Luigi Barbieri Ferrarini
Ana Maria Lumi Kamimura Murata, Bernardo Pinhón Becthlufft, Daiane Ayumi Kassada, Danilo Dias
Autor: Fauzi Hassan Choukr
Inserido em um contexto sociopolítico claramente identificado com a expansão do sistema penal(1) como forma primária de controle social,(2) o denominado “pacote anticrime” composto pelos PLs 881/2019,(3) 882/2019(4) e PLC 38/2019(5) aposta, de forma ampla, na combinação do alargamento de tipicidade de condutas com o enxugamento do devido processo legal com objetivos decisionistas, binômio inevitável quando se mantém o discurso fácil do sistema penal simbólico.(6)
Naquilo que toca ao tema processual penal, a grande aposta oficial é a do incremento de mecanismos negociais, mecânica sujeita a críticas sérias e profundas mesmo nos ambientes sociojurídicos onde foi – e ainda o é, por certo – a grande forma de resolução de “casos penais”.(7)
Mas, aqui, quando se opera a importação de um rótulo jurídico, enfatiza-se a alegada eficiência desse modelo, descurando-se de aspectos relevantes do cenário comparado (a “negociação”)(8) como, por exemplo, a forma de investidura de agentes públicos encarregados da persecução(9) e toda uma larga discussão jurídica que existe para dar limites a como negociar e sobre o que negociar.(10)
Ademais, apregoa-se o emprego do modelo negocial penal como se a qualidade da apuração da infração penal – a dizer, a investigação criminal – gozasse, aqui, dos mesmos índices que no cenário comparado, fazendo tábula rasa do absoluto fracasso operacional da fase investigativa no Brasil, responsável que é – ao lado de outros fatores – pelo que denominei, em outros trabalhos, de denegação substancial da justiça penal.(11)
O resultado concreto que a experiência brasileira tem com a negociação penal desde o marco da sua lei pioneira (Lei 9099/95) é a do amorfismo negocial e a manutenção do afastamento das vítimas da jurisdição penal; estas que seriam, no discurso triunfante da edição da lei reguladora da negociação penal, potenciais protagonistas.
O rebaixamento dos padrões mínimos do devido processo legal, dentro deste, entre outros aspectos, o descuro com a produção probatória, gerou um estado de não cognição oficial, justificado com a busca de uma mera decisão da qual, por sinal, sequer se consegue identificar com precisão sua “natureza” nos embates de técnica jurídica.
E, se para as infrações de menor potencial ofensivo o fracasso do modelo negocial se mostrou rapidamente evidente pelas suas promessas não cumpridas – dentre elas, a celeridade é um fantasma à parte nessa estrutura – , quando a expansão negocial chegou à macrocriminalidade, à “criminalidade que importa”, aquela que vitimiza toda a sociedade pelos seus efeitos perversos, as deficiências estruturais da negociação, negligenciadas até então porquanto reduzidas ao universo da desimportância ofensiva, foram aos holofotes. Déficits de legalidade sobre o que negociar, como negociar e os papéis processuais nessa negociação passaram a ser alvo de críticas recorrentes em vários cenários jurídicos.
Por todas essas afirmações conclui-se que o modelo proposto no “pacote” reforça uma realidade ineficiente às custas da debilitação crescente do devido processo legal; e, para além do quanto já exposto aqui, se acresce que se trata de um modelo legal de reforço da norma e não voltado para a solução do conflito social que, em determinado momento, alcança, pelas vias do expansionismo penal, a condição de uma conduta penalmente relevante.
Em suma, os mecanismos negociais, quando incorporados no Direito brasileiro, acentuaram a característica inquisitiva de um modelo cultural de processo que, mesmo após a (re)constitucionalização e convencionalização, não conseguiu assimilar os passos primários de um modelo acusatório, assim como se deu em inúmeros outros países de tradição inquisitiva que buscaram introduzir mecanismos negociais e acabaram por reforçar a própria tradição inquisitiva.(12)
E aqui perde-se uma vez mais a chance de alterar-se de forma substancial o paradigma de um processo penal de reafirmação do sistema penal para um modo de ser do processo que se preocupe em alcançar a conflituosidade social e ser um – e não “o” – protagonista das soluções substanciais.
Se houvesse algo a ser encampado como mecanismo de resolução de conflitos alternativo ao processo ou mesmo, em determinado momento no processo, seria a justiça restaurativa, presente que é em graves conflitos sociais e na reconstrução democrática em inúmeros países, mas de tímida aplicação no Direito interno, mesmo para a criminalidade de menor ofensividade.
Aquilo que defendemos como alternativa aos mecanismos negociais expansivos do sistema penal defendidos no pacote anticrime é a substancial aplicação de mecanismos restaurativos com a superação, mediante o diálogo amplo dos inúmeros segmentos de conhecimento que se projetam para e sobre o tema, bem como com a participação efetiva de atores sociais, dos tópicos considerados como corriqueiramente objetáveis a essa forma de resolução de conflitos sociais.
Esse caminho parece-me muito mais consentâneo com a humanização de um sistema penal que não se quer diminuir por obra das forças sociais que exigem sua expansão, de modo a aliviar a pesada carga de estigmatização que se lança sobre a vida de todos os envolvidos no drama penal.
A alternativa a um modelo humano de resolução de conflitos sociais penais é o “mais do mesmo”. Com todas as inconsequências que lhe são próprias.
Notas
(1) Sobre o relacionamento do exercício do poder e emprego do sistema penal ver, entre outros, Acosta, Leonardo Machado; Gasparoto, Carlos Henrique. A influência do direito penal simbólico no surgimento dos sistemas penais paralelos e subterrâneos. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Franca, v. 13, n. 1, p. 119-147, 2018.
(2) A ver, entre outros, Wermuth, Maiquel Ângelo Dezordi. Medo, direito penal e controle social. Revista da Faculdade de Direito-UFU, v. 39, n. 1, 2011.
(3) Altera a Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral, para criminalizar o uso de caixa dois em eleições.
(4) Altera inúmeros dispositivos do CP, CPP e LEP para estabelecer medidas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência a pessoa
(5) Altera o Código de Processo Penal e o Código Eleitoral, para estabelecer regras de competência da Justiça Comum e da Justiça Eleitoral.
(6) Dentre outros, o texto de Junior, Nascimento; Do Nascimento, Aguinaldo Ferreira. Direito penal simbólico: a ineficiência do sistema penal contemporâneo. Jures, v. 8, n. 17, 2019.
(7) Dentre as inúmeras fontes sobre esse tema ver Bibas, Stephanos. Regulating the plea- bargaining market: From caveat emptor to consumer protection. Calif. L. Rev., v. 99, p. 1117, 2011, quem aponta índice de 95% de “resolução” de casos a partir de mecanismos negociais.
(8) A ver essa discussão em um cenário mais amplo, o texto de Grande, Elisabetta. Transplants, translations, and adversarial-model reforms in European criminal process. The Oxford Handbook of Criminal Process, p. 67, 2019.
(9) Preocupação frequente na common law estadunidense, onde se discute o papel daquilo que aqui seria compreendido como Ministério Público, instituição que, num ambiente negocial e de investidura política (cúpula da Instituição) age de acordo com interesses que são historicamente distintos daqueles identificáveis no cenário pátrio. Um deles, por exemplo, a assunção de um papel protagonista em políticas de segurança pública. Para uma visão histórica do assunto nos EUA ver Alschuler, Albert W. The prosecutor’s role in plea bargaining. U. Chi. L. Rev., v. 36, p. 50, 1968.
(10) A ver, entre outros, o estudo de Ma, Y. (2002). Prosecutorial discretion and plea bargaining in the United States, France, Germany, and Italy: A Comparative Perspective. International Criminal Justice Review, 12(1), 22–52. Disponível em: https://doi.org/10.1177/105756770201200102. Também KRUG, Peter. Prosecutorial discretion and its limits. Am. J. Comp. L. Supp., v. 50, p. 643, 2002.
(11) E que vem sendo progressivamente debatida em segmentos acadêmicos alheios ao Direito. A ver o seguinte apontamento: “Relatório produzido pela Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública (Enasp), em 2011, estima que o índice de esclarecimento dos homicídios no Brasil varie entre 5% e 8% (FBSP, 2014)2. E, em acréscimo ao baixo esclarecimento destes delitos, destaca-se um cenário de baixíssima efetividade do sistema de justiça criminal, no qual, segundo pesquisa recente sobre os tempos médios dos processos criminais envolvendo homicídios dolosos (Ribeiro et alii, 2014), em uma cidade como Belo Horizonte, os poucos casos esclarecidos levam, em média, 3.403 dias (cerca de nove anos) entre o seu cometimento e o seu julgamento pelo tribunal do júri. Sob todos os parâmetros, o crime contra a vida tem gerado enorme disjunções no funcionamento do sistema de justiça criminal e de segurança pública e, por vezes, é relegado mais a um plano simbólico de sua gravidade do que em práticas efetivas para o seu enfrentamento e prevenção.” Lima, Renato Sérgio de; Sinhoretto, Jacqueline; Bueno, Samira. A gestão da vida e da segurança pública no Brasil. Sociedade e Estado, v. 30, n. 1, p. 123-144, 2015.
(12) Como afirma Langer: “the structural differences between the American adversarial conception of criminal procedure and the continental European and Latin American inquisitorial conception of criminal procedure are so deep that individual reforms inspired by American models are unlikely to push these inquisitorial criminal procedures in the direction of the American adversarial system”. Langer, Máximo. From legal transplants to legal translations: The globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure. Harv. Int’l LJ, v. 45, p. 1, 2004.
Fauzi Hassan Choukr
Pós-doutor pela Universidade de Coimbra.
Doutor e mestre em Processo Penal pela USP.
Promotor de Justiça no Estado de São Paulo.
fhchoukr@gmail.com
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