Luigi Barbieri Ferrarini
Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Bechtlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias
Autores: Walter Barbosa Bittar, Luiz Antonio Borri e Rafael Junior Soares
Tendo como base leading case fixado, a partir do julgamento pelo STF do HC 127.483/PR, inúmeros julgados no país seguiram a compreensão de que o terceiro delatado não possui legitimidade para discutir o acordo de colaboração premiada(1) firmado entre Ministério Público e/ou delegado de polícia e colaborador, tendo como um de seus principais fundamentos o entendimento de que a natureza jurídica de negócio jurídico personalíssimo respalda essa espécie de óbice legal e impede eventuais questionamentos de terceiros delatados.(2)
A despeito dessa controversa percepção quanto à natureza jurídica da colaboração premiada, o próprio STF, de certa forma, relativizou posteriormente seu próprio entendimento quanto à inadmissibilidade da discussão do acordo pelo terceiro delatado, pela ocasião do julgamento do HC 151.605/PR.
Esse caso versou sobre a hipótese de autoridade com foro por prerrogativa de função (então governador do Estado) poder questionar acordo de colaboração, quando este possua em seu conteúdo declaração que impute a prática de fato típico, sendo decidido na ocasião que “ainda que seja negada ao delatado a possibilidade de impugnar o acordo, esse entendimento não se aplica em caso de homologação sem respeito à prerrogativa de foro”. (Informativo 895/STF).
Quanto às discussões no âmbito da natureza jurídica da delação premiada e seu reflexo legal, é certo que tanto na doutrina como na jurisprudência, à luz do que disciplina a Lei 12.850/13, adotou-se a perspectiva de que o acordo de colaboração premiada (que não se identifica com as declarações do colaborador) é um meio de obtenção provas.(3) Nessa trilha, embora a jurisprudência tenha mantido, desde 2015, a inadmissão de o delatado discutir os termos do acordo, a doutrina,(4) aproximando a colaboração premiada de outros meios de obtenção de prova (como a interceptação telefônica e a busca e apreensão), passou a sustentar a viabilidade de questionamento da licitude do acordo por terceiros em razão de sérios reflexos produzidos na esfera de direitos do delatado, defendendo, inclusive, a ilicitude da prova produzida.
Essa posição culminou com uma sequência de práticas que, de certa forma, terminaram por trazer mais instabilidade à utilização de acordos de delação, na medida em que, frequentemente, membros do Ministério Público valiam-se dessa espécie de blindagem contra terceiros, conferida pelo entendimento da Suprema Corte, impedindo que eventuais prejudicados questionassem o acordo de colaboração, para negociar prêmios penais não previstos ou de caráter extrapenal, algumas vezes contrariando vedação legal (caso da improbidade administrativa(5)), e até mesmo inviabilizando o contraditório dos delatados, mediante a inserção de cláusulas que obrigam o delator a confirmar exatamente a versão que interessa à acusação.
Diante dessa situação inusitada, que veio à baila e dominou o entendimento jurisprudencial, é forçoso recordar que a colaboração premiada deve possuir os requisitos dispostos em lei da regularidade, legalidade e voluntariedade para que ocorra uma homologação válida pelo juiz, o qual, nesse momento, examinará o controle legal que vai desde o cabimento do acordo até mesmo aos efeitos propostos pela avença.
Denota-se que realmente o delator terá interesse em discutir acordos que tenham desrespeitado tais requisitos, em razão da característica da legalidade que rege os acordos de colaboração premiada, para que surtam os efeitos tanto para os delatores quanto para os delatados.(6)
Ou seja, as cláusulas dispostas no acordo de colaboração premiada que interfiram em direitos fundamentais, dentre elas a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal, não podem deixar de ser discutidas pelo delatado, quando afetar diretamente a própria construção de sua defesa. A questão que se coloca é que se deve identificar se há existência de nexo de causalidade entre as cláusulas e eventuais interesses ou prejuízos do delatado, visto que eventual vício constatado acerca dos requisitos poderá redundar na imprestabilidade, por força da ilicitude, das declarações produzidas e seus desdobramentos.
O entendimento, e resistência à posição atualmente majoritária, é de certo modo acompanhado pelo ministro Gilmar Mendes, quando, em julgado recente, propôs a superação da posição firmada a partir do HC 127.483/PR, destacando que “em razão do impacto na esfera de direitos de terceiros e da necessidade de legalidade dos benefícios penais oferecidos pelo Estado, o acordo de colaboração premiada deve ser passível de impugnação e controle judicial” (Informativo 941/STF).(7) Em suas palavras, o respeito à legalidade teria como propósito garantir a isonomia e, principalmente, evitar a corrupção dos imputados por meio do oferecimento de prêmios desmedidos.
Estabelecidas essas premissas, passa-se a analisar os motivos pelos quais tal entendimento deve ser revisto, a partir da análise da natureza jurídica da própria delação premiada que, após a promulgação da Lei 12.850, precisa ser entendida, pois a partir de sua configuração permitiu estabelecer as bases legais e dogmáticas para se compreender que o terceiro delatado possui legitimidade para questionar determinados pontos de eventual acordo.
O ponto central é que a natureza jurídica da delação é policrômica, podendo ser definida, para além do entendimento já sedimentado, de meio de obtenção de prova, também a sua natureza material e, ainda, de negócio jurídico. Para tanto é preciso conhecer alguns pontos importantes, que configuram essas diversas naturezas.
Quanto à natureza material, deve ser observado que a legislação pátria sobre o tema é esparsa, incidindo sobre diversos diplomas legais, existindo dois modelos em plena vigência: um anterior e outro posterior à promulgação da Lei 12.850/13. A questão é que, a partir da vigência da Lei 9.807/99, por força de seus artigos 13 e 14, época em que não existiam quaisquer normas procedimentais, a legislação brasileira, que já previa a possibilidade de diminuição e até isenção de pena, em diversos dispositivos, por força do que a doutrina configura como causa de liberação de pena (comportamento positivo pós-delitivo(8)), passou a admitir a concessão de beneplácitos, sem qualquer distinção quanto à tipicidade, espraiando o instituto da delação por todo o ordenamento jurídico. Essas normas, quanto a sua natureza jurídica, são identificadas como de Direito Penal Material.
A identificação da natureza jurídica material, e a vigência das respectivas normas, explica por que a homologação do acordo, prevista a partir da Lei 12.850/13, não é obrigatória para a concessão dos prêmios aos colaboradores, desde que o conteúdo da colaboração seja efetivo sendo, portanto, um direito subjetivo do agente . (9)
No tocante à natureza jurídica de negócio jurídico, já admitida pela jurisprudência(10) e doutrina,(11) devem ser acrescentadas outras ponderações e argumentos para demonstrar que há possibilidade do questionamento dos acordos por terceiros.
Necessário observar que o negócio jurídico é o ato pelo qual dois ou mais declaram sua vontade, instaurando uma relação jurídica, subordina à vontade declarada, nos limites consentidos pela lei,(12) tendo como efeitos a constituição, modificação, ou extinção das relações jurídicas, vinculando obrigatoriamente as partes intervenientes.(13) Assim, é possível afirmar que o negócio jurídico é um ato juridicamente relevante, cuja origem é a exteriorização da vontade (essencial para o reconhecimento de uma delação válida); e não é uma exclusividade do Direito Privado, podendo assim ser aplicado nas demais áreas do Direito.(14)
Assim sendo, resta claro que os delatados poderão discutir o acordo, que deve ser pensado à luz dos princípios processuais penais, corolários da Constituição Federal, desde que o negócio jurídico, evidentemente a depender do caso concreto, afete o contraditório e a ampla defesa.
Essa face da natureza jurídica difere daquela atualmente dominante, decorrente do entendimento exarado pela Corte Suprema, no já referido HC 127.483/PR, ocasião em que restou consignado que o acordo de colaboração não atinge diretamente os corréus, mas apenas as declarações prestadas pelo colaborador, que poderão ser contraditadas em juízo, admitindo-se a natureza de negócio jurídico personalíssimo (e aqui o ponto a ser melhor refletido).
Vinicius Vasconcellos demonstra que o oferecimento de benefícios ilegais no acordo ao colaborador, por exemplo, poderá inferir na esfera dos delatados, de modo que, “é fundamental, em prol da proteção da legalidade dos atos estatais, que haja a possibilidade de impugnação do acordo de colaboração premiada pelos corréus”.(15)
Essa realidade implica impor ao delatado o direito de impugnar todas as declarações e elementos probatórios, decorrentes do acordo homologado, a fim de possibilitar um contraditório real, ainda que diferido, garantindo, assim, à defesa técnica a análise da legalidade da prova.
Em suma, a partir da impossibilidade do reconhecimento da natureza jurídica de negócio jurídico personalíssimo, e mesmo que se reconheça contaminação de um instituto de Direito Privado, em sede de procedimento persecutório penal, decorrentes das negociações entre acusação e defesa, reconhece-se a natureza jurídica de negócio processual penal, cuja admissibilidade depende do respeito aos princípios constitucionais, em especial para garantir a plenitude do exercício da defesa.
Portanto, é caso de se repensar – e superar – o entendimento firmado no precedente do Supremo Tribunal Federal, quanto à natureza jurídica de negócio jurídico personalíssimo, tendo em vista que a casuística trouxe dificuldades quanto à posição firmada naquela oportunidade, até mesmo diante da complexidade para se definir a natureza jurídica da colaboração premiada por força das várias facetas, visto que o delatado sofre prejuízos para o exercício de defesa decorrente da impossibilidade de questionamento do acordo de colaboração premiada, situação que fica melhor situada quando se admite a natureza de negócio jurídico, permitindo, assim, a discussão do acordo pelo terceiro delatado, eventualmente prejudicado em face de garantias individuais.
Notas
(1) No presente trabalho, os termos “colaboração premiada” e “delação premiada” serão tratados como sinônimos, tendo em vista que o primeiro visa apenas afastar a carga pejorativa da conduta. No mesmo sentido, ver: Bitencourt, Cezar; Busato, Paulo. Comentários à Lei de Organização Criminosa. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 115.
(2) AgInt no HC 392.452/PR, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 13/06/2017, DJe 23/06/2017; AgRg no Inq 1.093/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, CORTE ESPECIAL, julgado em 06/09/2017, DJe 13/09/2017; RHC 43.776/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 14/09/2017, DJe 20/09/2017; TJPR - 2ª C.Criminal - AC - 1537104-1 - Região Metropolitana de Londrina - Foro Central de Londrina - Rel.: Laertes Ferreira Gomes - Unânime - J. 30.11.2017.
(3) Vasconcellos, Vinicius Gomes de. Colaboração premiada no processo penal. São Paulo: RT, 2017. p.60/64.
(4) Cruz, Flávio Antônio da. Plea bargaining e delação premiada: algumas perplexidades. Revista Jurídica da Escola Superior de Advocacia da OAB-PR, ed. 02, dez. 2016, p. 62; Vasconcellos, Vinicius Gomes de. Colaboração premiada no processo penal. São Paulo: RT, 2017. p. 104/110 e 257/260; Borri, Luiz Antonio; Soares, Rafael Junior. A possibilidade de o terceiro delatado discutir o acordo de colaboração premiada: um necessário paralelo com outros meios de obtenção de prova. In: Pereira, Janaína Braga Norte; Ribeiro, Luiz Alberto Pereira; Tanizawa, Paulo Henrique Guilman. (org.). Direito e democracia: ensaios jurídicos sob a perspectiva dos direitos humanos e fundamentais. Birigui-SP: Boreal, 2018. p. 181-193.
(5) Bittar, Walter Barbosa. O modelo de investigação mista: a improbidade administrativa e os limites ao prêmio da delação premiada. Disponível em:
(6) Pense, por exemplo, na concessão da imunidade para o líder da organização criminosa, em flagrante desrespeito ao art. 4º, §4º, da Lei 12.850/13. A colaboração premiada está claramente contrariando a legislação, além de prejudicar eventuais coinvestigados/corréus que eventualmente quisessem colaborar, pois a extensão dos seus prêmios será reduzida ou até mesmo inviabilizada a realização do acordo.
(7) O tema está em julgamento nos habeas corpus 142205/PR e 143.427/PR, perante a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal.
(8) Carvalho, Érika Mendes de; Ávila, Gustavo Noronha de. Reflexões sobre a (i)legitimidade da delação premiada como comportamento pós-delitivo na execução penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 153, mar. 2019.
(9) Santos, Marcos P. D. Colaboração unilateral premiada como consectário lógico das balizas constitucionais do devido processo legal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 3, n. 1, p. 131-166, jan./abr. 2017. Disponível em:
AgRg no REsp 1765139/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 23/04/2019, DJe 09/05/2019.
(10) Inq 4619 AgR, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 10/09/2018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-202 DIVULG 24-09-2018 PUBLIC 25-09-2018
(11) Didier Junior, Fredie; Bonfim, Daniela. Colaboração Premiada (Lei n. 12.850/2013): natureza jurídica e controle de validade por demanda autônoma – um diálogo com o Direito Processual Civil. In: Cabral, Antonio do Passo; Pacelli, Eugênio; Cruz, Rogério Schietti. Processo Penal. v. 13. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 179/221.
(12) Reale, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 224.
(13) Amaral, Francisco. Direito civil: introdução. 8. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2014. p. 409-410.
(14) Bomfim, Daniela; Didier JR., Fredie. Colaboração premiada: natureza jurídica e controle da validade por demanda autônoma – um diálogo com o direito processual civil. Civil Procedure Review, v. 7, n. 2, p. 135-189, mai.-ago. 2016. p. 143.
(15) Vasconcellos, Vinicius Gomes de. Colaboração premiada no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 107.
Walter Barbosa Bittar
Doutor em Ciências Criminais pela PUCRS.
Professor de Direito Penal da PUCPR.
ORCID: 0000-0002-4036-7865
walter@advocaciabittar.adv.br
Luiz Antonio Borri
Mestrando em Ciências Jurídicas pela Unicesumar.
Professor de Direito Penal do Unicesumar.
ORCID: 0000-0001-7649-1270
luiz@advocaciabittar.adv.br
Rafael Junior Soares
Mestrando em Direito Penal pela PUCSP.
Professor de Direito Penal da PUCPR.
ORCID: 0000-0002-0035-0217
rafael@advocaciabittar.adv.br
Recebido em: 05.07.2019
Aprovado em: 05.08.2019
Versão final: 08.08.2019
IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040