Luigi Barbieri Ferrarini
Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Becthlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias
No dia 4 de fevereiro de 2019, o Governo Federal, por intermédio de seu ministro da Justiça, Sergio Moro, deu publicidade a um anteprojeto de lei de sua autoria que altera catorze normas em vigor no país, dentre elas o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei de Crimes Hediondos, A Lei de Execuções Penais e o Código Eleitoral, e cujos objetivos, segundo Moro, seriam atacar três questões centrais que, a seu juízo, estariam interligadas: a corrupção, o crime organizado e os crimes violentos. O projeto, não obstante o estardalhaço da mídia, é uma retomada não declarada de um projeto intitulado 10 medidas contra a corrupção, apresentado ao Congresso Nacional pelo Ministério Público Federal em 2015. Tais medidas foram alvos de duras críticas de várias entidades e de muitos juristas, sendo qualificadas por um ministro do STF como um “delírio”. O fato é que, não obstante o apoio da grande imprensa e da população por ela manietada, a tramitação do pacote dos Procuradores da República não obteve os resultados esperados no Congresso Nacional. Agora, com laço de fita diferente, com nova embalagem sem a opacidade da cor neutra das entidades que subscreveram aquele projeto, o novo pacote — em tom laranja — parece ser uma nova tentativa de apresentar a todos um pouco daquilo que já não se conseguiu aprovar no passado recente, na legislatura anterior. Enfim, o pacote virou um embrulho.
É importante destacar o contexto da apresentação do embrulho de Moro. Diferentemente das 10 medidas contra a corrupção, apresentadas no seio de um Brasil conflagrado pela radicalização política, que assistiu ao seu segundo processo de impeachment e que associou os problemas do governo e da economia aos casos de corrupção que vieram à baila naquele momento, o anteprojeto de lei do ministro Moro surge com outra configuração econômica e social. O curto governo de Michel Temer, sucessor de Dilma após seu impedimento, empenhou-se em mostrar ao mercado um projeto de corte liberal, que se responsabilizou pela reforma previdenciária e por apresentar uma reforma trabalhista que ficou represada no Congresso. A ascensão de Bolsonaro tentou aprofundar aquela agenda econômica que fora preparada e iniciada por Michel Temer. Bolsonaro, com perfil extremamente conservador no plano dos costumes e na esfera de direitos humanos, alça ao poder um ministro de perfil ultraliberal, formado sob a concepção dos economistas de Chicago, dando-lhe amplos poderes para a gestão da economia. Com carta branca para tudo na esfera da agenda neoliberal, Paulo Guedes passa a ser conhecido como “Posto Ipiranga”, por ser uma espécie de repositório completo de tudo aquilo que se pretende modificar na economia. As primeiras medidas apresentadas são no sentido de desfazer o pouco do estado de bem-estar social que já se teve. Propôs-se uma operação lava-jato na educação, seja lá o que isso possa significar. Já foi criada uma CPI da USP no plano do Estado de São Paulo, como proposto alhures, a fim de acabar com a “ideologização da universidade”.(1) Ao invés de se combater a sonegação previdenciária das empresas, maiores devedoras do tesouro, fez-se uma busca de inconsistências nos pagamentos do Bolsa Família. Os sindicatos são atingidos, com o fim do desconto automático do imposto sindical, não importando o desemprego que subiu no primeiro trimestre do governo e os treze milhões de desempregados.(2) Agora, quem quiser contribuir com uma diretoria de sindicato, terá que emitir um boleto e pagar no banco. O objetivo é minar a resistência sindical aos projetos neoliberais. Por fim, e o mais importante, apresenta-se uma radical reforma previdenciária, que atinge violentamente os mais pobres, mas preserva ganhos dos militares (é na previdência dos militares que está o maior rombo do Sistema). Com esse contexto de início de governo, tem-se uma clara agenda em que o estado de bem-estar social será substituído por um estado policial. E o autodesignado “pacote anticrime” de Moro é a face compensatória do não designado fim do estado previdência.
A primeira coisa que qualquer anteprojeto há de trazer é uma exposição de motivos das mudanças. A exposição de motivos é um gênero textual no qual são apresentadas as justificativas para criação, alteração, modificação ou extinção de uma determinada norma, de modo a indicar as ideias do legislador para a modificação de uma legislação vigente. A comunidade científica, pela exposição de motivos, toma ciência da proposta justificadora da modificação legal e passa a discutir seu conteúdo. De regra, a maturação passa pelos debates acadêmicos, conta com a contribuição das universidades onde estão os principais juristas, e envolve as instituições que aplicarão a lei, como associações de juízes, promotores, defensores públicos etc. Caixa de ressonância de toda modificação jurídica, a veneranda Ordem dos Advogados do Brasil, talvez a principal instituição da sociedade civil brasileira, trará sua opinião muitas vezes ouvida nesse tipo de debate. Após a comunidade científica, a própria sociedade, já tendo à disposição o instrumental científico haurido daquele debate, apresentará suas contribuições e críticas, levando ao Congresso Nacional todo o caldo de cultura filtrado desse debate, para que os representantes do povo possam aperfeiçoar e modificar aquelas propostas normativas. No entanto, não foi isso que aconteceu neste caso. Sergio Moro, ao apresentar uma exposição de motivos absolutamente genérica, que não demonstra de forma embasada as razões da proposta, rompe com a obrigação de apresentar a primeira justificativa de determinada norma à sociedade e ao Legislativo. Ao depois, nega-se a debater publicamente o tema da reforma penal, dizendo que cabe ao Congresso fazê-lo e que “há pressa, já que a proposta consta das prioridades para os 100 dias de governo Bolsonaro”.(3)
Ou seja, uma reforma que precisa de debate técnico e de uma necessária maturação deve ser aprovada o mais rápido possível, sem debates com a comunidade científica e com os operadores do direito! Só isso seria suficiente para despertar suspeitas nesse trâmite atravessado por dúvidas e pautado por esclarecimentos a serem prestados e que foram ocultados da Nação. O pacote deixa de sê-lo e parece aquele embrulho que o destinatário só deve abrir quando tiver que usar o “presente” dado.
O embrulho de Moro propõe inúmeras mudanças legislativas, em leis diversas, mas a tônica central, a par de questionáveis medidas anticorrupção, é ampliar o controle sobre as classes subalternas pela ampliação da punição. Muitos artigos já foram apresentados no Boletim de abril; e outras tantas contribuições doutrinárias estão no corpo deste número. Mas uma coisa é certa: todas as medidas convergem para ampliação do encarceramento em massa. A concessão de livramentos condicionais e progressão de regimes são dificultados; instituem-se medidas negociais que ignoram os déficits das defensorias públicas que não alcançam todo o território nacional com eficiência; visando a encurtar o tempo e custos dos processos penais, o plea bargain(4) prevê a confissão do suposto crime e dispensa da produção de provas, sem controle judicial e fora do crivo do contraditório, em um acordo direto com o órgão acusador, o Ministério Público. Do juízo, sai o réu condenado e com pena a cumprir sem devido processo legal; advogados terão seus serviços dificultados, pois a suspeição que paira sobre réus estende-se aos causídicos que os representam; a presunção de inocência é relativizada; as mudanças nos artigos que regulamentam a legítima defesa, ademais de terem uma técnica sofrível, são uma evidente autorização para matar pelas polícias dos estados. Enfim, depois de todo esse quadro, sabe-se que as medidas propostas certamente agravarão em muito o encarceramento brasileiro.
Entre 1990 e 2014, tivemos um incremento de 575% no número de presos no Brasil. A evidente consequência disso é o crescimento do déficit de vagas no sistema prisional. Com relação à superlotação, a taxa no Brasil é de 197% — 726.712 presos ocupavam no ano passado 368.049 vagas — praticamente dois presos para cada vaga. A quem interessa um aumento ainda maior da população carcerária? Diferente do que o imaginário odioso popular possa pensar, o encarceramento em massa é medida inócua quando o assunto é garantir a segurança pública e a paz social, pois os maiores interessados na superlotação são exatamente as facções criminosas que comandam as penitenciárias Brasil afora. É ali o maior reduto de recrutamento de novos agentes para novos crimes. Como já se disse, o acréscimo de sanções punitivas só poderia encontrar justificação quando se mostra necessário e possa permitir o controle estatal do sistema penitenciário. Se existe o princípio constitucional da eficiência (art. 74, II, da Constituição Federal), a gestão orçamentária, financeira e patrimonial está a demandar uma avaliação do alcance das medidas de natureza penal. Para garantia dos Direitos Humanos e em face do déficit de vagas, quaisquer novos crimes e novas penas ou dificultação das concessões de direitos à liberdade estarão condicionados à eficaz gestão do Poder Executivo que necessita imperiosamente zerar o déficit de vagas.(5)
Inconsistências, inconstitucionalidades, impropriedades, inadequações e desconhecimento absoluto da realidade brasileira. Esse é o quadro, em poucas palavras, do embrulho anticrime de Sergio Moro. Parece que o delírio, como se disse alhures, foi repetido aqui. Só não se sabe se a comunidade jurídica, o Congresso e a sociedade civil terão forças para enterrar esse amontoado de sandices. Este Boletim especial, assim como o número anterior, estão a comprovar isso. Que Lucas 23:34 seja suficiente para descrever nossa insatisfação.
Notas
(1) Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,deputados-criam-cpi-para-intervir-nas-universidades,70002799048. Acesso em: 22 abr. 2019.
(2) Disponível em: https://economia.uol.com.br/empregos-e-carreiras/noticias/redacao/2019/03/29/desemprego-trimestre-fevereiro-ibge.htm. Acesso em: 29 mar. 2019.
(3) Disponível em: https://painel.blogfolha.uol.com.br/2019/02/13/moro-recusa-pedido-para-fazer-debate-publico-sobre-pacote-anticrime/ ; https://blogdacidadania.com.br/2019/02/moro-nao-quer-fazer-debate-publico-sobre-o-pacote-anticrime/. Acesso em: 27 mar. 2019.
(4) Sobre a correta denominação do instituto processual, vejam-se os comentários sempre precisos de Coutinho, Jacinto Nelson de Miranda. Plea bargaining no projeto anticrime: crônica de um desastre anunciado. Boletim do IBCCRIM, n. 317, abr. 2019.
(5) Shecaira, Sérgio Salomão; Franco, Alberto Silva; Lira, Rafael de Souza. Lei de Responsabilidade Política. Boletim do IBCCRIM, n. 289, dez. 2016.
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