INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 322 - Setembro/2019





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Bechtlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

Considerações acerca da política criminal comunitária europeia sobre o delito de corrupção privada e o interesse penalmente tutelado por ele

Autor: Guilherme Siqueira Vieira

As modalidades delitivas associadas às práticas corruptivas são objeto constante de estudos acadêmicos e formulações legislativas, seja no seu aspecto penal, seja nas pesquisas e medidas econômicas, administrativas e políticas. Tais abordagens não se restringem ao cenário nacional, sendo igualmente pujante nas últimas décadas o movimento internacional – não isento de críticas, considerando o desnecessário agigantamento do Direito Penal como tentativa de suprir a carência de políticas públicas e a própria ética administrativa e empresarial – para uma maior prevenção e reprovação dos atos de corrupção, sejam eles públicos ou privados, internos ou transnacionais. Um levantamento sumário aponta, entre os anos de 1997 e 2007, a adoção de sete convenções de caráter regional ou internacional relativas à luta contra a corrupção.(1) No Brasil, por sua vez, veem-se recentes instrumentos normativos (promulgados ou em fase de apreciação legislativa) voltados ao mesmo propósito, tal qual a Lei 12.846/13 (Lei Anticorrupção) ou o Pacote Anticrime (PLs 881/2019 e 882/2019 e PLP 38/2019).

Se, em uma primeira leitura, os referidos documentos denotam foco maior no enfrentamento da corrupção perpetrada no âmbito da Administração Pública e do poder político, uma segunda análise resulta na constatação de haver preocupação também quanto a uma configuração típica mais contemporânea, classificada como corrupção privada.(2) Tanto assim é que, no Projeto de Reforma do Código Penal (PL 236/2012), prevê-se a existência de tal modalidade delitiva, assim extraído da redação do artigo 167,(3) incluso no Título de Crimes contra o Patrimônio.

Uma das principais problemáticas que exsurge no estudo da corrupção privada, porém, é justamente determinar qual interesse jurídico seria merecedor da tutela penal, principalmente para não acabar cedendo a uma tipificação simbólica, sendo apenas mais uma criação legislativa decorrente do movimento expansionista e da globalização enfrentados pelo Direito Penal, sem aplicação efetiva ou adequação aos propósitos da ultima ratio. A profusão de tipos penais extraídos dos ordenamentos de países europeus(4) e do próprio continente sul-americano(5) evidencia certa indefinição sobre qual seria o bem jurídico efetivamente defendido pela norma criminal. Outrossim, para melhor compreender a celeuma e estabelecer bases de estudo para um possível crime a ser previsto também na codificação criminal brasileira, pertinente transitar pelas normativas da União Europeia a fim de verificar qual o tratamento por lá dispensado e se ele encontra repercussão ou pertinência de igual tutela no ordenamento pátrio.

O primeiro marco internacional vertido expressamente sobre nominada atividade delitiva foi a Ação Comum 98/742/JAI, no cerne da comunidade europeia. É importante destacar do preâmbulo a noção econômica decorrente da prática da corrupção,(6) revelando a alteração de perspectiva na sua tratativa. Sequencialmente, pouco tempo após a prolação da Ação Comum acima referida, foi promulgada a Convenção Penal sobre a Corrupção do Conselho Europeu, em 1999. Ao contrário do elencado no instrumento normativo acima referido, essa Convenção voltou sua atenção à proteção da lealdade nas relações empresariais e de seus integrantes.(7)

Sem embargo, a efetiva tutela da corrupção privada – no âmbito comunitário europeu – se consolidou na denominada Decisão-Quadro 2003/568/JAI,(8) especialmente pela falta de efetividade da Ação Comum de 1998.(9) Muito embora os textos sejam similares em certa medida, um dos objetivos elencados com a promulgação desse novo texto é proporcionar uma harmonia entre as legislações dos países europeus, ante a heterogeneidade das normativas encontradas em cada Estado.(10) É retomada, por sua vez, a faceta de proteção da livre concorrência pela norma, em detrimento do resguardo da fidelidade laboral, como se percebe da redação da Decisão-Quadro.(11)

As ações da comunidade europeia, portanto, objetivavam criar um ambiente mais homogêneo desses tipos de injusto, principalmente para combater a nova criminalidade não restrita às fronteiras nacionais dos estados.(12) Isso decorria de um movimento dos próprios agentes internacionais, surgido nos anos 70, e rompendo, conforme González: “[...] una inercia historica, en virtud de la cual la corrupción o era tolerada o no se le prestaba la suficiente atención”.(13)

Nessa toada, percebe-se que parte da construção dessas legislações se ocupava em especificar qual o bem jurídico a ser elencado pelo bloco econômico como item de proteção por parte das normas supranacionais. Embora, inicialmente, pudesse se entender que a aproximação do problema da corrupção pela comunidade europeia descartasse a diferenciação entre público e privado, em verdade, a estratégia político-criminal pragmática é vertida na escolha e proteção de um bem jurídico, sendo ele a “libertad y lealdad de la competência”,(14) demonstrando predileção ao modelo alemão.(15)

Destarte, denota-se neste escorço histórico toda a influência político-criminal exercida pela União Europeia para a tutela da corrupção privada, não apenas em seus países integrantes, mas igualmente no restante do planeta, tal qual consolidado na Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (assinada em 31 de outubro de 2003, meses após a publicação da Decisão-Quadro 2003/568/JAI). O interesse surgido ao final dos anos 90 em promover a repressão penal à corrupção encetada nas estruturas empresariais e nas práticas de mercado acabou tomando por base o sistema criminal alemão e, portanto, elencando como nuclear ao ordenamento a defesa da livre concorrência. Não obstante, salienta-se que a escolha do bem jurídico – acaso entenda-se efetivamente necessária a criação de uma modalidade delitiva de corrupção de caráter privatístico – não deve decorrer de mera liberalidade legislativa ou reprodução irrefletida de normativas estrangeiras, ponderando-se com aprofundamento a real necessidade e proporcionalidade da eventual criminalização dessa conduta, pois notoriamente não se presta o Direito Penal, prima facie, a regular a atividade econômica ou orientar o mercado.

Notas

(1) López, Juana; Alonso, José Antonio . Respuestar normativas a escala internacional. In: Alonso, José Antonio; Mulas-Granados, Carlos (dirs.). Corrupción, cohesíon social y desarollo: el caso de Iberoamérica. Madrid: FCE, 2011. p. 73.

(2) Assim asseverado por Benito Sánchez em sua obra, quando trata das ações comunitárias frente à corrupção no Velho Continente: “Los textos comunitarios hasta ahora reseñados no tuvieron en cuenta la corrupción en el sector privado, quizá porque tradicionalmente la corrupción há aparecido vinculada al ámbio de lo público.”(Benito Sánchez , Demelsa. El delito de corrupcíon en las transaciones comerciales internacionales. Madrid: Iustel. 2012. p. 94).

(3) Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2019.

(4) Na França, verte-se a tutela sobre as relações laborais e dos empregados/empregadores; na Itália, o resguardo societário; na Suécia, conglobam-se as figuras de corrupção pública e privada em um mesmo tipo de injusto; na Espanha, adere à diretriz comunitária e protege a concorrência de mercado, além de prever figura específica para o campo desportivo (Foffani, Luigi. La corrupción privada: iniciativas internacionales y perspectivas de armonización. In: Zapatero, Luis Arroyo; Nieto Martín, Adán (coord.). Fraude y corrupción en el derecho penal económico europeo. Eurodelitos de corrupción y fraude. Cuenca: Ediciones de La Universidad Castilla-La Mancha. 2006. p. 385-386; Gontijo, Conrado. O crime de corrupção no setor privado: aspectos gerais e as propostas de sua tipificação na ordem jurídica brasileira. In: Paschoal, Janaina Conceição; Silveira, Renato de Mello Jorge (coord.). Livro homenagem a Miguel Reale Junior. Rio de Janeiro: LMJ Mundo Jurídico. 2014. p. 124-127; Netto, Alamiro Velludo Salvador. Breves anotações sobre os crimes de corrupção passiva e corrupção privada na legislação penal espanhola. In: Paschoal; Silveira, op. cit., p. 4.).

(5) Na Colômbia, resta tipificado o delito de corrupção privada no art. 250-A do seu Código Penal, verificando-se como interesse jurídico penalmente tutelado a concorrência leal. (Jímenez Valderrama, Fernando; García Rodríguez, Lourdes. El interés jurídico protegido en el delito de corrupción privada en Colombia. Análisis de contexto y conexiones con el derecho de la competencia desleal. Revista del Instituto de Ciencias Juridicas de Puebla, n. 35, jan-jun/2015. Disponível em: < http://www.redalyc.org/pdf/2932/293242147009.pdf>. Acesso em: 30 jun. 2019)

(6) Disponível em: . Acesso em: 30 jun. 2019.) Destaque-se, por oportuno, o assinalado por Gontijo: “A Ação Comum teria servido para despertar a atenção dos governos dos Estados-membros do bloco para a gravidade dos atos de corrupção privada, que, dispunha o seu preâmbulo, falseariam a concorrência leal, comprometeriam os princípios de abertura e liberdade dos mercados, além de prejudicar o hígido funcionamento do mercado interior, e a transparência do comércio internacional”. (Gontijo, op. cit., p. 117).

(7) Foffani, op. cit,p. 388-389.

(8) As anotações de Mongillo sobre o tema são de especial relevância: “Nel preambolo ala decisione quadro in oggeto si ribadisce, anzitutto, che l’ importanza riconsciuta dagli Stati membri ala lotta contro la corruzione, sai nel settore pubblico che in quello privato, nasce dalla convinzione che esa costituisca ‘una minaccia allo stato di diritto e inoltre generi distorsioni di concorrenza riguardo all’ acquisizione di beni o servizi commerciali e ostacolo um coretto sviluppo economico’ (considerando 8). Los copo precípuo della decisione viene, invece, indicato nel ‘garantire che sai la corruzione attiva sai quella passiva nel settore privato siano considerate illeciti penali in tutti gli Stati membri, che anche le persone giuridiche possano essere considerate colpevoli di tali reati e che le sanzioni siano efetive, proporzionate e dissuasive’.”(Mongillo, Vincenzo. La corruzione tra sfera intersa e dimensione internazionale. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane. 2012. p. 481).

(9) Gontijo, op.cit., p. 119.

(10) Foffani destaca justamente que a busca por uma tipificação da corrupção privada está longe de ser matéria alheia aos países europeus ou uma situação excepcional, pois à época da prolação da Decisão Marco 2003/568/JAI apenas quatro países não possuíam tal figura delitiva em suas codificações, sendo eles a Bélgica, Grécia, Itália e Espanha (Foffani, op. cit., p. 383-384.)

(11) Ambos os instrumentos normativos (a Decisão Marco e a Convenção) igualmente adotam as mesmas definições de corrupção privada, podendo extrair a lealdade e liberdade da concorrência como objeto de proteção da norma. Nesse sentido: “Asimismo deben destacarse los arts. 7 y 8 del Convenio Penal contra la Corrupción del Consejo de Europa de 1999, que se ocupan de la corrupción privada; y el art. 21 del Convenio de Naciones Unidas contra la Corrupción de 2003, que recomenda a los Estados castigar lá corrupción en el sector privado.”(Bolea Bardon, Carolina. El delito de corrupción privada: bien jurídico, estrutura típica e intervenientes. Disponível em: . Acesso em: 01 jul. 2019).

(12) “De los convenios internacionales analizados se desprende con meridiana claridad que, a pesar del creciente protagonismo que ha adquirido la corrupción en el sector privado, la acción de los organismos internacionales en la lucha contra la corrupción está orientada a combatir por igual los comportamientos corruptos en el sector público y en el sector privado, ya que en la práctica frecuentemente coinciden corrupción en el sector público y corrupción en el sector privado.”(Carbajo Cascón, Fernando. Corrupcíon en el sector privado (i):la corrupción privada y el derecho privado patrimonial. Justitia, n. 10, 2012. Disponível em: . Acesso em: 29 jun. 2019)

(13) González, Joaquín. Corrupción y justicia democrática: introducción a uma teoria de la función judicial em las sociedades em cambio. Madrid: Clamores, 2000. p. 88.

(14) Foffani, op. cit., p. 388.

(15) Para maior aprofundamento sobre essa linha adotada pela União Europeia, vide Foffani, op. cit., p. 388-389; BENITO SÁNCHEZ, op. cit.

Guilherme Siqueira Vieira
Mestre em Direito pela PUCPR. Professor de Direito Penal da FAPAR.
Membro do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP). Advogado.
ORCID: 0000-0001-8136-4882
guilhermesv@sanchezrios.com.br
Recebido em: 01.07.2019
Aprovado em: 02.08.2019
Versão final: 09.08.2019



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