INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 322 - Setembro/2019





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Bechtlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

EIXO 3: Raça, gênero e sexualidade nas Ciências Criminais
Criminalização da homofobia: ação do sujeito coletivo, punição do sujeito individual

Autor: Geraldo Miniuci

Introdução

Concebido nos anos 1970 para, no âmbito da psicologia, designar “a aversão (ou temor) de estar no mesmo lugar, ou em contato próximo com homossexuais e, no caso dos próprios homossexuais, a autoaversão” (Secretaria de Direitos Humanos, 2012, p. 7), o termo homofobia é utilizado hoje para referir-se aos preconceitos negativos existentes acerca da orientação sexual ou da identidade de gênero de alguém e, como resultado desses preconceitos, aos atos de discriminação e às ações violentas praticadas contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, a chamada população LGBT.

São conhecidos e frequentes, no Brasil, os casos de uso da violência contra esse grupo. Em 2018, morreram no país 420 pessoas LGBT: 320 homicídios e 100 suicídios. Embora inferior aos 445 registrados em 2017, o número de 2018 significa que, pelo segundo ano consecutivo, mais de 400 pessoas LGBT perderam a vida (Grupo Gay da Bahia, 2018, p.1).

Desses dados empíricos, pode-se extrair que, de um lado, há um sujeito coletivo, cujos membros sofrem agressões de forma indiscriminada, independentemente de suas identidades pessoais. De outro lado, percebe-se igualmente um sujeito coletivo formado por membros que compartilham entre si algum tipo de aversão a pessoas LGBT. A existência desse outro sujeito coletivo pode ser percebida não somente pelos resultados das ações que seus membros executam contra as vítimas do grupo agredido, mas principalmente pelo número de suicídios e a relação entre eles e o meio social.

Noutras palavras, tanto as agressões homicidas como os suicídios não são meros fenômenos individuais, mas sociais, que resultam de uma ação coletiva, realizada por um sujeito coletivo, mediante ações ou omissões dos sujeitos individuais que a compõem. Não são fatos isolados, que acontecem aqui ou ali, mas ações reiteradamente praticadas, persistindo ao longo de gerações, independentemente de quem sejam os agressores. Em vez de um acidente esporádico no interior da sociedade, a homofobia, ao contrário, faz parte da identidade dessa sociedade, constituindo uma de suas características, ao lado de outras que, através das gerações, sedimentaram-se no etos social. Por essa razão, há muito mais pessoas responsáveis pelas ações homofóbicas, além dos agressores. Quem agride é apenas o executor de um veredito dado pela sociedade. Reforçam essa percepção os casos de suicídio, em que a morte não resulta da ação direta de um agente, mas das hostilidades advindas do meio social. Não são agressões específicas, que levam ao suicídio de pessoas LGBT, mas uma sucessão de ataques, físicos ou verbais, praticados por diversos sujeitos, ao longo dos anos, que podem estar relacionados ao fenômeno.

Em suma, há uma tensão entre duas coletividades: de um lado, o grupo social LGBT, de outro, uma coletividade anônima, porém existente como sujeito graças ao compromisso de seus membros com a intolerância. Nas próximas páginas, serão analisadas, de um lado, essas duas dimensões da homofobia, a coletiva e a individual, e, de outro, a relação que o Direito tem com ambas. Como será visto, na dimensão coletiva haverá um sujeito coletivo, cuja ação ficará longe do alcance da norma jurídica, que se voltará sobretudo para o sujeito individual. Criminaliza-se a homofobia, punindo-se o indivíduo, mas deixa-se o sujeito coletivo ao sabor da política, isto é, dependente dos interesses, das noções de conveniência e de oportunidade de suas lideranças.

Nesse sentido, serão passados em revista o conceito de sujeito coletivo, de ação coletiva e de omissão coletiva. Em seguida, examina-se a responsabilidade política pelas ações ou omissões coletivas. Por responsabilidade política entenda-se a reponsabilidade pelas escolhas feitas, pelas ações praticadas em seguida, pelas consequências dessas ações e pelas omissões. Age e é responsável politicamente, por exemplo, não somente aquele que vota em eleições, mas também aqueles que, nos grupos sociais, participam do processo decisório de seu grupo, ou aqueles que, na sociedade, agindo em conjunto, promovem manifestações coletivas, com demandas específicas ou sem elas. A responsabilidade política é uma responsabilidade pelos rumos da sociedade: a partir de determinada concepção de mundo, escolhas são feitas, intenções são formadas, ações são realizadas, há consequências, positivas ou negativas, e, além das lideranças do Estado, muitos podem ser responsabilizados politicamente, isto é, muitos podem ser apontados como causadores de determinada ação ou situação, ou como coniventes com elas, ou, se não, ainda simplesmente como omissos em relação a elas. Nesse sentido, não há, por exemplo, apenas a responsabilidade política do parlamentar homofóbico; existe também a responsabilidade política dos cidadãos que o elegeram.

A principal consequência dessa responsabilização está no fato de que, uma vez que se a reconheça, a responsabilidade política de uma coletividade permite justificar perante toda a gente, sobretudo perante aqueles indivíduos que não fazem parte da coletividade transgressora, a adoção de políticas que tratarão os grupos sociais excluídos de forma diferenciada, como, por exemplo, as políticas de ação afirmativa, no contexto das ações contra o racismo e a favor da inclusão racial. No caso da responsabilidade política das coletividades homofóbicas, reconhecê-la poderá justificar ações de outros tipos, não no sentido de promover inclusão social, mas, no de promover a tolerância.

Essa proposta de diferenciar o sujeito coletivo do sujeito individual e, nessa diferenciação, estabelecer as responsabilidades que cabem a cada um utiliza conceitos construídos em debate interdisciplinar, realizado no âmbito da filosofia, da sociologia e do Direito, cujo objeto são tanto as responsabilidades moral, política e jurídica de uma coletividade, como os conceitos de coletividade e de intenção coletiva.(1) O enfrentamento dessas questões pode seguir um “coletivismo metodológico” (GERBER, 2010, p. 72), que então se referirá a conceitos do tipo “espírito de um grupo” ou “subconsciente coletivo”, ou, se não, o que é mais comum, ele pode pautar-se por um “individualismo metodológico”, em cuja perspectiva as pesquisas sobre coletividades e sobre intenção, ação e reponsabilidade coletivas terão em consideração o sujeito coletivo e o individual, e as questões orientadoras podem ser colocadas nestes termos: como se relacionam esses sujeitos? Em que medida o comportamento de um é determinado pelo outro? O indivíduo é autônomo para decidir ou ele decide influenciado pelas ações e intenções do sujeito coletivo do qual faz parte?

2 Os conceitos de sujeito coletivo, de ação e de omissão coletivas

2.1 Sujeito coletivo

Objeto deste artigo, as pessoas LGBT formam um sujeito coletivo, cuja gênese se encontra nas lutas por reconhecimento travadas no Brasil, sobretudo depois da redemocratização, no final dos anos 1970 (REVISTA CULT, 2019), quando o grupo começou a conquistar visibilidade. Se grupos étnicos ou religiosos fundam suas identidades em tradições históricas ou em sistemas de crenças, os grupos LGBT construíram a sua identidade num passado e num presente de perseguições e de violência. A discriminação que pode reforçar os laços de pessoas que já possuem uma identidade comum irá, no caso das comunidades LGBT, constituir a própria identidade do grupo, pois será ela o denominador comum de todas as pessoas afetadas por ações homofóbicas.

Reunidas sob uma sigla, as pessoas LGBT tornaram-se visíveis, ao contrário de seus agressores, que permanecem no anonimato, formando um sujeito coletivo homofóbico invisível, sem bandeiras, mas cuja existência se prova pelas ações que pratica, ações que somente um sujeito coletivo pode realizar. Quais seriam elas?

2.2 Ação coletiva

Trata-se do conjunto de ações individuais, realizadas ao longo do tempo, em diversas localidades, com o mesmo objetivo, sendo essa meta compartilhada pelo elemento que confere a um coletivo amorfo a sua identidade. Nesse sentido, “os danos causados à comunidade LGBT, expressos nos assassinatos, nas agressões e nos suicídios de homossexuais não são danos que apenas uma pessoa consiga realizar: ninguém sozinho assassina, agride ou leva ao suicídio um contingente de seres humanos estatisticamente relevante, contado aos milhares. Somente uma ação coletiva, realizada por vários indivíduos, ao longo de gerações, seria capaz de produzir semelhante resultado” (MINIUCI, 2017, p. 198).

Elemento comum a todas as agressões contra pessoas LGBT, a homofobia confere unidade e identidade a parcela substancial de indivíduos que não se conhecem, pertencem a extratos sociais diversos, têm graus de escolaridade distintos, enfim, são diferentes em tudo, exceto na aversão que sentem por aquilo que não se enquadre nos padrões heteronormativos. Esses indivíduos, ao compartilharem os mesmos preconceitos, formam um sujeito coletivo, que sobrevive no tempo e no espaço. Os sujeitos individuais morrem, mas o sujeito coletivo do qual fazem parte resiste, da mesma forma como a nação sobrevive aos seus nacionais.

Prova-se a existência do sujeito coletivo homofóbico apontando-se para danos que não poderiam ter sido causados pela ação individual de sujeitos isolados, mas de sujeitos que, ao contrário, agem simultânea ou sucessivamente, de modo espontâneo ou previamente planejado e coordenado. Ainda que haja ações individuais, elas não farão parte de um fenômeno isolado e excepcional, mas de uma tendência na sociedade, sendo por isso parte de uma ação coletiva, isto é, parte de um conjunto de ações praticadas por sujeitos individuais, que agem compartilhando uma determinada intenção geral de atingir um certo objetivo. Essa intenção compartilhada não gera imediatamente uma ação, mas sim intenções individuais de agir, e somente essas intenções individuais produzirão alguma ação. Quando, por exemplo, um grupo de 50 manifestantes depreda uma boate gay, há, de um lado, a intenção compartilhada de atacar o estabelecimento, e, de outro, as intenções individuais acerca do modo como cada um executará o ataque: uns lançam pedras, outros ateiam fogo, outros ainda usam armas de fogo etc.

2.3 Omissão coletiva

Acrescente-se, por fim, que, além da ação coletiva realizada por sujeitos coletivos, há também a omissão coletiva. Se certos grupos sociais existem apenas porque agem, como as coletividades de formação espontânea, também pode-se pensar em grupos que existem justamente porque se omitem, não agindo, tal como os consumidores que, mantendo padrões insustentáveis de consumo, nada fazem para mudá-los, ou dos produtores que utilizam métodos de produção igualmente nocivos ao ambiente, sem buscar alternativas. Ou daqueles que assistem, sem nada fazer, a uma pessoa ser agredida na rua. Nesses casos, e em outros semelhantes, o que caracteriza a coletividade é sua inação, sua ausência de intenções compartilhadas no sentido de fazer alguma coisa devida.

Em suma, há um sujeito coletivo homofóbico, cuja existência se prova com fenômenos empiricamente verificáveis, capaz de realizar ações coletivas a partir da conjugação das intenções compartilhadas pelos componentes do grupo com as intenções individuais de cada componente. Essa mesma coletividade pode igualmente omitir-se, nada fazendo quando tiver o dever moral, político ou jurídico de agir.

Considerações finais

Embora haja entre as pessoas LGBT tantas diferenças e semelhanças como as existentes entre heterossexuais, o discurso homofóbico torna presente apenas um aspecto da vida LGBT, precisamente a orientação sexual do sujeito. Todo o resto é ignorado, isto é, as preferências políticas, o caráter pessoal, os talentos. Ignora-se, deliberadamente, que, entre homo e heterossexuais, haja mais semelhanças do que diferenças.

Essa coletividade homofóbica é identificável pelas ações que seus membros praticam, concertada ou espontaneamente. No Brasil, o coletivo homofóbico muitas vezes esconde sua face, não reclama reconhecimento, nem conta com sigla ou identidade específica. Seus membros, no entanto, embora espalhados por diversos segmentos sociais, comungam da mesma fobia, e é essa comunhão que os torna um sujeito coletivo.

As ações dessa coletividade podem ensejar, pelo menos, dois tipos de responsabilidade política: a responsabilidade do coletivo pela ação ou omissão do coletivo e a responsabilidade do indivíduo na ação do coletivo. Se a responsabilidade política do sujeito coletivo na ação coletiva decorre de sua ação ou omissão, a responsabilidade política do sujeito individual na ação coletiva recai sobre indivíduos que respondem por sua conduta pessoal nas ações de seu Estado, de sua igreja, de sua comunidade, de seu grupo social, tendo, porém, o benefício da dúvida e a possibilidade de exonerar-se individualmente da responsabilidade pelos atos do coletivo. O elenco de pessoas que aqui pode ser responsabilizado compreende não somente quem executa o ato, mas também aqueles que o incitam, que colaboram com os perpetradores ou que lhes fazem vistas grossas.

Esses dois tipos de responsabilidade política – a responsabilidade do coletivo por suas próprias ações e a responsabilidade individual nas ações do coletivo –, poderão ser transformados em responsabilidade jurídica, caso, evidentemente, haja vontade política nesse sentido. Se essa transformação ocorrer apenas na esfera penal, haverá punição do indivíduo, enquanto o sujeito coletivo permanecerá intocado; se ocorrer no plano do Direito Administrativo e do Direito Civil, leis ordinárias bastarão para estabelecer sanções que atinjam sujeitos individuais e sujeitos coletivos, como, por exemplo, advertência, multas em unidades fiscais ou, se não, suspensão ou cassação de licença para funcionamento. Nesse caso, coexistem a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica e a responsabilidade subjetiva do indivíduo, assegurado o direito de regresso daquela contra este.

Em resumo, vista como a manifestação de um sujeito coletivo, e não como mero amontoado de casos isolados de agressão a pessoas LGBT, a homofobia revela-se como fenômeno que deve ser abordado não mais pela perspectiva do sujeito individual e da dualidade perpetrador-vítima, mas pela ótica do sujeito coletivo por ela constituído. Nesse sentido, será possível perceber que há , de um lado, grupos sociais que não são sujeitos de direito, mas apenas um sujeito plural, que não poderá ser responsabilizado juridicamente pelas ações homofóbicas, embora continue politicamente responsável. De outro lado, existem grupos ou coletividades com status de sujeito de direito, tais como, por exemplo, condomínios, empresas, clubes e escolas, no plano do Direito interno, e o Estado, no do Direito internacional. Por ação ou omissão, quando não ambos, todos eles podem ser objetivamente responsabilizados pelas ações homofóbicas praticadas em seus domínios, sem prejuízo da responsabilidade individual. Para além da criminalização da homofobia, portanto, existem alternativas de responsabilização que mereceriam ser exploradas. Voltadas para a coletividade e não seus membros, essas opções talvez sejam mais eficientes do que medidas que atingem apenas sujeitos individuais e poupam o coletivo.

Referências

BRASIL. Secretaria de Direitos Humanos (SDH). Relatório sobre violência homofóbica no Brasil: ano de 2011/Secretaria de Direitos Humanos; Priscila Pinto Calaf, Gustavo Carvalho Bernardes e Gabriel dos Santos Rocha (organizadores). Brasília, DF: Secretaria de Direitos Humanos, 2012. 138 p.

Bratman, Michael. “Geteilte Absichten”. Deutsche Zeitschrift für Philosophie 55(3), p. 409-424, 2007.

Gerber, Doris; Zanetti, Véronique. Kollektive Verantwortung und internationale Beziehungen.Berlin: Suhrkamp, 2010.

Gilbert, Margaret. Collective guilt and collective guilt feelings. The Journal of Ethics, v. 6, n. 2, p. 115-143, 2002. Collective Responsibility.

GRUPO GAY DA BAHIA – (GGB). Mortes violentas de LGBT+ no Brasil. Relatório 2018. Disponível em: https://homofobiamata.files.wordpress.com/2019/01/relatorio-2018-1.pdf.

Miniuci, Geraldo. Genocídio: crime coletivo, responsabilidade individual. Rev. direitos fundam. democ., v. 22, n. 3, p. 197-214, set./dez. 2017. DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v22i3742.

REVISTA CULT. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/dossie-o-movimento-lgbt-brasileiro-40-anos-de-luta/. Acesso em: 30 mai. 2019.

Nota

(1)    Dentre outros, cf. BRATMAN, M. (2007); GERBER, D.; ZANETTI, V. (2010); GILBERT, M. (2002).

Geraldo Miniuci
Livre-docente em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP. Doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP. Professor Associado do Departamento de Direito Internacional e Comparado da Faculdade de Direito da USP.
ORCID: 0000-0002-2551-6981
gminiuci@usp.br
Recebido em: 27.06.2019
Aprovado em: 23.07.2019
Versão final: 08.08.2019



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