INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 322 - Setembro/2019





 

Coordenador chefe:

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Conselho Editorial

EIXO 2: Delitos econômicos e corrupção: novas abordagens
Subsidiariedade do sistema penal e corrupção

Autora: Marina Pinhão Coelho Araújo

A diminuição dos índices de corrupção no Brasil não é tarefa única do sistema penal. Ela deve ser o resultado de um conjunto de políticas públicas e de engajamento da população civil na transformação da cultura nacional. Não existe um único herói nesse cenário, mas uma nação de pessoas dispostas à mudança.

Não raras vezes impõe-se ao sistema jurídico-penal a tarefa de construir novos marcos culturais da sociedade brasileira. Para os crimes contra a administração pública, tal encaminhamento tem sido cada vez mais evidente. Não só no âmbito de proibição da norma, como também nos instrumentos utilizados para a persecução penal, é manifesta a expansão do modelo penal como política pública simbólica e pouco efetiva.

O fenômeno não é novo. Apesar de o Direito Penal estar construído sobre as bases racionais de uma estrutura subsidiária em relação aos outros ramos do direito – já que é a intervenção mais grave na esfera individual do cidadão –, muitas vezes o Estado lança mão da violência institucionalizada para estabelecer novos padrões de conduta e novas posturas ideológicas.

Tal panorama de desequilíbrio e inadequação de meios é nítido em relação ao delito de corrupção, que é apresentado como o grande vilão da sociedade brasileira. O Prof. Luciano Anderson de Souza destaca o elemento midiático neste espetáculo pseudo-jurídico: “Some-se a isso uma considerável e significativa verdadeira ‘cruzada midiática’ normalmente identificada como ‘combate à corrupção’ ou ‘luta contra a corrupção’, que leva a uma atuação ainda mais recrudescida das instâncias de controle, como o que identificaríamos como ponto culminante as chamadas grandes operações policiais e grandes julgamentos (...).(1)

É preciso repensar e desconstruir esse modelo expansionista, já que ele, além de não produzir os resultados esperados, banaliza a resposta institucional e na grande maioria dos casos, há uma desproporção entre meios e finalidade.

Aqui, a ideia de subsidiariedade penal, no seu espectro de meta-regra,(2) pode representar um importante auxílio, constituindo-se de critério inarredável para a tomada de decisão político-criminal, seja na instituição ou alteração dos tipos penais, seja no desenvolvimento de instrumentos de persecução penal adequados à resposta penal, isto é, respostas institucionais e de fato efetivas.

Como meta-regra, a subsidiariedade impõe o sopesamento entre os instrumentos disponíveis ao legislador e a necessidade de recorrer à intervenção penal apenas nos casos em for indispensável e, de fato, mais efetiva. É imperioso que, ao lado das medidas penais e processuais penais, outras políticas públicas sejam desenhadas e implementadas.

Em relação aos tipos penais de corrupção, a decisão político-criminal de tipificação de corrupção ativa e corrupção passiva como tipos amplos e genéricos, sem diferenciação de condutas, a possibilitar extensa moldura proibitiva é extremamente prejudicial para a aplicação do Direito Penal, que sempre deve estar restrito ao núcleo de condutas que efetivamente demandam a mais grave intervenção do Estado na esfera individual.

Exemplifiquemos com o tipo penal de corrupção ativa. Ele permite a imputação de condutas absolutamente díspares – desde o oferecimento de uma nota de R$ 50 a um guarda rodoviário para evitar uma multa por excesso de velocidade até a estruturação de um esquema de financiamento de campanhas eleitorais, ou ainda a compra de votos para a aprovação de determinada lei no Parlamento nacional. O desvalor das condutas perpetradas é acintosamente diferente e, mesmo assim, estão subsumidas na mesma norma penal, aplicando-se a pena entre 2 e 12 anos de reclusão.

Tivesse o legislador sopesado e diferenciado com maior precisão as condutas sob o critério da lesividade social, possibilitaria uma aplicação do sistema penal mais certeira, redundando em maior efetividade.

Além dos tipos penais, a subsidiariedade do Direito Penal deve conduzir o olhar legislador para outras normas que interferem diretamente nos níveis de corrupção do País. Por exemplo, o deficiente sistema legal de concorrência pública. É nítido que muitos processos penais envolvendo escândalos de corrupção estão relacionados a contratações públicas deficitárias. Ao analisar tais processos, é evidente que uma maior transparência e uma maior modernização das regras de concorrência teriam o condão de evitar muitas das condutas investigadas. As modernas estruturas de controle e de solução de conflitos de interesses nesses processos licitatórios não são sequer consideradas pela nossa legislação.

Por outro lado, durante o desenvolvimento dos processos que compõem a Operação Lava-Jato percebeu-se que a deficiência de controle e estruturação das regras de doação eleitoral no país, e a pouca transparência dos partidos políticos incrementam o risco de condutas indesejadas, especialmente a corrupção.

O mesmo vale para a governança corporativa nas empresas públicas nacionais. As regras para indicação de gestores e a transparência dos processos decisórios nos principais cargos dessas estruturas contribuíram para um ambiente muito menos propício a atos de corrupção e fraude ao patrimônio público.

A meta-regra da subsidiariedade leva também a um olhar cuidadoso sobre as normas processuais. Quando não apenas se estipulam, mas se aplicam corriqueiramente, como se não requeressem circunstâncias ímpares para sua incidência, normas processuais penais excepcionais – como prisão cautelar, sequestro e arresto de bens e a constrição patrimonial –, é sinal de que a subsidiariedade foi abandonada como vetor a impor o menor grau de intervenção na intimidade e privacidade do cidadão, na medida do estritamente necessário à investigação e persecução penal.

Vale mencionar o abuso da legislação – e das decisões judiciais – no que se refere à constrição de patrimônio dos investigados e acusados. Ao longo dos processos com duração de anos, o patrimônio dos investigados fica radicalmente indisponível, com graves danos à vida e ao desenvolvimento das pessoas, mesmo nos casos em que parte do patrimônio não tem nenhum vínculo com a atividade ilícita . Essa tendência é muito forte, mesmo claramente inconstitucional, sendo uma das alterações legislativas propostas no Pacote Anticrime do Ministério da Justiça a previsão para o confisco de patrimônio além dos produtos ilícitos do crime.

A insistência em “combater a corrupção” apenas com processos penais e prisões é reduzir a discussão à retórica. Mais do que produzir mudanças reais, o sistema penal é pervertido para fins populistas e eleitoreiros.

Como política pública para reduzir os níveis de corrupção no País, além da readequação dos tipos penais e dos instrumentos processuais penais, deve-se incluir a estruturação de mecanismos de disseminação de cultura e de novas práticas, com vistas a adequar o padrão de comportamento dos cidadãos e das empresas à realidade do mundo contemporâneo. É impossível reduzir a corrupção sem uma análise realista dos seus principais focos de corrupção. Só assim a legislação poderá ser efetiva para minimizar tais riscos.

Nesse cenário, a Lei 12.846/13 (Lei Anticorrupção) é um alento, ao prever, por exemplo, programas de integridade como critério para diminuição da pena da empresa investigada. Sem tornar obrigatório o programa de autorregulação, a norma indica a importância desses mecanismos. A experiência mostra que, mais do que simplesmente punir, instrumentos de gestão profissional, buscando eliminar conflitos de interesses e desestimular condutas indesejadas, podem ser determinantes para um ambiente empresarial e público mais ético, mais íntegro e conforme à legislação.

Esses mecanismos de controle, implementados com efetividade pelos gestores, também serão considerados na aferição da responsabilidade dos administradores, em sua perspectiva de omissão imprópria. É decisivo para o ambiente de negócios o estímulo a agir pessoalmente, sem se omitir.

Mais do que aumentar penas, é essencial, portanto, a desconstrução do modo de organização social baseado em atos de corrupção e de confusão entre público e privado. Tal movimento não pode prescindir da alteração da cultura e dos paradigmas sociais, com a construção de políticas públicas claras, que vão muito além do Código Penal e Processual Penal. O sistema penal é parte integrante – e indispensável – dessa reestruturação, mas utilizá-lo como como resposta estatal exclusiva conduz necessariamente à frustração. Simplesmente os resultados pretendidos não são alcançados.

A transformação da realidade social brasileira e a construção de um marco para a minimização dos índices de corrupção do País são tarefas de toda a sociedade e de todos os seus cidadãos. Esquecer a subsidiariedade do sistema jurídico-penal não é apenas um caminho para normalizar abusos . É fazer com que tudo permaneça precisamente como está.

Notas

(1)  Souza, Luciano Anderson. Crimes contra a administração pública. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2018. p. 29

(2)  Neste Nesse sentido, Sanches-Ostiz, Pablo. Sobre la aspiración a un derecho penal subsidiario: en qué medida es posible la subsidiariedad de los instrumentos penales? Cuadernos de Política Criminal. Numero n. 11, II, época II, p. 37-67, diciembre 2013, pp.37-67.

Marina Pinhão Coelho Araújo
Doutora em Direito Penal pela USP. Advogada.
ORCID: 0000-0002-9412-9838
marina@cazadvogados.com
Recebido em: 07.08.2019
Aprovado em: 07.08.2019
Versão final: 08.08.2019



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