INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 322 - Setembro/2019





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Bechtlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

O conversador da Praça da Sé

Autor: Alvino Augusto de Sá

O artigo que segue, de autoria do querido professor Alvino, foi originalmente publicado no Boletim n. 244, de março de 2013. Republicamos o artigo como uma singela homenagem ao nosso mestre e Conselheiro Consultivo do Instituto, em razão de ele recentemente nos ter deixado. Esse artigo, distante das elaborações teóricas complexas de seus trabalhos mais propriamente acadêmicos, baseia-se em uma das muitas conversas do professor com as pessoas em situação de rua que ficam no entorno da Faculdade de Direito da USP. A escolha do presente artigo para republicação advém não apenas do fato de o professor sempre mencioná-lo, mas também porque se trata de um texto que traduz a forma indissociável com que os aspectos acadêmicos e os afetos humanos foram trabalhados por esse grande nome da criminologia. Suas pesquisas acerca da transdisciplinaridade e da superação dos cânones positivistas, voltando sua atenção para a escuta honesta das pessoas presas, criminalizadas ou socialmente vulneráveis ao sistema punitivo, possibilitou o desenvolvimento de sua “criminologia clínica de terceira geração”, incorporando o paradigma da reação social ao fazer criminológico clínico, bem como a criação do Grupo de Diálogo Universidade Cárcere Comunidade (GDUCC), vinculado à Faculdade de Direito da USP. Nesse passo, o professor Alvino inaugurou uma verdadeira escola de pensamento criminológico no Brasil. Nós, seus alunos, admiradores e orientandos, apesar de toda a tristeza e saudade provocada por sua partida, tomamos como dever a divulgação e o desenvolvimento de seu pensamento e de sua obra, na busca de inclusão social e reintegração, sonhando com a superação das grades reais e imaginárias que nos separam das vítimas preferenciais do sistema penal.

Bruno Shimizu
Diretor do IBCCRIM.

Dias atrás, eu e Mariana Borgheresi Duarte, minha orientanda de mestrado na Faculdade de Direito do Largo São Francisco – USP, estávamos na Praça da Sé, à entrada da estação do metrô, por volta das 16h00, discutindo algumas questões da rotina acadêmica. Percebi que se acercava de nós, em cambaleios e balbuciando palavras consigo mesmo, um indivíduo um tanto embriagado e maltrajado, com toda certeza morador de rua. Como reação primeira e espontânea, senti-me desconfortável ante sua aproximação. A tal ponto que cheguei a virar-me um pouco de lado, para evitar a abordagem. No entanto, ele, segurando suas calças, que ameaçavam cair, postou-se à nossa frente, e me disse com voz rouca e palavras entrecortadas: “Doutor, me arruma aí uns 15 ou 20 centavos”. (Vale esclarecer que eu estava vestido de terno e gravata).

Nisto, deixei de ver naquele interlocutor um indivíduo maltrajado e embriagado e passei a ver uma pessoa que pedia minha atenção e meus favores, bem como a atenção de minha orientanda. Ofereci-lhe uma nota de dois reais e lhe disse: “Dois reais servem?” Ele pegou a nota, respondeu que serviria bastante, agradeceu e me perguntou: “O senhor... o que é? Advogado ou juiz de Direito?”

Em questão de “frações de segundo”, procurei encontrar uma resposta que não fosse mentirosa, por respeito à pessoa que a mim se dirigia, e que tivesse algum sentido para ele. Não sou advogado, nem juiz de Direito. Se eu lhe respondesse que sou professor de Criminologia da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, isto não lhe faria sentido algum. E, num relance de intuição, respondi-lhe, meio que para buscar saber qual seria a sua reação: “Eu sou um conversador da Praça da Sé”. Diante de minha colocação, ele, um tanto pensativo, resmungou: “Conversador da Praça da Sé...”. Em seguida, voltando-se de vez para a Mariana, e já fazendo menção de se retirar, continuou: “É por isso que ele está vivo até hoje”. E afastou-se na praça, sem rumo, certamente à espera de encontrar um lugar onde pudesse desfrutar de seus dois reais, e sempre segurando com a mão esquerda suas calças, que continuamente ameaçavam cair.

Conversador da Praça da Sé... É por isso que ele está vivo até hoje. Gostaria muito de discutir com nosso interlocutor o que ele quis dizer com esse seu resmungo, mas infelizmente ele se retirou, certamente porque não se tratava de uma resposta dele, mas unicamente de uma reflexão, um resmungo dele consigo mesmo. Comentei com a Mariana o sentido profundo que aquelas palavras poderiam ter, e ficamos os dois em silêncio por segundos. Permito-me fazer a seguir algumas reflexões a partir do resmungo de nosso interlocutor, muito provavelmente um morador de rua, um morador da Praça da Sé.(1)

Conversador da Praça da Sé... É por isso que ele está vivo até hoje. Ou seja, fosse eu um advogado, um juiz de Direito, ou outro profissional engravatado, que unicamente transita pela praça, mas indiferente a ela e até aversivo às pessoas que ali estão, talvez eu não estivesse mais vivo. Portanto, não são os títulos outorgados pela Academia e demais instituições que me garantem a continuidade na vida. O título que me garante a continuidade na vida é o de conversador da Praça da Sé. Aliás, nem se trata de título, mas de um modo de ser, de agir, de viver. A vida não necessita de títulos. A vida é uma grande obra, mas uma obra sem títulos. Às vezes, os títulos podem até colocá-la em risco.

Ser conversador é não se esquivar da aproximação, do contato. Ser conversador é vencer as resistências internas e externas e buscar a todo custo o diálogo, ainda que em meio à violência. Dar dinheiro é muito fácil. Dar rapidamente dinheiro ao pedinte pode ser uma forma sutil de dispensá-lo e evitar sua aproximação. O difícil é conversar. Conversar é dialogar, é se expor ao outro, é ouvir o outro e valorizá-lo, é buscar compreender suas razões e até mesmo as razões de sua violência e ameaças. Mas isso é por demais difícil. Muito mais fácil, no caso de violência, é revidá-la e, consequentemente, incrementá-la, com a falsa sensação de que estamos seguros e tranquilos por trás de nossos títulos e de uma máscara de justiça.

Ocorre que a injustiça é que motiva a violência. Qual injustiça? O que é justiça? As respostas a estas intrigantes indagações, quando referentes às situações dramáticas de violência, não serão encontradas nos livros, nos códigos, na doutrina, na filosofia, na moral, na religião, nas ideologias (de esquerda ou de direita), mas na fala das pessoas envolvidas com a violência. Porém, na fala das pessoas de todos os segmentos, pois cada segmento terá suas próprias vivências e respostas sobre o que é ser injustiçado: policiais e seus familiares, agentes penitenciários e seus familiares, membros da sociedade – vítima, moradores de periferia, moradores dos morros, integrantes do chamado crime organizado ou das chamadas facções criminosas.(2) E a fala significativa das pessoas envolvidas com a violência acontece na conversa, na conversa sem títulos, na conversa entre iguais, que se processa na praça pública.

Para as pessoas que se sentem injustiçadas, violentadas em sua história, não interessa o que dizem os códigos, a moral, a ética, a filosofia sobre o que é justiça e o que é violência, mas sim o que elas sentem na pele e o que diz a sua própria história. Trata-se de litígio histórico.

O enfrentamento saudável do litígio histórico não se dá por seu acirramento, mas pela compreensão mútua das partes litigantes.

Muitas violências têm sido praticadas em nossas ruas, com inúmeras mortes, execuções sumárias, incêndio de ônibus etc. Violências frequentemente atribuídas ao chamado crime organizado, ou, em outros termos, às facções criminosas. Esta não é a primeira onda de violências que nos assombra a todos. E todos se perguntam: será a última? Quando, como e contra quem será a próxima? Mas a pergunta que mais angustia a todos e se transforma no grande desafio para políticos e autoridades é esta: afinal, qual é o caminho de solução para esse clima de guerra?

Os políticos e autoridades apressam-se em providenciar, ou melhor, em improvisar soluções, em dar respostas que satisfaçam a opinião pública. Aliás, a bem da verdade, não improvisam absolutamente nada, pois todas e quaisquer soluções apresentadas, em termos de providências imediatas, são sempre as mesmas, aquelas conhecidas de sempre e de todos: novas prisões, transferências de presos para presídios federais, trocas de secretários ou de outros titulares de postos de comando, prisão de policiais envolvidos em (supostas) execuções de (supostos) criminosos, entre outras. No âmbito legislativo, as providências reclamadas e proclamadas são sempre as mesmas: criação de novos tipos penais, agravamento de penas, endurecimento das regras para a concessão de benefícios. Todas essas ditas soluções têm um traço em comum: prescindem de qualquer reflexão, de qualquer trabalho intelectual sério de aprofundamento na análise do problema, que se apresenta profundo, complexo e histórico. Em outras palavras: prescindem de qualquer inteligência. Os que as propõem e implantam, se tiverem inteligência (e a gente até supõe que a tenham), não usam absolutamente nada dela nessa delicada tarefa.

Como falar em compreensão mútua das partes litigantes, quando de uma delas diz se tratar de crime organizado? Como falar em compreensão mútua das partes litigantes, quando de uma delas diz se tratar de uma sociedade indefesa, refém e vítima histórica de violências? Talvez o primeiro passo na busca da compreensão fosse tentar evitar os rótulos, a começar pelo de crime organizado. A se manter esse rótulo, não terá início conversa alguma, e, consequentemente, entendimento algum. Se considerarmos os que integram o chamado crime organizado, também para eles a sociedade é organizada em suas forças repressivas, em suas forças excludentes, em seus preconceitos e em todo seu poder de mídia, de formulação e prática de leis seletivas e injustas, enfim, em seu poder de dominação em geral. Também o rótulo vítima deveria ser evitado, pois, tratando-se de litígio histórico, todas as partes litigantes se sentem vítimas.

A compreensão mútua supõe a aproximação entre as partes. A aproximação supõe o diálogo, a conversa. E a conversa, para se processar e progredir, supõe o afastamento de rótulos, assim como também de títulos. Trata-se de conversa na praça pública, na Praça da Sé, que a todos pertence por igual, na qual todos são iguais. Não existe, de um lado, o crime organizado, assim como não existe, do outro lado, a sociedade organizada, a sociedade – vítima. O que existe é um todo conflitivo, a sociedade, da qual todos os litigantes fazem parte.

Dizer isso talvez soe dizer nada mais do que o óbvio. Mas é um óbvio que não se impõe, ao qual todos nós resistimos em reconhecer, qualquer que seja o segmento rotulado a que pertencemos, ou do crime organizado, ou da sociedade organizada. Se quisermos construir uma conversa entre as partes litigantes, este é o ponto de partida fundamental e inevitável: todos os litigantes estão na mesma praça, todos integram uma mesma sociedade, pelo que o litígio é um componente que integra a própria sociedade e traduz conflitos inerentes a ela, aos quais ela, como um todo, deve enfrentar. E eu me arriscaria a dizer que o instrumento fundamental, básico, inicial para esse enfrentamento é a conversa, a conversa na praça pública, que a todos pertence por igual.

Certa feita, perguntei a um líder de facção, em um presídio: “Até quando você acha que vai essa onda de violências entre as facções e o Estado?” Respondeu-me ele: “No dia em que o Estado atender a todos os direitos legítimos dos presos, quem sabe, nesse dia, as facções não tenham mais razão de ser”. Observe-se que ele não disse “nesse dia a gente abre mão das facções”, mas “as facções não tenham mais razão de ser”. Portanto, não é se combatendo as facções, não é guerreando contra elas que elas se dissolverão. Esse líder (que certamente não quer abrir mão de sua liderança, de seu poder, e, portanto, não quer abrir mão da facção) nos dá a chave da solução: as facções não mais existirão simplesmente quando elas não tiverem mais razão de ser. E elas não terão mais razão de ser quando o seu papel não tiver mais sentido, ou, quando elas não tiverem mais espaço para desempenharem seu papel. A saber, quando o Estado for o legítimo e real protagonista do atendimento às necessidades e direitos legítimos dos candidatos à seletividade penal e da população carcerária.

E quais são essas necessidades? Quais as demandas? Quais as frustrações? Como atendê-las? Todas essas questões estão cravadas em litígios e conflitos históricos, componentes da própria textura da sociedade: conflitos entre ter e não ter, entre pertencer e não pertencer, entre ser e não ser. As respostas a elas, ou melhor, sua discussão será processada de forma construtiva por meio da conversa na praça pública.

Ora, como é difícil ter uma conversa construtiva na praça pública! Sim, porque ali é o lugar sem títulos, por vezes até sem nomes, em que todos se igualam, ninguém é doutor ou professor. Lá é o lugar onde o juiz não é juiz, o promotor não é promotor, o advogado não é advogado, o parlamentar não é parlamentar e onde o criminoso não é criminoso. As pessoas que necessitam se identificar com seus títulos, inclusive o criminoso, ali na praça elas temem perder sua identidade. Na praça, as pessoas devem aprender a redescobrir sua identidade intrínseca e nela encontrar sua segurança.

É muito mais fácil conversar a partir do parlamento monocrático, das leis, dos gabinetes, escritórios, a partir dos cargos e títulos, da filosofia, da moral e de valores previamente definidos, da constituição (com letra minúscula) interpretada e aplicada com escandalosa parcialidade. Nos parlamentos monocráticos, gabinetes e academias, os títulos e cargos têm como primeira finalidade a de brindar as pessoas com prestígio, prerrogativas, direitos e privilégios .

Já na praça pública, os títulos não brindam ninguém com prestígios, prerrogativas, direitos e privilégios, mas oneram a todos com obrigações, compromissos, ainda que, paradoxalmente, sempre em uma relação totalmente simétrica com os demais. Lá é o lugar onde justiça e injustiça têm outras definições. Ou melhor, não têm definição alguma, mas são simplesmente vividas e expressas.

Em não havendo conversa na praça, haverá violência, que perdurará através de seus ciclos. Uma guerra cíclica, sem vencedores. Uma violência na qual todos são perdedores. A violência pode levar à morte, até repentina, aqueles que dela são vítimas. Por outro lado, porém, poderá levar à morte também aqueles que a praticam, ainda que uma morte interior, paulatina, pouco perceptível, mas nem por isso necessariamente menos sofrida.

É muito difícil ser conversador da Praça da Sé . É muito mais fácil dar dois reais a quem nos pede 15 centavos, porque assim a gente o dispensa logo e evita conversar. Eu gostaria muito de, juntamente com a Mariana, encontrar novamente aquele interlocutor na praça, e, sem lhe dar dinheiro algum, trocar ideias sobre o que ele nos resmungou, enquanto segurava suas calças. Mas reconheço que isso é praticamente impossível. Não porque nós não o encontremos mais, mas porque o diálogo, as conversas dificilmente se retomam ou se repetem. Elas geralmente prosseguem, só que em novos contextos e, portanto, com novos significados. Na praça, todos devem se preocupar em aproveitar ao máximo possível o momento da conversa, simplesmente porque o momento não se repete; ele é sempre único.

Em todo caso, mesmo assim, eu e Mariana gostaríamos muito de prosseguir uma conversa, uma discussão com nosso interlocutor sobre o que ele quis (ou quer) dizer com seu resmungo: Conversador da Praça da Sé... É por isso que ele está vivo até hoje.

Única referência “bibliográfica”

Autor: O Interlocutor da Praça da Sé.

Obra: A conversa. Autor sem nome, obra sem título, publicação sem editora. A obra está disponível para todos, de todos os segmentos sociais, não para ser lida, mas para quem quiser experimentá-la e vivê-la em qualquer praça que seja.

Preço: variável, podendo ser bastante custoso ou prazeroso, dependendo de cada conversador, mas sempre será profundamente compensador.

Notas

(1)  Cumpre dizer que o episódio acima se deu na época em que vinham acontecendo cenas de violência na cidade de São Paulo, com ataques a ônibus e assassinatos.

(2)  Argumentando pelo extremo, até mesmo o grande latifundiário que se sente injustiçado e violentado por ter tido uma de suas diversas fazendas invadida e desapropriada para fins de assentamento, até ele deve ser respeitado em sua fala sobre o que é injustiça e violência. O entendimento não amadurecerá e não criará raízes, sem que sua fala também seja ouvida e processada, dentro de um diálogo que será sempre e sempre paradoxal e jamais concluído.

Alvino Augusto de Sá
Professor de Criminologia da USP.



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