Luigi Barbieri Ferrarini
Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Bechtlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias
Autora: Manuela Abath Valença e Treicy Kariny Lima de Amorim
Vivemos um momento político em que grandes consensos relacionados a direitos humanos estão sendo postos em xeque e, no campo do sistema de justiça criminal, isso se reflete em retrocessos legais, político-criminais e jurisprudenciais. Capengam princípios básicos como presunção de inocência e imparcialidade; e se relativizam graves problemas como o da violência institucional, o que fica expresso, por exemplo, no Decreto Presidencial 9.831 de 2019, que exonerou os peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Nesse contexto, as audiências de custódia merecem especial atenção, posto que lidam com dois objetivos institucionais (a redução do encarceramento provisório e o combate à violência policial) que são muitas vezes representados como incentivo à impunidade (JESUS, 2018) e privilégio de bandidos pelos setores conservadores. Por essa razão, recebemos com preocupação algumas das teses sobre prisão em flagrante publicadas, em março de 2019, pelo Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2019), que estão sensivelmente relacionadas às audiências de custódia. São elas: a) “Uma vez decretada a prisão preventiva, fica superada a tese de excesso de prazo na comunicação do flagrante”;
b) “Realizada a conversão da prisão em flagrante em preventiva, fica superada a alegação de nulidade porventura existente em relação à ausência de audiência de custódia” e c) “Com a superveniência de decretação da prisão preventiva ficam prejudicadas as alegações de ilegalidade da segregação em flagrante, tendo em vista a formação de novo título ensejador da custódia cautelar”.
Neste artigo discutiremos cada uma delas, fazendo antes uma breve explanação sobre controle da atividade policial e as audiências de custódia.
Como sabemos, as polícias possuem um mandato, isto é, estão incumbidas de determinadas tarefas. Para Jaqueline Muniz e Proença Jr., o mandato policial é “o exercício do poder coercitivo autorizado pelo respaldo da força de forma legítima e legal” (MUNIZ; PROENÇA JR., 2007, p. 38). Como organização que recebe um mandato em um regime democrático, as polícias devem ser capazes de prestar contas de seus atos, isto é, estão sujeitas ao processo de accountability. Neste, os agentes policiais fazem um relato de seus atos (account), que são, posteriormente, submetidos a um crivo de adequação ou não, tornando as polícias, assim, organizações responsabilizáveis pelos seus atos. A quem esse relato é feito e que instâncias se responsabilizam por julgar como adequadas ou não as ações policiais é uma discussão sobre modelos de controle dessa atividade (CANO, 2005).
As audiências de custódia são uma excelente oportunidade para um primeiro acesso a esse account e, portanto, um importantíssimo espaço para que o Ministério Público exerça o seu dever de controle externo da atividade policial e para que o Poder Judiciário vele pela aplicação das garantias constitucionais no processo. Isso porque a essas instituições são encaminhados os autos de prisão em flagrante com a narrativa de agentes públicos (normalmente policiais militares) que efetuaram a abordagem, a detenção e o encaminhamento do custodiado a uma delegacia de polícia; e com a narrativa do próprio preso, que terá a oportunidade de apresentar a sua versão dos fatos. Poucos atos processuais podem ser tão proveitosos para averiguar a legalidade da atuação policial.
Infelizmente, entretanto, pesquisas até então realizadas sobre o instituto apontam para uma conclusão desanimadora: nem sempre os atores do sistema de justiça criminal se interessam pelos relatos de tortura ou maus tratos nas audiências; ou, mesmo quando tais relatos são registrados, não há um encaminhamento sistemático de tais casos às instâncias de efetiva responsabilização (IDDD, 2016; CONECTAS, 2017).
A pesquisa realizada pela Conectas em audiências de custódia é bastante emblemática. De um universo inicial de 331 audiências de custódia acompanhadas por eles em 2017, em 33% dos casos o magistrado sequer questionou possível irregularidade do flagrante; desse último percentual, a Promotoria, segunda a falar na ordem ritualista, em 91% dos casos não fez quaisquer indagações sobre uma possível atuação violenta da polícia, mesmo sendo este o órgão responsável pelo controle externo da atividade policial, conforme o artigo 129,VII da Constituição Federal. Dentre os 91% do universo anterior, em que até então ninguém tocara no ponto mais sensível da audiência de custódia e, vale frisar, objetivo dorsal do instituto, em apenas 21% das audiências a defesa manifestou algum questionamento relacionado à eventual tortura por parte da polícia, sendo essa porcentagem de apenas 6% do universo inicial. Em 21 dos casos, nenhuma instituição interrogou a pessoa presa sobre a ocorrência de tortura, mesmo os custodiados apresentando marcas visíveis em seus corpos.
Isso significa que, se de um lado a audiência de custódia aposta em um momento de escuta e contato pessoal como vital à compreensão da realidade da pessoa presa e à redução de injustiças, de outro lado a situação fática evidencia uma catastrófica lacuna no sentido de punição do policial responsável pelo tratamento cruel, desumano ou degradante. Afirma-se isso tendo em vista que as intervenções realizadas pelos atores jurídicos, quando ocorrem, são não raramente objetivando naturalizar, justificar e até mesmo tornar difícil a apuração dos fatos, na medida em que as respostas negativas dos custodiados a questionamentos tal como “sabe reconhecer os agressores, nomes etc.? ”, resultam em não encaminhamento dos relatos às instituições competentes para averiguar a denúncia narrada. O cenário se agrava quando a análise diz respeito ao Ministério Público, que, diante do relato de violência, intervém em apenas 20% dos casos e em 60% dessas intervenções acaba por deslegitimar a versão dos custodiados (IDDD, 2016; CONECTAS, 2017).
Considerando-se que os presos encaminhados a essas audiências são, em sua maioria, negros, é fundamental refletir a faceta do racismo que estereotipa esses corpos como marginais, delinquentes e bandidos, e, desumanizando-os, torna impossível a compreensão deles como vítimas da violência policial. Sobre esse aspecto, Ana Luiza Bandeira explicita a disputa existente entre policial e custodiado pelo lugar da vítima nos casos de violência narrados em audiência. Assim, embora o plano teórico projetasse na implementação das audiências de custódia, dentre tantos outros objetivos, a missão de coibir a violência policial, na medida em que fossem punidas as torturas realizadas pelos agentes, “na prática, no entanto, novas formas de legitimação da violência foram construídas através desse encontro, tanto nas falas quanto nos silêncios, que passaram a expressar percepções morais de quem é ‘a verdadeira’ vítima em um momento de prisão em flagrante”. A autora aponta, para além das falas deslegitimadoras dos atores, os diversos mecanismos de silenciamento frente ao relato de tortura, de modo a construir uma “prática de avaliação que envolve conceitos como ‘vítimas’, ‘merecimento’, ‘sofrimento’ e, principalmente, ‘violência’” (BANDEIRA, 2018, p. 65).Tem-se, portanto, um sistema de justiça que reveste de legitimidade as ações ilegais do Estado, sobretudo a violação de direitos em face de uma atuação violenta da polícia, um poder desmedido, conferido e chancelado pelo Judiciário.
Soma-se a uma cultura que naturaliza e banaliza a tortura e aos entraves burocráticos um dado não menos importante: custodiados podem se sentir inibidos para relatar práticas ilícitas promovidas por policiais por uma questão de segurança individual; afinal, se soltos, voltarão aos mesmos locais em que são alvo preferencial de abordagens. Cria-se, assim, um ciclo vicioso que vulnerabiliza sobretudo a população preta e pobre (BRASIL, 2016, p. 45).
Romper esse ciclo demanda uma atuação responsável dos atores nas audiências, mas também uma postura do Poder Judiciário, mormente dos tribunais superiores, que tenda a anular ou invalidar atos ilícitos promovidos por agentes públicos. Aqui retornamos à análise das teses jurisprudenciais do STJ, todas elas assentadas na frágil sistemática das nulidades no processo penal brasileiro, que, em nome da teoria da instrumentalidade das formas e do princípio do prejuízo, relativizam a gravidade de atos praticados fora da legalidade e reforçam a máxima inquisitiva de um processo voltado à busca da verdade. (BINDER, 2003).
A primeira delas é: “uma vez decretada a prisão preventiva, fica superada a tese de excesso de prazo na comunicação do flagrante”, tese que, aliás, já era amplamente aceita antes da implementação das audiências e que sempre permitiu que cidadãos ficassem presos em flagrante por dias, semanas ou até meses, a despeito da redação do artigo 306, § 1º do CPP . O que não se compreende é que esse prazo não é instituído despropositadamente. Para desenvolver o argumento, remetamos a uma narrativa feita por uma pesquisa que, acompanhando audiências de custódia na comarca de Olinda-PE, informou que “custodiado relatou que os policiais militares que o abordaram enforcaram-no e bateram várias vezes. Informou também ser capaz de reconhecer os policiais que o prenderam e agrediram. O custodiado informou não ter sido ouvido na delegacia e dissera ser obrigado por policiais a assinar papéis sem saber do que se tratavam, uma vez que não sabe ler”. Embora não possamos afirmar que os fatos narrados pelo custodiado sejam verdadeiros ou falsos, dificilmente escapamos da constatação de que são verossimilhantes, isto é, de que são possíveis em nossa realidade.
O prazo de 24 horas entre a detenção e a audiência objetiva impedir que o cidadão fique à disposição das autoridades policiais ou do sistema prisional por mais tempo do que o estritamente necessário para a lavratura e formalização do flagrante. Com a implementação das audiências, finalmente deu-se cumprimento à Convenção Americana de Direitos Humanos, que determina apresentação imediata do preso a uma autoridade judicial, medida que é reconhecida como um dos mecanismos fundamentais para a prevenção da prática de tortura, segundo pesquisa da Associação de Prevenção à Tortura (APT, 2016, p. 21). Sendo assim, quando relativizamos esse prazo, podemos estar dando brechas para que atuações como as narradas acima sejam ainda menos apuradas, já que o tempo é, nesse caso, fator essencial para manutenção de vestígios eventualmente deixados no corpo do custodiado.
A segunda das teses é: “Realizada a conversão da prisão em flagrante em preventiva, fica superada a alegação de nulidade porventura existente em relação à ausência de audiência de custódia”. Nesse ponto, ressaltamos um dos precedentes apontados no caderno de jurisprudência do tribunal como exemplo da sedimentação do entendimento. Trata-se do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 103097-MG, de relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca. A análise do acórdão nos conduziu à narrativa do policial militar que prendeu os pacientes: “(...) que em patrulhamento, o depoente e equipe visualizaram uma motocicleta de cor vinho, e o condutor em atitude suspeita, e que, ao adentrar a rua São Cnspim, o condutor (Lucas Felipe Silva, 17 anos) de imediato tenta entrar em uma reside ̂ncia de número 15; e ao ser dada ordem para que parasse e ficasse na posic ̧ão de busca pessoal, este,. bastante nervoso, colocou a motocicleta na garagem. (...) que neste momento, os militares depararam com mais dois indivíduos no fundo da reside ̂ncia, sendo o indivíduo Cleber Anto ̂nio Anacleto Júnior, 18 anos de idade e João Vitor Silva, 21 anos de idade; que ao ser realizada busca no interior da residência, tendo em vista os tre ̂s abordados estarem com os a ̂nimos bem exaltados, o CB Daniel localizou em cima de uma máquina de lavar (...)”.
O flagrante foi lavrado por crimes de tráfico e associação para o tráfico de drogas e possui pelo menos dois pontos muito problemáticos, que demandariam a ocorrência da audiência de custódia a fim de verificar a licitude da atuação policial.
Como se observa, foi a atitude suspeita dos custodiados que conduziu os policiais a abordá-los, o que se reproduz em parcela considerável dos casos de tráfico de drogas no Brasil. Ocorre que tecnicamente os policiais realizaram uma busca pessoal sem mandado judicial; ora, a essa matéria, o Direito Processual Penal brasileiro dedica apenas um artigo, o 244 do CPP, cuja redação adota termos de difícil precisão semântica como “fundada suspeita”, deixando ampla margem de atuação aos policiais, o que, segundo diversas pesquisas realizadas no Brasil, reforça dinâmicas racializadoras. (DUARTE et al, 2014). No caso em questão, o encontro proporcionado pela audiência de custódia seria uma ótima oportunidade para mensurar se a atitude do custodiado justificava uma abordagem policial ou se esta se deu de modo abusivo.
Salta ainda aos olhos a busca realizada no interior da residência dos custodiados sem mandado judicial e sem a preocupação até mesmo de afirmar se houve ou não autorização dos moradores. Evidentemente esse aspecto precisaria ser abordado na audiência de custódia para sustentar um eventual relaxamento do flagrante o que, entretanto, não ocorreu; e que o STJ entendeu não trazer prejuízos ao processo.
Se as audiências não se estabelecem como etapa obrigatória dos procedimentos das prisões processuais, abre-se espaço para que os atores do sistema de justiça decidam quando acham ou não conveniente a ocorrência delas; e tal abertura, como sabemos, resulta frequentemente em decisionismos e arbitrariedades.
Por fim, o STJ afirma que: “com a superveniência de decretação da prisão preventiva ficam prejudicadas as alegações de ilegalidade da segregação em flagrante, tendo em vista a formação de novo título ensejador da custódia cautelar”. Se a prisão preventiva pode ser decretada de ofício pelo magistrado no curso da ação penal ou a requerimento do Ministério Público e de delegados de polícia em qualquer fase da persecução penal, a referida tese é realmente problemática?
A resposta é sim; e o perigo está em desconsiderar as razões da ilegalidade do flagrante. Vamos a um exemplo baseado no caso acima citado: se policiais adentram uma residência sem autorização judicial e sem anuência dos moradores, e dentro apreendem uma certa quantidade de drogas, poderíamos alegar a nulidade do flagrante, decorrente da violação domiciliar. Mas poderia o juiz decretar a preventiva? Para o STJ, sim, porque a prisão preventiva advém de um novo título. O que não se considera, entretanto, é que em casos assim o fumus comissi delicti está assentado em bases ilícitas, isto é, a prova da materialidade delitiva, imprescindível à decretação da cautelar nos termos do artigo 312 do CPP, é ilegal. Sendo assim, nem sempre será possível tratar em separado as situações ilegais de flagrante e decretos de prisão preventiva considerando estes últimos simplesmente como “novos títulos”.
Em síntese, essas teses sinalizam para uma errônea compreensão sobre as audiências e seus objetivos institucionais e, a um só tempo, ignoram a Convenção Americana de Direitos Humanos, relativizam a importância do princípio da oralidade, ignoram o papel do Poder Judiciário de proteção de direitos fundamentais e, sobretudo, tornam inócuas as narrativas frequentes de prisões em flagrante realizadas à margem da legalidade.
Referências
ASSOCIAÇÃO DE PREVENÇÃO À TORTURA. Sim, a prevenção à tortura funciona:perspectivas de uma pesquisa global sobre os 30 anos da prevenção à tortura. 2016.
Bandeira, Ana Luiza Villela de Viana. Audiências de custódia: percepções morais sobre violência policial e quem é vítima. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) –Universidade de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2018.
Binder, Alberto M. O descumprimento das formas processuais: elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
BRASIL. Ministério da Justiça. Audiências de custódia e prevenção à tortura: análise das práticas institucionais e recomendação de aprimoramento. Brasília, 2016. Disponível em:
Cano, Ignácio. Controle de polícia no Brasil.. Haia: Altus, 2005. Disponível em:
Duarte, E. C. P.; Muraro, M.; Lacerda, M.; Deus Garcia, Rafael de. Quem é o suspeito do crime de tráfico de droga? Anotações sobre a dinâmica dos preconceitos raciais e sociais na definição das condutas de usuário e traficantes pelos policiais militares nas cidades de Brasília, Curitiba e Salvador. In: Figueiredo, I. S. de; Baptista, G. C.; Lima, C. do S. (org.). Pensando a seguran ç a p ública e direitos humanos: temas transversais. v. 5. Brasília: Ministério da Justiça (SENASP), 2014. p. 81-120.
IDDD. Audiências de Custódia – Panorama Nacional. São Paulo, 2017. Disponível em:
Jesus, Maria Gorete Marques de. “A gente prende, a audiência de custódia solta”: narrativas policiais sobre as audiências de custódia e a crença na prisão. Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo, v.12, n.1, p. 152-172, fev./mar. 2018.
Muniz, J.; Proença Júnior. Da accountability seletiva à plena responsabilidade policial. In: Caruso, H.; Muniz, J. O.; Blanco, A. C. C. (orgs.). Polícia, estado e sociedade: saberes e práticas latino-americanos. Rio de Janeiro: Publit, 2007b. p. 21-73. Disponível em:
Manuela Abath Valença
Doutora em Direito pela UnB. Professora da graduação e do programa de pós-graduação em Direito da UFPE e da graduação da Unicap. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.
ORCID: 0000-0002-7292-4232
manuelaabath@gmail.com.
Treicy Kariny Lima de Amorim
Graduanda em Direito pela Unicap. Pesquisadora Bolsista do Grupo Asa Branca de Criminologia.
ORCID: 0000-0001-8870-2899
treicyamorim@gmail.com
Recebido em: 11.07.2019
Aprovado em: 31.07.2019
Versão final: 09.08.2019
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