INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 322 - Setembro/2019





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Bechtlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

A tutela punitivista dos direitos das mulheres

Autora: Giovanna Migliori Semeraro

Nos últimos anos, a influência de perspectivas feministas no processo legislativo vem se intensificando, tendo como resultado uma série de leis que objetivam maior proteção da mulher. A esfera penal, especificamente, vem sendo a mais utilizada, e certos movimentos feministas comemoraram tais inovações legislativas como conquistas. Tal realidade coloca em cheque a delicada relação entre a criminologia crítica e a perspectiva de proteção aos direitos da mulher. Sobre esse assunto, nos debruçaremos brevemente.

O sistema de justiça criminal promete a proteção de bens jurídicos socialmente importantes por meio de um eficaz combate à criminalidade (considerada o “mal”), através das funções da pena: uma combinação entre (i) a retribuição (castigo), (ii) prevenção geral (intimidação erga omnes pela ameaça abstrata da pena), e

(iii) a prevenção especial (reabilitação individual através da execução penal). Tal promessa, aliada aos princípios penais e processuais penais liberais (a exemplo da legalidade, igualdade jurídica, devido processo legal), se mostra uma sedutora ideologia(1) – inclusive no âmbito da proteção à mulher.(2)

Contudo, o sistema de justiça criminal tem se mostrado ineficaz para a proteção das mulheres contra a violência. Não previne novas violências, não escuta os distintos interesses das vítimas, não contribui para a compreensão nem da violência nem da misoginia, e muito menos para a transformação das relações de gênero. E, em resposta, exigem-se ainda mais medidas criminalizadoras.(3)

Nesse sentido, respostas legislativas têm sido apresentadas: a título de exemplo, apenas no último ano foram promulgadas a Lei 13.715/2018, a Lei 13.718/2018, a Lei 13.771/2018, a Lei 13.772/2018, a Lei 13.827/2019, todas apresentando conteúdo penal objetivando a proteção das mulheres. Se estendermos nosso olhar temporal aos últimos anos, temos ainda a Lei Maria da Penha,(4) a reforma do Código Penal, em 2005, no que tange aos Crimes contra a Dignidade Sexual, e a criação do feminicídio em 2015.

Tal processo de criminalização, contudo, leva a uma realidade na qual a primeira e única resposta estatal, em face do surgimento de um conflito social, é o emprego da via penal – inclusive para a proteção de direitos de minorias, a exemplo das mulheres.(5)

Por vezes, justifica-se esse desejo por maior proteção penal à mulher em um aspecto simbólico: é inegável que a visibilidade que o Direito Penal dá aos bens jurídicos por ele protegidos é de grande relevância para fomentar a discussão a respeito de temas antes tratados unicamente como privados.

Contudo, o apelo ao aspecto simbólico deixa de lado a função instrumental do Direito Penal. Por essa perspectiva, o Direito Penal não mais procura tutelar, com eficiência, os bens jurídicos considerados essenciais para a convivência social, mas apenas produzir um impacto tranquilizador sobre o cidadão e sobre a opinião pública, acalmando os sentimentos, individuais ou coletivos, de justificada insegurança.(6) Tal concepção de Direito Penal para fins simbólicos, quando aplicado isoladamente, é necessariamente ineficaz.

A questão simbólica não exclui o fato de que esse mecanismo de aumento desmensurado de legislação penal produz efeitos reais. Afinal, o sistema criminal de justiça é orientado por funções intrinsecamente seletivas.(7) Embora o Direito Penal tenha a pretensão da universalidade, fato é que, na realidade, a criminalização de atos e pessoas é bastante distinta daquela apregoada pelo discurso oficial liberal.

Quando um novo tipo penal é estabelecido pelo legislador, o sistema cria uma ferramenta para criminalizar aqueles que violam o novo bem jurídico protegido. Todavia, para que essa criminalização seja efetivada, as agências do poder punitivo (aqui entendidas como aquelas relacionadas à aplicação da Lei Penal, principalmente as polícias e o Poder Judiciário) necessariamente procederão a uma escolha do meio de aplicação das novas normas.

Nesse sentido, o processo criminalizador possui duas fases distintas: a primeira, a chamada criminalização primária, se expressa no momento da elaboração de leis penais incriminadoras pretensamente abstratas e gerais – que certamente não são isentas de concretos interesses que permeiam o jogo político.

Tal projeto de criminalização primária é, entretanto, irrealizável. O imenso número de tipos penais, associado à escassa capacidade das autoridades responsáveis pela investigação e punição (tanto no que se refere à falta de recursos humanos quanto materiais) faz com que seja impossível que todos os crimes praticados pelas mais diversas pessoas se tornem objeto da persecução criminal.(8) Daí surgem duas hipóteses de ação para as agências executivas do poder punitivo: a inatividade absoluta ou a realização de uma nova seleção.

Ora, se não exercido, o poder punitivo tenderá a desaparecer, o que evidentemente exclui tal opção às autoridades. O resultado dessa equação é uma nova seleção das condutas típicas a serem criminalmente perseguidas, em razão de determinados atos e determinadas pessoas.

Essa nova seleção, a que Zaffaroni se refere como criminalização secundária, é praticada pelas agências que estão em contato direto com o crime e com o criminoso: principalmente as polícias, que serão as responsáveis por indicar ao Poder Judiciário aqueles que serão etiquetados como delinquentes.

A criminalização secundária é determinada por critérios formulados a partir da influência de outros agentes ligados ao sistema de justiça criminal, ainda que de forma indireta. Fala-se de agentes comunicativos, que atuam conforme os interesses políticos e econômicos dominantes, que elegem o inimigo que ocupará o centro da estrutura inquisitorial do sistema punitivo de cada época.

Tal estrutura faz com que somente determinados atos e determinadas pessoas sejam vistos como os únicos delitos e os únicos delinquentes, criando estereótipos pautados na seleção (i) de fatos grosseiros, cuja detenção e investigação é mais fácil; ou (ii) de pessoas que causem menos problemas aos agentes envolvidos (por sua incapacidade de acesso positivo ao poder político e econômico ou à comunicação massiva).(9) Forma-se assim a imagem pública do delinquente – facilmente identificada por simples análise do perfil da população carcerária.

Conforme bem nos mostra Vera Regina Pereira de Andrade, esse sistema é aplicado também no que tange às mulheres – sejam estas vítimas ou autoras de crimes. A lógica de controle social do sistema penal, que orienta os processos de criminalização e vitimização da mulher, não se afasta das opressões que têm lugar no contexto social.(10)

A mulher enquanto vítima de crimes é fragilizada, sendo relegada a seu papel de merecedora de cuidado e proteção. Tal imagem reforça um tipo específico de mulher que pode ser vítima: a título de exemplo, no que tange a crimes sexuais, a ideia de “mulher honesta”, extinta do Código Penal no ano de 2005, ainda perdura de forma simbólica, com a análise, nos casos concretos, do comportamento da vítima.(11)

É importante lembrar também que, enquanto muito se fala a respeito da proteção à mulher enquanto vítima de crimes, por vezes se renega a questão da mulher enquanto autora de crimes nas discussões sobre o tema .

A mulher que não se submete aos papéis a ela impostos é, historicamente, criminalizada. Não se deve esquecer, afinal, que a primeira obra que discorreu sobre a legitimidade do poder punitivo sistematizado era voltado contra as mulheres: o Malleus Maleficarum, traduzido como “O Martelo das Feiticeiras”, de autoria de Heirich Kramer e James Spreger, é a obra teórica fundamental para a consolidação do modelo integrado de criminologia.(12) Tal obra elege a bruxa como a principal inimiga da sociedade, considerando-a o mal em si.

A caça às bruxas, segundo Silvia Federici, foi extremamente útil para normalizar comportamentos e disciplinar corpos femininos – elemento essencial para a imposição de um novo sistema econômico capitalista.(13)

Segundo Rose Muraro, após a intensa repressão inquisitorial, a mulher é confinada ao espaço doméstico, e a subordinação feminina passa a ser reforçada a partir de leis: o discurso jurídico incorpora preceitos católicos, dando origem a uma série de regramentos que legitimam a inferioridade feminina e o privilégio da masculinidade.(14)

Tal lembrança histórica nos serve à constatação de que o Direito Penal sempre se volta ao inimigo social de determinada época, sempre para fins de disciplina. Isso nos serve, inclusive, para analisar determinadas condutas típicas, a exemplo da criminalização do aborto.

A análise da criminologia sob o aspecto feminista não pode ignorar o significativo aumento, nos últimos anos, de mulheres privadas de sua liberdade. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, entre 2000 e 2016 houve um crescimento da população carcerária feminina de 455%. No mesmo período, o encarceramento masculino também cresceu, mas em taxa bastante inferior. Hoje, o Brasil é a quarta maior população carcerária feminina no mundo.(15)

A explicação para este fenômeno do aumento do encarceramento feminino parece orbitar a questão do rigoroso tratamento dado ao delito de tráfico de drogas. A partir de 2006, das mulheres encarceradas, 62% respondem ou foram condenadas por tráfico de drogas, e 11% por roubo. Assim, o agravamento da sanção penal culminada a tal delito, somado à ausência de critérios específicos que auxiliem a identificação da mercancia ou posse de entorpecentes constituem elementos essenciais para a compreensão do encarceramento feminino.

Ao mesmo tempo, o perfil social das mulheres presas não se distancia muito daquele percebido entre os homens encarcerados. A grande maioria, geralmente negras, se encontra em situação de vulnerabilidade econômica; 50% da população carcerária feminina não tinha o ensino fundamental completo; e 74% têm ao menos um filho. Segundo a Pastoral Carcerária, 95% das mulheres encarceradas foram vítimas de violência em algum momento de sua vida antes da prisão.(16)

Sob essa ótica, a discussão sobre proteção à mulher passa necessariamente pela análise de outros tipos de opressão.

A aplicação do aparelho disciplinar nas mulheres é tão rígida quanto nos homens, com certas agravantes relacionadas a seu corpo e sua sexualidade: o sistema prisional é pensado por homens e para homens. Questões biologicamente femininas de gravidez, amamentação e menstruação não são tratadas pelo sistema, ou são tratadas de forma não satisfatória ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Assim, a análise feminista da proteção à mulher deve passar, necessariamente, pela criminologia crítica,(17) que entende, de um modo geral, o Direito Penal e a pena como um exercício de poder destinado a manter as estruturas sociais que sustentam as mais diversas opressões e desigualdades, buscando normalizar comportamentos e neutralizar indivíduos indesejáveis.

Uma parte dos movimentos feministas vem buscando afirmar os direitos das mulheres no âmbito primordialmente penal, acreditando ser este capaz de transformar a realidade – o que a experiência mostra ser uma percepção errônea.

É necessário sempre lembrar que a mão que pune o agressor é a mesma que disciplina a mulher. Fortalecer o maquinário penal para fins de proteção à mulher implica o recrudescimento do mesmo sistema que encarcera um número cada vez maior de mulheres.

E tudo isso porque o Direito – e o Penal em específico – sempre reduz o conflito social (no caso, o conflito de gênero) a um problema individual. A relação jurídica individual é a única arena na qual o Direito realiza seu movimento,(18) ignorando conceitualmente os problemas sociais ou coletivos.

Nesse contexto, os movimentos feministas e outros ativistas devem participar dos debates e construções de novas estratégias para lidar com a proteção à mulher. Mas deve-se buscar não somente sanções penais alternativas, e sim alternativas ao próprio sistema de justiça criminal.

Notas

(1) Andrade, Vera Regina Pereira. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista de Direito Público, n. 17, p. 52-75, jul.-ago.-set./2007.

(2) Carvalho, Salo de. Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 143-169.

(3) Andrade, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: O Controle Penal para Além da (Des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012.

(4) A Lei Maria da Penha, embora não seja uma lei penal, assumiu esse caráter primordial. Quase treze anos após sua implementação, o aspecto interdisciplinar da lei parece ter sido rebaixado, abrindo espaço primordialmente para as questões penais e processuais penais. A título de exemplo, o artigo 8º, incisos V e IX da lei preveem a promoção de atividades educativas de prevenção, destinadas principalmente ao público escolar – o que jamais foi implantado.

(5) Neste raciocínio também se aplica a recente construção jurisprudencial da criminalização da homofobia.

(6) Zaffaroni, Eugenio Raul. Manual de direito penal. 13. ed.. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2019 .

(7) Batista, Nilo; Zaffaroni, Eugenio Raúl. Direito penal brasileiro: Primeiro Volume. Rio de Janeiro: R, 2003. p. 50-51.

(8) Idem, ibidem, p. 44.

(9) Idem, ibidem, p. 45. Segundo Zaffaroni, existem dois outros critérios de seleção que fogem dos padrões de “clientela” do sistema penal: a criminalização pela realização de atos extremamente chocantes e brutais, e a criminalização por falta de cobertura, que atinge um indivíduo que dificilmente seria selecionado pelo sistema de justiça criminal, mas, em razão de uma disputa de poder, se encontra em estado de vulnerabilidade.

(10) Andrade, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia...

(11) Coulouris, Daniella Georges. A desconfiança em relação à palavra da vítima e o sentido da punição em processos judiciais de estupro. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010.

(12) Batista; Zaffaroni, op. cit., p. 46.

(13) Federici, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.

(14) Muraro, Rose Marie. Breve introdução histórica. In: Kramer, Heinrich; Sprenger, James. Malleus Maleficarum: o martelo das feiticeiras. 22. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2011. p. 05

(15) BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN MULHERES. 2. ed. Brasília/DF, 2018.

(16) PASTORAL CARCERÁRIA; INSTITUTO CONECTAS DE DIREITOS HUMANOS; INSTITUTO SOU DA PAZ. Penitenciárias são feitas por homens e para homens. 2012. Disponível em: . Acesso em: 26 jun. 2019.

(17) Andrade, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia...

(18) Pachukanis, E.B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Editora Acadêmica, 1988. p. 57.

Giovanna Migliori Semeraro
Bacharela em Direito pela PUCSP.
Mestra em Teoria e Filosofia do Direito pela USP.
Professora de Direito Penal e Filosofia do Direito da UniSãoRoque. Advogada.
ORCID: 0000-0002-0638-7707
giovanna.migsem@gmail.com
Recebido em: 02.07.2019
Aprovado em: 25.07.2019
Versão final: 12.08.2019



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