INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 322 - Setembro/2019





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Bechtlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

EIXO 1: Processo penal e democracia hoje: princípios processuais penais, discursos morais e novos institutos
Novas tecnologias e a transformação cognitiva no processo penal

Autores: Alexandre Morais da Rosa e Yuri Felix

O debate aqui proposto é incipiente no espaço da justiça criminal, demanda muita reflexão e, acima de tudo, uma espécie de abertura epistêmica a novos saberes capazes de promover um salto qualitativo na prestação jurisdicional nesta quadra histórica marcada pela complexidade.(1) É certo que o desafio de todos os dias no ambiente forense é o de conseguir compreender as diversas perspectivas sobre o fenômeno jurídico, enfim, sobre o caso que se precisa enfrentar. Afinal de contas, selecionar o material jurídico (princípios, regras, jurisprudência, doutrina, etc.) que incidirá na compreensão dos fatos atribuídos – comprovados e não comprovados –, que, por sua vez, darão consistência e coerência à decisão judicial, demanda a leitura realista do ambiente singular do jogo(2) processual penal. Isso porque o sentido será sempre atribuído no tempo e no espaço em face de um contexto. A seleção de argumentos vencedores – dominantes/dominados – demanda atualmente grande esforço cognitivo, porque além dos Direitos Humanos, da Constituição da República, das Leis, Decretos regulamentadores, existe toda uma gama de soft law, a saber, muitas regulamentações infraconstitucionais (protocolos, resoluções, portarias, etc.). Por outro lado, conjugam-se as possibilidades de sentido atribuídas por Tribunais (STF, STJ, TRFs, TJs, Turmas Recursais). O trabalho e a manutenção das fontes necessárias ao julgamento é sempre uma tarefa árdua, dialogando com as capacidades cognitivas limitadas dos agentes (heurísticas, vieses, inteligência, memória, percepção, atenção, etc.).

Assim, a transformação digital precisa se fazer ver no Direito Processual Penal, compondo o ambiente forense de fontes de informação adequadas e estruturadas, capazes de aprender a auxiliar no processo de argumentação e de decisão. Isso porque não se recordar ou desconhecer uma “portaria”, por exemplo, pode levar a um resultado desastroso. O papel da tecnologia, provida de Inteligência Artificial, mostra-se como disruptivo. O velho modelo de decisão calcado nas capacidades individuais demanda a conjugação de mecanismos tecnológicos capazes de ampliar o horizonte de credibilidade, trazendo, por exemplo, o Big Data como auxiliar importante.

Operador do Direito é uma categoria que se pensa altamente racional, capaz de tomar sempre a melhor decisão em face do domínio dos fatos e do Direito. Essa visão imaginária é uma redução necessária da complexidade do mundo, da vida, para dar conta, mais ou menos, das atividades do dia a dia forense. O problema não é operar a partir dela, mas acreditar em sua veracidade sem certa dose de ceticismo. O que se pretende é um breve deslocamento na fé, na crença, de que os juristas são capazes de dominar o mundo. Enfim, a pretensão é inserir uma dose de realismo (não necessariamente o jurídico, da escola americana ou escandinava), dotando o jogador (denominação de quem participa do jogo processual/investigativo) de ferramentas teóricas hábeis ao estabelecimento de expectativas de comportamento decisório, tendo em vista as recompensas dos agentes reais que intervêm na relação do jogo.

Para se portar em cada contexto do jogo será necessário a todo tempo tomar decisões, especialmente do que invocar e do modo como serão expostas. Os decididores fazem uma espécie de contabilidade mental (mental accounting), sempre com as informações disponíveis, com a capacidade de atenção que tiverem, bem como com o mapa mental de que dispuserem. Nesse modo de decidir, a razão é um dos fatores que dialoga com outros campos, em especial com emoções, intuições e o imponderável(3) (efeito borboleta).

Além disso, os traços individuais dos jogadores, em cada contexto, pode ser fator decisivo para modificação de postura, como se verifica na hipótese do risco, da sensação de segurança ou aposta, em que, a partir de uma referência eleita, um jogador adota atitudes de arriscar ou manter o conquistado. Em outras palavras, existem os que são mais arrojados – amantes do risco – e os conservadores – avessos ao risco. Em geral, sente-se mais perder algo do que deixar de ganhar, o que pode ser muito importante no campo da Justiça Negocial, por exemplo (os descontos de pena, as táticas de pegar e largar, promoções, etc.). Este traço depende também do contexto em que a decisão é tomada, implicando, assim, a necessidade de se dominar o máximo de informações qualificadas sobre o que efetivamente está em jogo. Mas como as informações demandam custos de obtenção, organização e predição, surgem novos desafios, até porque pode ser considerável o volume de informação precisa de um esquema eficiente de leitura e compreensão. Sem isso, por exemplo, não adianta imprimir todas as decisões ou acórdãos dos julgadores, porque faltará o mecanismo de tratamento dos dados, com perda na capacidade de predição. Logo, além do acesso às informações, será necessário que se tenha capacidade de estruturação de dados e de mecanismos automatizados e/ou de inteligência artificial capazes de auxiliar no estabelecimento de expectativas de comportamento decisório.

Para isso, é claro que a revolução tecnológica e informacional exige a atitude de rever velhas práticas costumeiras, especialmente por quem se acha capaz de manter o antigo modo de decisão, mas que atualmente, com um pouco de realismo, encontra-se defasado. O tempo, a aceleração, a permanente urgência(4) e a velocidade da informação lançam novos desafios aos agentes da lei, cujo papel restou alterado.

Assim, mantida a necessidade do fator humano no processo de atribuição de sentido, especialmente para singularização das situações jurídicas, o esquema decisório no Direito pode ampliar o custo da informação necessária para uma decisão qualificada, além de reservar a capacidade cognitiva e intelectual para o que realmente importa. Preparar o procedimento decisório com mecanismos automatizados, reservando momentos em que o fator humano precisa incidir, constitui-se no novo horizonte do manejo da inteligência artificial. Claro que não se trata de substituir o humano, até porque no desenho do dispositivo – especialmente na construção do algoritmo – dependeremos do fator humano. E para isso, apesar de se poder dominar todos os momentos da produção da decisão, mormente nas demandas judiciais repetitivas e com pouca necessidade de verificação probatória (demandas repetitivas, consolidadas, súmulas vinculantes, etc.), o estabelecimento de padrões de comportamento decisório pode autorizar a eficiência da Jurisdição, inclusive em matéria probatória (standard probatório).

De qualquer forma, um dos pontos que pode ser encarado como óbice é o da singularidade de cada caso. Longe de querer estabelecer os protocolos decisórios do cotidiano, o uso de inteligência artificial pode ampliar a capacidade cognitiva, facilitando o caminho decisório, evitando assim o trabalho manual e repetitivo, dotando o processo penal de carga cognitiva relevante, íntegra e adequada a decisões mais justas, mantido o sujeito humano no centro do poder decisório.(5)

Notas

(1)  Franco, Alberto Silva. Na expectativa de um novo paradigma. Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias. Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, Universidade de Coimbra, v. I. p. 330, 2009, p. 330.

(2)  Calamandrei, Piero. ‘Il processo come giuoco’. Opere Giuridiche. v. I. Napoli: Morano, 1965.

(3)  Mlodinow, Leonard. O andar do bêbado: como o acaso determina nossas vidas. Trad. Diego Alfaro. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

(4)  Ost, François. O Tempo do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1999. p. 359.

(5)  Castanheira Neves, A. Entre o legislador, a sociedade e o juiz ou entre sistema, função e problema - os modelos actualmente alternativos da realização jurisdicional do direito. Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, Universidade de Coimbra, v. LXXIV, 1998; e, do mesmo autor, O Direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

Alexandre Morais da Rosa
Doutor em Direito pela UFPR. Juiz de direito do TJSC.
Professor de Direito da UFSC e da UNIVALI.
ORCID: 0000-0002-3468-3335
alexandremoraisdarosa@gmail.com

Yuri Felix
Doutor em Ciências Criminais pela PUCRS.
Professor de Processo Penal da ABDConst, EPD e UCS.
ORCID: 0000-0003-1494-9535
advyuri@gmail.com
Recebido em: 09.08.2019
Aprovado em: 09.08.2019
Versão final:12.08.2019



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