jurídica que não se preocupa com o desenvolvimento de um arcabouço teórico que cumpra com o papel de constranger epistemologicamente os operadores do Direito. 

Explico: quando falamos em lawfare, por exemplo, i.e., na utilização do Direito como arma política para a consecução de objetivos (i)morais, estamos falando de um nome que veio muito depois da coisa. Utilizar o Direito como “não direito”, substituindo os meios democráticos de aferição da culpa, ou lançar mão do “método” primeiro-decido-depois-busco-o-fundamento, colocando-se os fins (no caso a condenação) em primeiro plano e os meios apenas como ornamento, é lawfare avant la lettre, por meio do velho ativismo judicial.  Ainda assim, durante anos, a doutrina não fez nada senão oferecer um arcabouço criteriológico ex post facto; com o único objetivo de justificar decisões já tomadas com base no livre convencimento de juízes e coisas similares; como sentença vem de sentire e a defesa da livre apreciação da prova. A própria academia colaborou para que esse imaginário fosse construído. Há dissertações e teses sustentando livre convencimento, instrumentalismo processual, verdade real, relativismo interpretativo, ponderação de valores (sem que se saiba que valores são esses) e o malsinado pamprincipiologismo. Não surpreende, assim, que a doutrina esteja a reboque de decisões judiciais, em uma envergonhada confissão de realismo retrô (ao fim e ao cabo, o Direito é o que os tribunais dizem que é).

O professor Warat denominava tal fenômeno como “construção de próteses para fantasmas”, ou seja, a dogmática jurídica cumpre papel central na perpetração de um modelo antidemocrático e decisionista de jurisdição, pautado na utilização de moldes de argumentação teleológicos, que ignoram muitas vezes limites semânticos básicos da Constituição, a ponto de se poder afirmar – como tenho feito – que defender a legalidade constitucional é, hoje, uma atitude revolucionária.

A dogmática penal e processual penal como prótese para o fantasma punitivista, ao mesmo tempo em que lota os presídios com presos provisórios, busca solapar definitivamente o princípio da presunção de inocência; bacias de barbeiro que não são o elmo de Mambrino.(1) Pior: parcela da comunidade jurídica é a favor da antecipação da pena; juristas importantes como Joaquim Falcão (poderia nominar outros como José Eduardo Faria e ministros de altas cortes do país), atacam o excesso de direitos ou o formalismo do processo penal. Repito o que venho dizendo: metaforicamente, os juristas que atacam a democrática Constituição e as garantias podem ser comparados a médicos que fazem passeatas contra vacinas e antibióticos. Os médicos não fazem isso. Já no Direito, isso tem sido comum.

A baixa literatura que domina o “mercado” acadêmico das faculdades de Direito tem sua parcela de culpa. As faculdades, na sua grande maioria, não se diferenciam de cursinhos preparatórios para concursos públicos e prova da OAB. Porém, isso não explica, por si só, o fenômeno do punitivismo-autoritarismo, pois, assim como a Lava Jato, e, antes dessa, o Mensalão, e todas as práticas absurdas que se observam no cotidiano forense, tudo isso é produto de “muito esforço” de um imaginário jurídico que não incorporou as conquistas do Constitucionalismo Contemporâneo e não compreendeu o grau de autonomia que deve ter o Direito diante do canto das sereias dos argumentos morais, voz das ruas e quejandos.

Nesse sentido, como sabemos, Kelsen, de forma pessimista, defendeu, em sua TPD, que a interpretação feita pelos juízes na sentença é um ato de vontade. Mas onde esse ponto se conecta ao que venho dizendo até aqui? Simples: ao fim e ao cabo, se a sentença judicial é um ato de vontade, produzindo o juiz uma norma individual, então o Direito acaba sendo aquilo que os juízes dizem que é. Embora muito discutível, autores como Michel Troper chegam a dizer que, aqui, haveria um ponto de forte aproximação de Kelsen com o realismo jurídico. Exageros à parte, é inegável que, no resultado final de sua proposta interpretativa, Kelsen acaba por aceitar ao menos parte dessa premissa. Principalmente se tivermos em conta a obra escrita por ele nos tempos em que vivenciou diretamente a experiência do common law. Veja como Kelsen está encalacrado em nossa alma.

É correto, portanto, afirmar que o ovo da serpente de tudo que discutimos até aqui (Lawfare, caso The Intercept, Lava Jato, punitivismo, ativismo judicial etc.) não se encontra em nenhuma outra tradição teórica que não a do próprio positivismo jurídico, seu conceito de Direito e a despreocupação para com a decisão jurídica. Afinal, a fórmula autoritas non veritas facit legis é que está na raiz do problema da discricionariedade não enfrentado pela tradição positivista (nas suas diversas versões); inserida em um contexto político com baixa tradição democrática, não poderia provocar nada diferente do que aquilo que a imprensa revelou nessas últimas semanas: o lado obscuro da justiça, algo como The dark side of the justice.

Interessante notar que importantes professores de importantes universidades fazem coro às relações conjuminadas de Sérgio Moro e a força-tarefa da Lava Jato. Ao lado disso, camadas numerosas de um baixo clero jurídico (como no Parlamento, no Direito há também essa camada) vociferam contra a Constituição, dizendo que a violência estrutural da sociedade é culpa do excesso de direito. Muitos confundem garantismo com marxismo. Assim, como jabuti não nasce em árvore, é possível perceber as razões pelas quais tantos reacionários saem do armário a cada dia em Pindorama.

Em outras palavras, considerando que vivemos em um país onde (i) a dogmática jurídica não se preocupa em constranger epistemologicamente os operadores do Direito; (ii) esses mesmos operadores nasceram e foram criados em uma tradição político-organizacional marcada pela modernidade tardia, onde aqueles que atuam em nome do dito “poder oficial” tomam “posse” de seus cargos; (iii) parcela considerável da comunidade jurídica acredita que Hans Kelsen era um exegeta, o que acaba por ocultar o real problema do positivismo pós-exegético, que é justamente a discricionariedade judicial, matriz do decisionismo; considerando tudo isso, temos de (re)afirmar a necessidade de direcionar empenho hermenêutico-compreensivo para a formulação de uma teoria da decisão judicial, vencendo o paradoxo positivista, qual seja, o de que basta a formulação de um é para o Direito, sem comprometimento algum com o como esse édeve ser aplicado. Sem controle das decisões, não há garantia de direitos. A jurisdição cumpre papel muito crucial dentro de uma democracia para que a entreguemos a qualquer vontade conjuntural que não a do Direito.

Uma palavra final. O papel da doutrina e da academia é criar constrangimentos epistemológicos para com o judiciário e o ministério público (nesse sentido, meu verbete Constrangimento epistemológico no Dicionário de hermenêutica). E que não se pense que é um exagero, um overstatement, dizer que o constrangimento epistemológico no âmbito do Direito é condição de possibilidade para uma democracia autêntica, que se respeite enquanto tal. Não, não é exagero. E recorro à história. Quando da edição das leis de Nuremberg, em 1935, os nazistas utilizaram-se exatamente do sistema jurídico como ferramenta de poder, fazendo com que ele fosse nada mais que um instrumento do Führer e seus objetivos. O processo que serviu de sustentação à instrumentalização nazi só foi possível através do fortalecimento de uma cultura cuja lógica servia de incentivo ao direcionamento interpretativo das leis – e só se direciona a interpretação inautêntica, por meio da qual o intérprete atribui sentido livremente –, conduzindo o raciocínio judicial de modo a adequar a aplicação da lei aos objetivos do regime. Qual é o ponto? Exatamente a expressão utilizada pelo professor Michael Stolleis, que o faz recorrendo à obra de outro professor-historiador Bernd Rüthers, para definir essa prática: Die unbegrentze Auslegung – uma interpretação... não-constrangida. Faltou constrangimento. Exatamente num momento em que, segundo o mesmo Stolleis, os nazistas “vulgarizavam” o Direito através da “infusão da moralidade”. Algo que venho criticando e denunciando em nosso contexto há anos. Por aqui, a infusão da moralidade no Direito está acabando com as garantias processuais.

Interpretação não-constrangida e moralização do Direito são ingredientes que vitaminam anseios autoritários. Se ainda havia dúvidas sobre isso, a história aponta que isso leva sempre à tirania .

Nota

(1) Cervantes, sempre genial, Quixote, sempre necessário: “Pois é possível que, andando comigo há tanto tempo, ainda não tenhas reconhecido que todas as coisas dos cavaleiros andantes parecem quimeras, tolices e desatinos, e são ao contrário realidades? E donde vem este desconcerto? Vem de andar sempre entre nós outros uma caterva de encantadores, que todas as nossas coisas invertem, e as transformam, segundo o seu gosto e a vontade que têm de nos favorecer ou destruir-nos. Ora aí está como isso, que a ti parece bacia de barbeiro, é para mim elmo de Mambrino, e a outros se figurará outra coisa”.

Lenio Luiz Streck
Doutor e pós-doutor em Direito.
Professor titular da Unisinos-RS e da Unesa-RJ. Advogado.
ORCID: 0000-0001-8267-7514
lenios@globomail.com
Recebido em: 02.08.2019
Aprovado em: 02.08.2019
Versão final: 10.08.2019



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