INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

     OK
alterar meus dados         
ASSOCIE-SE


Boletim - 322 - Setembro/2019





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Bechtlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

A aplicação do in dubio pro societate nos feitos cíveis e criminais e o (des)prestígio à presunção de inocência

Autores: Paulo Thiago Fernandes Dias e Sara Alacoque Guerra Zaghlout

O estudo do Direito Processual Penal, apartado das suas questões principiológicas, históricas, políticas, filosóficas e antropológicas que lhes são inerentes, tende à aplicação de um modelo de processo penal incompatível com o desenho traçado pela Constituição da República, fundado no respeito à presunção de inocência, à dignidade da pessoa humana e demais direitos fundamentais. Se compreendido à luz da Constituição, fala-se de um processo penal não autoritário, que não trate a prisão da pessoa processada como regra, nem a aplicação de pena como fim principal desse ramo do Direito.

Nesse diapasão, imperioso se demonstra o estudo (crítico) da aplicação (expansiva) do in dubio pro societate ou in dubio contra reum por parcela da doutrina e pelos Tribunais Superiores, em que pese a indiscutível incompatibilidade dessa regra com o Direito Processual Penal consagrado pela Constituição da República, também em feitos de natureza cível, destacadamente os que discutem a responsabilização pela prática de atos de improbidade administrativa.

Ao se propor uma releitura do processo penal nos termos dos princípios consagrados pela Carta Maior, busca-se conter uma espécie de metástase do in dubio pro societate. Explica-se. A aplicação ou não dessa regra sempre se fez presente nas discussões afetas à primeira etapa do procedimento do Tribunal do Júri, notadamente no que tange ao proferimento da decisão de pronúncia.(1) Com o passar dos anos, verificou-se a utilização dessa regra também em sede de recebimento de denúncias, nos mais variados procedimentos processuais penais, ainda que em flagrante violação ao dever de fundamentação das decisões judiciais.(2)

Levando em conta a atuação do Superior Tribunal de Justiça, órgão jurisdicional criado pela própria Constituição da República, verifica-se que o in dubio pro societate vem sendo utilizado como regra legítima para fins interpretativos, tantos em feitos criminais, quanto cíveis, malgrado sua insuperável inconstitucionalidade.

O dito acima restou comprovado através da análise da quantidade de acórdãos proferidos pelo STJ com base no in dubio pro societate. Dentre 29 feitos criminais, em 23 o Superior Tribunal de Justiça determinou a incidência do in dubio pro societate.(3) Ocorre que o in dubio pro societate também ganhou aplicação no âmbito de feitos cíveis. Até o fechamento deste texto, somente em 2019, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a incidência do in dubio pro societate em 13 processos instaurados no julgamento de casos cíveis, especialmente as ações de improbidade administrativa.(4)

Esses dados demonstram considerável resistência à constitucionalização do processo penal brasileiro, notadamente a partir do desprestígio conferido ao princípio da presunção de inocência, enquanto inequívoco pilar de sustentação da democraticidade(5) do arquétipo de processo penal consagrado pela Constituição Federal. Acertadamente, Gloeckner e Lopes Junior definem a presunção de inocência “como conector político”.(6)

Nesse diapasão, a situação jurídica do acusado é a de inocente durante toda a persecução penal. Esse tratamento conferido à pessoa acusada da prática de um crime se dá de forma precedente, isto é, trata-se de concepção já edificada em normas de cunho constitucional e internacional sobre Direitos Humanos. Essa condição jurídica de inocente se esvai a partir do momento em que o decreto condenatório se torna imodificável.(7)

Valiosa doutrina acentua que a presunção de inocência se concretiza em três dimensões distintas: enquanto regra de tratamento, regra de Estado e regra de juízo.(8) Já Zanoide de Morais observa três significados da aplicação prática do princípio da presunção de inocência, quais sejam: norma de tratamento (deve-se evitar o não tratamento do acusado como inocente até o advento ou não do trânsito em julgado da condenação), norma probatória (relacionada à carga probatória: fixando o sujeito, o objeto e o modo probatórios) e norma de juízo (uma vez já colhido o material probatório e em caso de sua insuficiência, o magistrado deve absolver o acusado).(9)

A presunção de inocência determina ainda “[...] que qualquer mudança numa situação jurídica está condicionada pela manifestação das partes nela envolvidas e, sendo assim, o ônus da prova cabe a quem alega o feito”.(10)

No tocante aos feitos de improbidade administrativa, o que justifica a desidratação da presunção de inocência, mediante a inversão do ônus da prova contra a pessoa processada? Não há qualquer fundamento normativo que afaste a incidência da presunção de inocência em sede de processos deflagrados para a apuração de atos de improbidade administrativa, não sendo sustentável falar-se em inversão do ônus da prova. Esta afirmação ganha relevo com o disposto no artigo 20 da Lei de Improbidade Administrativa, que exige o trânsito em julgado da condenação para o início dos efeitos relacionados às sanções de perda da função pública e suspensão dos direitos políticos. A presunção de inocência (e o in dubio pro reo), portanto, não é de observância restrita aos casos processuais penais.

Com esses apontamentos sobre as dimensões da presunção de inocência, faz-se relevante comentar acerca da matriz genética do in dubio pro societate, não com vistas à adjetivação negativa pessoas ou órgãos jurisdicionais, que defendem a compatibilidade dessa regra com o enquadramento constitucional brasileiro. Mas para que se reafirme a natureza autoritária do in dubio pro societate.

Essencialmente oposto ao in dubio pro reo, o in dubio contra reum, mais conhecido e utilizado no Brasil pela expressão de igual sentido, qual seja in dubio pro societate, possuía ampla vinculação ideológica com o Direito Processual Penal do III Reich, calcado na negação da presunção de inocência.(11)

Jose Guarneri, mesmo contrário a qualquer espécie de presunção em sede de processo penal, rende críticas justificáveis ao in dubio pro societate, regra decorrente do princípio que presume a culpabilidade de alguém a partir do momento em que passa a ser formalmente acusada da prática de crime pelo Estado. O in dubio pro societate configura uma “doctrina aberrante y contraria al buen sentido que trata de superar la impossibilidad de pronunciar una condena, proponiendo que se condene igualmente en el pretendido interés de la sociedad”.(12)

Ainda que já fosse sensível reconhecer o autoritarismo processual penal brasileiro antes da entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1941, este Diploma, inspirado em parte no Estatuto processual penal da Itália Fascista(13), acolheu a regra do in dubio contra reum, porém com o sinônimo, quase que eufemístico, do in dubio pro societate.(14) Não por acaso , observa-se que “o recurso linguístico encontrado para ocultar o sentido da inversão ideológica da presunção de inocência consistiu na adoção da máxima in dubio pro societate, que operou como ‘fachada linguística’”.(15)

Enquanto manifestação pura de autoritarismo,(16) a regra do in dubio pro societate, além do direito nazista, moldou ideologicamente também a Santa Inquisição,(17) o processo penal fascista italiano,(18) servindo ainda, como dito alhures, de espinha dorsal ideológica para o diploma processual penal implantado durante o Estado Novo no Brasil (1937-1945). Refere-se ao Código de Processo Penal, ainda vigente, na sua essência, inclusive após a promulgação da Constituição de 1988, da ratificação de Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos e de passar por reformas tópicas. Conforme a Exposição de Motivos desse Código, o processo penal perdia a natureza de mecanismo de proteção de direitos fundamentais em face da atuação do Estado, pois, para o então Ministro da Justiça, “urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum”.(19)

Reportando-se ao Direito Processual Penal fascista, Vincenzo Manzini destaca que a real função do processo penal é de natureza punitiva, repressiva, não havendo espaço para a tutela da presunção de inocência, reforçando que a prova da prática do delito pode ser obtida através de iniciativa probatória do órgão julgador. Assim, “[...] el interés fundamental que determina el proceso penal, es el de llegar a la punibilidad del culpable, [...]; no ya el interés de llegar a la proclamacións de la inocencia o de la moralidad del inculpado”.(20) Somente nesse contexto, de instrumentalização autoritária do processo penal para fins repressivos, é que se concebe a aplicação da regra do in dubio pro societate. Não por acaso, acentua-se que o desprezo em face da presunção de inocência e a gestão da prova nas mãos do juiz são duas das principais influências fascistas ainda presentes no Direito Processual Penal brasileiro.(21)

Conceber o processo penal através das bases democráticas, humanísticas e constitucionais significa avançar no enfrentamento das questões afetas à solução das causas criminais, bem como não retroceder nas conquistas civilizacionais duramente obtidas, após a superação de regimes políticos flagrantemente autoritários. O desapreço à presunção de inocência, inicialmente restrito ao Direito Processual Penal, mas agora presente nos casos de improbidade administrativa, lança luzes para o longo caminho que ainda precisa ser percorrido, para que se possa falar em Estado Democrático e Constitucional de Direito no Brasil.

Notas

(1)  Dias, Paulo Thiago Fernandes Dias. A decisão de pronúncia com base no in dubio pro societate. Florianópolis: EMais editora, 2018.

(2)  Dias, Paulo Thiago Fernandes de; Zaghlout, Sara Alacoque Guerra. A máxima do in dubio pro societate e a violação ao dever de motivação das decisões judiciais. In: Giacomolli, Nereu José et al (org.). Processo penal contemporâneo em debate. v. 2. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

(3)  A pesquisa se deu através do sítio eletrônico do Superior Tribunal de Justiça. No campo referente à pesquisa livre de jurisprudência, inseriram-se os seguintes termos “in dubio pro societate”. Tomou-se o cuidado de conferir se o teor das ementas possuía equivalência em relação ao conteúdo dos votos vencedores dos respectivos acórdãos. Assim, considerando-se apenas os acórdãos publicados em 2019, até o encerramento deste artigo, 46 julgados foram destacados pelo sistema de pesquisa virtual do Tribunal, dos quais 29  eram de natureza criminal. Desse universo de 29 feitos criminais, em 23 o Superior Tribunal de Justiça aplicou o in dubio pro societate nos seguintes julgados: RHC 111799/MS; RHC 102252/SP; RHC 93154/SC; RHC 92649 (Acórdão); RHC 102128 (Acórdão); AgRg no AREsp 1336744 (Acórdão); RHC 109737 (Acórdão); HC 430386 (Acórdão); AgRg no AREsp 1257276 (Acórdão); AgRg no AREsp 1363973 (Acórdão); RHC 102919 (Acórdão); AgRg no AREsp 1280071 (Acórdão); AgRg no REsp 1730559 (Acórdão); HC 371534 (Acórdão); AgRg no REsp 1790603 (Acórdão); RHC 90109 (Acórdão); AgRg no AREsp 1276888 (Acórdão); RHC 108054 (Acórdão); RHC 107484 (Acórdão); HC 416625 (Acórdão); RHC 99543 (Acórdão); RHC 91358 (Acórdão); RHC 77836 (Acórdão).

(4)  Seguindo-se o método de pesquisa exposto na nota anterior, verificou-se que, dos 46 julgados destacados pelo sistema de pesquisa virtual do Tribunal, 17 eram cíveis. Destes, em 13, o Tribunal da Cidadania decidiu pela aplicação do in dubio pro societate nos seguintes julgados: AgInt no REsp 1728650/SP; AgInt no AREsp 985406 (Acórdão); REsp 1789492 (Acórdão); AgInt no AREsp 1336433 (Acórdão); AgInt no AREsp 1371873 (Acórdão); AgInt no AREsp 1362803 (Acórdão); REsp 1792294 (Acórdão); AgInt no AREsp 1305372; AgInt no AREsp 1308103 (Acórdão); AgInt no AREsp 1149211 (Acórdão); AgInt nos EDv nos EREsp 1428945 (Acórdão); AgInt no REsp 1746718 (Acórdão); AgInt no REsp 1742600 (Acórdão).

(5)  No sentido empregado por Rui Cunha Martins, isto é, um processo penal democrático é o oposto de inquisitivo e mais complexo que o acusatório. Martins, Rui Cunha. O mapeamento processual da verdade. In: Prado, Geraldo et al (orgs.). Decisão judicial: a cultura jurídica brasileira na transição para a democracia. São Paulo: Marcial Pons, 2002. p. 80-81.

(6)  Lopes Junior, Aury; Gloeckner, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. São Paulo: Saraiva, VitalSource Bookshelf Online, 2014. p. 74.

(7)  Karam, Maria Lúcia. Liberdade, presunção de inocência e direito à defesa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 4.Coleção Escritos sobre a Liberdade. v. 5.

(8)  Casara, Rubens R. R. Processo penal do espetáculo. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. p. 32/34.

(9)  Moraes, Maurício Zanoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 424 e ss.

(10)  Silva, Monica Paraguassu Correia da. Presunção de Inocência. Niterói: Editora da UFF, 2011, p. 63.

(11)  Faria Costa, José de. Noções fundamentais de direito penal: fragmenta iuris poenalis. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2012. p. 75.

(12)  Guarneri, Jose. Las partes en el proceso penal. Puebla, Pue, Mex.: Editorial Jose M. Cajica Jr., 1954. p. 306.

(13)  O termo fascismo é entendido neste trabalho para designar o “[...] movimento chauvinista, antiliberal, antidemocrático, antissocialista, antioperário” (Konder, Leandro. Introdução ao Fascismo. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2009, p. 53), surgido inicialmente na Itália após os eventos da I Guerra Mundial.

(14)  Por possuírem a mesma essência, esta pesquisa também tratará o in dubio contra reum ou pro societate como expressões sinônimas.

(15)  Prado, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 29.

(16)  Com apoio na doutrina de Bobbio, há que se compreender o vernáculo “autoritarismo”, substantivo do adjetivo “autoritário”. Para tanto, esse autor propõe três perspectivas: a) Quanto à estrutura dos sistemas políticos, fala-se dos regimes concentrados numa só pessoa ou órgão e em que há redução ou eliminação do consenso; b) Quanto às questões psicológicas sobre o poder, o autor se detém sobre a personalidade autoritária, que se forma pela submissão de uns e pela arrogância do ser autoritário; c) Quanto às ideologias políticas, concepção adotada neste texto, tem-se a negação à igualdade entre as pessoas e no reforço à superioridade hierárquica, somadas à valorização de regimes autoritários e de aspectos componentes da personalidade autoritária, BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. v. 1. Brasília: Editora UnB, 1998. p. 94.

(17)  Eymerich, Nicolau. Manual dos inquisidores. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993. p. 122

(18)  Khaled JR, Salah H. Me ne frego: a presunção de inocência apunhalada pelo STF. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 281, v. 24, p. 05-07, 2016. p. 05.

(19)  BRASIL. Vade Mecum Saraiva. 2. ed. Atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 597.

(20)  Manzini, Vincenzo. Tratado de derecho procesal penal. Tomo I. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1951. p. 250.

(21)  Amaral, Augusto Jobim do. A pré-ocupação de inocência no processo penal. Revista da Faculdade de Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 62, p. 85-115, jan./jun. 2013.

Paulo Thiago Fernandes Dias
Doutorando em Direito Público pela UNISINOS.
Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS.
Professor da graduação em Direito do CEUMA e da UNISULMA-IESMA. Advogado.
ORCID: 0000-0002-8300-6410
paulothiagofernandes@hotmail.com

Sara Alacoque Guerra Zaghlout
Doutoranda em Direito Público pela UNISINOS (bolsista CAPES).
Mestra em Ciências Criminais pela PUCRS.
Pós-graduada em Processo Penal pela Faculdade Anhanguera. Advogada.
ORCID: 0000-0003-2076-3286
sah.alacoque@hotmail.com
Recebido em: 10.07.2019
Aprovado em: 06.08.2019
Versão final: 09.08.2019



IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040