INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 318 - Esp. Pac. Anticrime





 

Coordenador chefe:

Luigi Barbieri Ferrarini

Coordenadores adjuntos:

Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Becthlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias

Conselho Editorial

Legítima defesa e o tratamento jurídico do excesso: legislando ao absurdo

Autor: Cláudio Ribeiro Lopes e Alexis Andreus Gama

Este artigo visa a buscar debater parte específica do projeto de lei editado pelo Ministério da Justiça pelo qual se pretende estabelecer uma série de reformas pontuais em vários dispositivos da legislação penal, processual penal e penitenciária do país . O que aqui se pretende é apontar pontos nebulosos e equívocos do projeto nos moldes em que proposto fora quanto ao tema do tratamento jurídico do excesso na causa justificante da legítima defesa .

De início, cumpre destacar que o atual Código Penal disciplina o instituto em seus arts. 23, parágrafo único e 25. Todo excesso praticado a partir de uma excludente de ilicitude acarreta a queda da condição justificante, possibilitando a punição, por dolo ou culpa, quanto ao resultado decorrente do excesso praticado.

A Reforma Penal de 1984, ao acolher substancialmente postulados finalistas ainda vigentes no Código, de forma coerente e consequente, excluiu da condição legítima quem se vale da mesma para violar bem jurídico alheio, por excesso. Finalisticamente falando, pode-se dizer com isso que o caráter ético-social do Direito Penal resta preservado diante da exigência de boa-fé de quem atua em excludente de ilicitude, retirando desse a legitimidade de seu comportamento frente ao excesso perpetrado.

Por outro lado, o Direito Penal, enquanto instrumento regulador punitivo que pretende arrostar o arbítrio estatal, visa à incriminação de comportamentos, como regra. As denominadas descriminantes, ou, justificantes, por excepcionais que sejam, devem ser acolhidas sempre restritivamente, com o gravame de se exigir sua completa valoração positiva, o que impede a mera objetivação de qualquer causa de justificação.(1)

Esses dois fatores acima apontados confluem no sentido de se compreender a dimensão que toma o Direito Penal pós-Iluminismo, ou seja, como ele opera nos modernos Estados democráticos de direito: legitimam-se, excepcionalmente, certas condutas com o escopo de se resguardar, justamente, o caráter excepcional das situações vivenciadas no mundo do ser. O dever-ser nasce do reconhecimento do ser; caberia, aqui, uma razoável digressão sobre a natureza das coisas,(2) bem como sobre estruturas lógico-objetivas.(3) Todavia, permita-se o básico: é a finitude da condição humana e os estreitos limites estatais quanto à efetiva capacidade de oferecer segurança pública concreta que faz surgir essa justificante.

Por conseguinte, frente à excepcionalidade que lhe é inerente, o excesso sempre será visto como intolerável e passível de punição no âmbito da ilicitude, podendo haver outro exame em sede de culpabilidade (hipótese de eventual descriminante putativa, em que o agente, por erro, supõe ainda carecer agir, mas, já estando em excesso).

Todavia, a reforma pontual ora proposta, desborda para outros limites, todos pouco visíveis ou palpáveis: esse mesmo excesso, se derivado de medo, surpresa, ou violenta emoção pode gerar uma causa geral de diminuição de pena e, até o perdão judicial, pelo que se depreende da redação completamente atécnica prevista no projeto.

Nesse ponto é que se centra a primeira crítica (mesmo porque há inúmeros outros pontos do projeto que podem ser amplamente criticáveis). Vejam: se o projeto de reforma, nesse interim, visa a tratar da categoria dogmática da ilicitude e de seu excesso, ao inserir elementos de redução de pena e, principalmente, deixar ao azo judicial não aplicá-la, temos de refletir sobre uma inserção pouco recomendável de fatores/elementos relacionados à culpabilidade (medo, surpresa, violenta emoção) dentro da ilicitude (o projeto anticrime parece pretender, mesmo, fundir ilicitude e culpabilidade quanto ao tratamento jurídico do excesso motivado por essas três figuras, ainda que não em sede de descriminantes putativas...).

Como mencionado alhures, a inspiração finalista do Código apresenta uma série de fatores técnico-legislativos e dogmáticos infranqueáveis. Um deles, de que ora nos ocupamos, é justamente o conceito pessoal de injusto culpável. Não nos deteremos no desvalor da ação e do resultado, pois nos interessa, na perspectiva crítica que levantamos, a medida/magnitude da culpabilidade. Ora, sob a perspectiva finalista, a culpabilidade é reprovabilidade que opera sobre uma dada resolução de vontade; não é a vontade em si, mas, a reprovabilidade sobre essa decisão de vontade.(4)

Nessa perspectiva, haveria, de conformidade com o projeto, uma menor ou nenhuma reprovabilidade se constatado que o agente agira em excesso na legítima defesa, excesso esse decorrente de medo, surpresa ou violenta emoção. Ora, se acolhemos o conceito pessoal de injusto – e de injusto culpável, fundamentalmente, por óbvio que não estamos mais a discutir temas afetos à ilicitude. A maior ou menor medida da culpabilidade(5) – ou, como pretende o projeto, sua exclusão via perdão judicial – jamais poderá operar efeitos sobre a ilicitude, a não ser que se pense em fundir ilicitude e culpabilidade [von Liszt, Welzel e até Mezger devem estar se revirando nas tumbas com isso...]. Nesse sentido, o projeto não parece, mesmo, feito para professores; deve ter sido feito para confundir a aplicabilidade da norma penal, o que é um contrasenso insolúvel.

Se isso é proposital – e não um devaneio dogmático estrutural –, estaremos diante de uma hipótese que mais do que ferir de morte a estrutura finalista que inspira o atual Código Penal evoca uma relação aparentemente estranha entre as categorias dogmáticas da ilicitude e da culpabilidade; uma confusão teórico-científica no conceito analítico de delito, conforme o projeto parece fazer depreender.

Em outro sentido, temos que atentar para consequências bastante graves frente à técnica legislativa do projeto que, pecando por uma atecnia crassa, trará para a ilicitude fatores que deveriam ser dispostos ao nível da culpabilidade, ou, quem sabe, da punibilidade. Por que insistimos nisso?

Porque, diversamente das categorias dogmáticas denominadas culpabilidade e punibilidade, esta última estranha ao conceito científico de delito, de acordo com a inspiração finalista do nosso Código, a ilicitude opera efeitos sobre todo o Direito. Veja-se: a se aprovar esse projeto sob o formato proposto, o agente que for agraciado pelo perdão judicial em sede de legítima defesa por realizar o excesso poderá ser demandado civil e/ou administrativamente? Estaria o projeto criando uma nova figura de perdão judicial excludente de ilicitude?!

Trata-se de uma tentativa de completa blindagem jurídica, metaforicamente, ao estilo caveirão do BOPE, se levarmos em consideração os índices de excesso e violência policial no país e a peculiaridade dos denominados autos de resistência.(6)

Pelo que pretende o projeto, não só o agente restará impune tendo agido em excesso por medo, surpresa ou violenta emoção, como, também e principalmente, ele e o Estado poderão alcançar meios que inibam suas responsabilidades, civil e/ou administrativamente. Reclamações ao pároco, então...

Cabe ainda dizer que o referido projeto tem ares de lei penal simbólica. Desde seu artigo 1º, que define as inovações legais como “medidas contra a corrupção, o crime organizado, e os crimes praticados com grave violência à pessoa”, o projeto demonstra ser o que a doutrina chama de “lei de crise” ou, ainda, “lei-álibi”. Álibi porque mascara, com o discurso populista de luta contra o crime e de proteção da paz social, intenções ocultas do legislador.(7) A característica principal do Direito Penal simbólico dessas “leis de combate” é a diferença entre os fins manifestos e os fins latentes na edição das normas.(8) E, no tópico do excesso em legítima defesa, não é difícil supor quais os fins latentes sob a nova previsão de redução de pena e perdão judicial, quando se pensa que cerca de 40% dos assassinatos noticiados às autoridades estatais no Rio de Janeiro hoje em dia são relacionados aos autos de resistência.(9) Em tempo: em janeiro de 2018, os autos de resistência registrados no Rio de Janeiro superaram 154, maior número em vinte anos, computando-se cerca de uma morte por intervenção policial a cada 5 horas. E mais: de 1998 a 2018, estima-se que 13.499 pessoas morreram em confrontos policiais na capital fluminense.(10) Se, conforme diz Hassemer, o Direito Penal simbólico é uma pilhéria,(11) a inovação ora discutida é uma pilhéria que pode custar vidas se de alguma forma for usada para ocultar ou legitimar as mortes causadas por agentes de segurança pública em serviço.

Se, conforme lembra Foucault, as leis são feitas por e para alguns e são aplicadas/impostas aos outros,(12) o projeto em análise está inserido no que o filósofo chamava de gestão diferencial de ilegalidades. Tais ilegalidades (ou ilegalismos) são arranjos de permissões e proibições no seio dos sistemas penais que ora servem de privilégio ou subterfúgio às classes dominantes para moverem-se de acordo com seus interesses entre procedimentos legais e instituições, e ora servem de instrumento de controle, isolamento ou neutralização das classes dominadas.(13)

Observar a quem serve a proposta de redução de pena ou perdão judicial nos excessos de legítima defesa, no país em que a “guerra às drogas” conduz a recordes de mortes causadas por policiais, é observar como a lei é capaz de gerir ilegalismos de maneiras distintas. Não à toa o Ministro da Justiça, autor do projeto, afirmou que, apesar de ninguém desejar a morte do “criminoso”, caso aconteça, “o policial não pode ser tratado como homicida”.(14)

Por todo o acima exposto, em que se buscou tão-só apontar os equívocos, intencionais ou não, do projeto de reforma autointitulado anticrime, fulcrando a crítica meramente num item do projeto – o tratamento jurídico do excesso na justificante da legítima defesa –, tem-se que as premissas direcionam num determinado sentido: muito além de recrudescer a punição num país em que 98% do PIB está concentrado nas mãos de 3% de sua população – elemento que, por si só, deveria destruir as claras fragilidades do chamado pacote legislativo anticrime –, o que se propugna é oferecer um projeto de lei calcado no populismo barato, atécnico, nada racional, hábil a legitimar milícias e certos grupos de extermínio que parecem operar dentro do Estado e que, carente de qualquer base empírica, divorciado não apenas da realidade social do país, surta à dogmática jurídico-penal, o que o faz desbordar para o puro arbítrio, ao autoritarismo e, fundamentalmente, exigindo de seus propositores e defensores o recurso sempre recorrente ao discurso populista e a argumentos de autoridade, como o fato de o projeto ser uma cópia do que se fez na Itália.

A total inexistência de estudos, pesquisas, debates, discussões com conhecedores do tema e da boa técnica legislativa e o respeito à dogmática penal parece conduzir ao lugar de sempre: a vala da mediocridade histórica, lugar-comum de projetos de tal jaez.

Notas

(1)  PRADO, Luiz Regis; CARVALHO, Érika Mendes de. Curso de direito penal brasileiro. Vol. I – Parte Geral. 15. Ed., Rev., atualiz. e reform. São Paulo: RT, 2017. p. 245.

(2)  CEREZO MIR, José. La naturaleza de las cosas y su releváncia jurídica. In: Problemas fundamentales del derecho penal. Madrid: Tecnos, 1982. p. 41.

(3)  WELZEL, Hans. O novo sistema de direito penal: uma introdução à doutrina da ação finalista. Trad. Luiz Regis Prado. São Paulo: RT, 2001, pp. 14-18.

(4)  WELZEL, Hans. Idem, p. 88-89.

(5)  PRADO, Luiz Regis. O injusto penal e a culpabilidade como magnitudes graduáveis. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, RT, ano 7, n. 27, p. 128-129, jul./set./1999.

(6)  MISSE, Michel (org.). 2011. “Autos de Resistência”: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na cidade do Rio de Janeiro (2001-2011)”. Relatório Final de Pesquisa - Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflitos e Violência Urbana. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mimeo.

(7)  HASSEMER, Winfried. Direito penal simbólico e tutela de bens jurídicos. Trad. Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos. In: VASCONCELOS, Carlos Eduardo de Oliveira (org.). Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008. p. 214.

(8)  HASSEMER, Winfried. Idem, p. 217.

(9)  SOARES, Rafael. Tráfico e milícia são responsáveis por um terço dos homicídios elucidados no Rio. Extra. 27/09/2019. Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/trafico-milicia-sao-responsaveis-por-um-terco-dos-homicidios-elucidados-no-rio-23404374.html Acesso em: 12 fev. 2019.

(10)  MARINATTO, Luã. Janeiro registrou o maior número de autos de resistência da história no Rio. Extra. 02/03/2018. Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/janeiro-registrou-maior-numero-de-autos-de-resistencia-da-historia-no-rio-22448956.html Acesso em: 12 fev. 2019.

(11)  HASSEMER, Winfried. Ibidem, p. 218.

(12)  FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; trad. Raquel Ramalhete. 41. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. p. 261.

(13)  DELEUZE, Gilles. Foucault. Trad. Claudia Sant’Anna Martins. Rev. Renato Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005. p. 39.

(14)  PALMA, Gabriel; CALGARO, Fernanda. Moro diz que policial não pode ser tratado como homicida se criminoso morrer. G1. 06/02/2019. Disponível em: Acesso em: 12 fev. 2019.

Cláudio Ribeiro Lopes
ORCID ID: https://orcid.org/0000-0002-3916-0322
Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais. Mestre e graduado em Direito. Professor Adjunto 3 da UFMS.
claudiolopes198@gmail.com

Alexis Andreus Gama
Especialista em Ciências Penais e Graduado em Direito. Escrevente Técnico Judiciário – TJSP.
alexislp90@hotmail.com



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