INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 318 - Esp. Pac. Anticrime





 

Coordenador chefe:

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Conselho Editorial

Proteção à vida: a (in)convencionalidade das alterações envolvendo a legítima defesa no pacote anticrime

Autor: André de Carvalho Ramos

O projeto de lei 882/19 do chamado “pacote anticrime” do Ministério da Justiça e Segurança Pública traz inovações referentes a excludentes de ilicitude com grande impacto na proteção ao direito à vida. Em primeiro lugar, introduziu-se o novo § 2º do art. 23, facultando ao juiz reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso culposo ou doloso na conduta do agente (agindo sob o abrigo de excludente de ilicitude - estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito) decorrer de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Assim, a depender da avaliação de tais circunstâncias, o acusado pode até ficar isento de pena. Por outro lado, o projeto introduz novo parágrafo único no art. 25 do Código Penal (sobre a legítima defesa), que considera em legítima defesa (i) o agente de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; e (ii) o agente de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes.

Tais inovações afetam em especial a proteção jurídica do direito à vida, que possui traços distintivos da dos demais direitos. Em primeiro lugar, é pressuposto dos demais direitos; em segundo lugar, a violação do direito à vida é irreversível e irreparável. Em virtude de tal importância, há intensa vigilância realizada pelos órgãos internacionais de direitos humanos sobre a atuação do Estado, o que impõe o estudo da convencionalidade dessas alterações propostas diante da interpretação internacionalista dos direitos humanos (controle de convencionalidade de matriz internacional).(1)

A análise da convencionalidade dessas inovações abrange dois ângulos: o primeiro diz respeito ao dever internacional de proteção ao direito à vida; o segundo refere-se ao combate internacional à impunidade dos violadores de direitos humanos, em especial os indivíduos que violam o direito à vida.

No tocante ao primeiro ângulo, destaco, inicialmente, que os tratados definem uma obrigação de respeito aos direitos humanos, impondo aos estados e seus agentes que não violem os direitos protegidos. Como já declarou a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), o exercício da função pública tem limites que derivam dos direitos humanos, atributos inerentes à dignidade humana e, em consequência, superiores ao poder do Estado. Ainda segundo a Corte, trata-se de dever de caráter eminentemente negativo, um dever de abster-se de condutas que importem em violações de direitos humanos.(2) Assim, determinado Estado viola tal dever quando seus agentes usam de modo arbitrário ou excessivo a força, privando indivíduos do direito à vida. Mesmo em situações de grave comprometimento da ordem pública, cabe ao Estado possuir forças policiais treinadas e que não abusem de seu poder.

Os excessos dos agentes públicos no uso da força merecem intensa reprovação dos tribunais internacionais de direitos humanos, como se vê na farta jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. No sistema interamericano, cite-se o Caso da Penitenciária de El Frontón, no qual a Marinha peruana literalmente demoliu o presídio em questão para debelar uma rebelião dos presos. A Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Peru pelo uso excessivo da força na repressão à rebelião, repudiando o exercício do poder estatal sem nenhum limite, ou que o Estado possa valer-se de quaisquer meios para alcançar seus fins, depreciando a vida e a dignidade humana. Mesmo a alta periculosidade dos detentos não justifica de modo algum o uso desproporcional da força, como aconteceu ao se demolir o presídio, usando explosivos e matando dezenas de presos amotinados.(3)

Mesmo no que tange à repressão ao crime organizado e até mesmo ao terrorismo, não pode o Estado adotar uma política de “vale tudo” ou de aceitar que os “fins justificam os meios”. No caso McCann e outros contra o Reino Unido, a Corte Europeia de Direitos Humanos (Corte EDH) analisou a morte de três membros do grupo irlandês IRA (Irish Republican Army) ocasionadas por forças especiais britânicas em Gibraltar. No caso, a Corte considerou que o Reino Unido violou o direito à vida das vítimas em virtude da deficiente e negligente organização, planejamento e controle da operação policial. A Corte condenou o Reino Unido, afirmando que a proteção à vida abrange não só os atos arbitrários intencionais de privação da vida, mas também os atos ou omissões culposas, não intencionais, fundadas na negligência, imprudência ou imperícia.(4) Outro precedente importante do plano internacional sobre o dever dos agentes públicos de não violar a vida de modo arbitrário é o Caso Ergi v. Turquia,(5), no qual a Corte Europeia de Direitos Humanos condenou o Estado turco pela morte de civil curdo em operação militar do Exército contra o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, que luta pela independência desta região. Para a Corte, o Estado não respeitou seu dever de não pôr em risco a população civil, que ficou no fogo cruzado entre os combatentes.

As inovações trazidas pelo pacote anticrime merecem reflexão à luz do dever do Estado de proteger a vida, não privando dela ninguém de modo arbitrário ou com uso excessivo da força, bem como não desmantelando institutos que servem para impedir violações. A alteração do art. 23 do Código Penal fragiliza esse dever ao permitir que o acusado fique até mesmo isento de pena caso o excesso punível (culposo ou doloso) no agir sob excludentes de ilicitude tenha ocorrido em face de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção.” Essas minorantes genéricas não se aplicariam, em geral, aos agentes públicos, em face do dever do Estado em treinar seus servidores para justamente agir controladamente (sem excessos) no uso da força letal.

Mesmo se a inovação for destinada somente para regular a conduta de particulares, chama a atenção seu impacto na diminuição da proteção à vida, por meio de normas abertas como as mencionadas. A alternativa hoje existente – de avaliação nas circunstâncias do caso de eventual excesso culposo ou doloso – serve de alerta (com efeito dissuasório) para aqueles que utilizam a força letal de modo desproporcional ou excessivo e acabam violando, sem necessidade, o direito à vida de outrem. Com essas minorantes, há o risco do incentivo a tais posturas e diminuição do efeito preventivo gerado pela existência da punição do excesso nas excludentes de ilicitude. Há inegável retrocesso na proteção de direitos, o que é proibido pelo regime jurídico dos direitos humanos no plano internacional.(6)

No tocante ao novo parágrafo único no art. 25 do Código Penal (sobre a legítima defesa), há a introdução de um conceito oriundo do direito internacional humanitário, que vem a ser “conflito armado”; e seu objetivo é assegurar o uso da excludente de ilicitude para o “agente de segurança pública”. O texto do novo dispositivo assegura a invocação da legítima defesa pelo agente de segurança pública em caso de repressão ou prevenção a agressão a direito (do agente ou de outrem). Nesse ponto, o uso de termo “conflito armado” é inapropriado, pois remete às convenções de Direito internacional humanitário. Mesmo considerando que se trataria de “conflito armado não internacional”, o Direito internacional humanitário exige organização armada em confronto prolongado com o Estado, o que não se assemelha à atuação do crime – mesmo organizado – no Brasil.(7)

A adoção também do conceito de “prevenção” à agressão fragiliza a proteção estatal ao direito à vida, pois atualmente a legítima defesa exige que a agressão seja atual ou iminente.  No mesmo sentido, está a hipótese de prevenção de agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes. O foco no “agente de segurança pública” é supérfluo, pois a cláusula de legítima defesa pode ser invocada por particulares. No que tange à vítima mantida refém, a alteração também é inócua, pois já há uma ameaça a direito em curso. Cabe lembrar que o próprio art. 25 exige que sejam observados os requisitos previstos em seu caput.

Em um segundo ângulo de análise da convencionalidade das alterações propostas, cabe avaliar se há o aumento da impunidade daqueles que violam o direito à vida, o que seria especialmente grave no cenário de mortes violentas no confronto com a polícia no Brasil. Além da obrigação de respeito, as normas internacionais de direitos humanos estabelecem uma obrigação de garantia, que consiste na organização, pelo Estado, de estruturas e procedimentos capazes de prevenir, investigar e mesmo punir toda violação, pública ou privada, do direito à vida, mostrando a faceta (ou dimensão) objetiva deste mesmo direito. Para a Corte IDH tal obrigação manifesta-se de forma preponderantemente positiva, tendo por conteúdo o dever dos Estados de organizarem o “aparato governamental e, em geral, todas as estruturas através das quais se manifesta o exercício do poder público, de maneira tal que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos humanos”.(8) Logo, há o dever dos Estados em criar estruturas que previnam a ocorrência de violações arbitrárias ou ilegítimas ao direito à vida, ou seja, os Estados comprometeram-se a estabelecer um amplo arcabouço institucional no qual o direito à vida possa ser exercido com dignidade.(9) Com isso, é parte da proteção internacional do direito à vida a fixação da obrigação do Estado em zelar pela sua observância. Nesse âmbito de proteção, insere-se o combate aos esquadrões da morte e as execuções extrajudiciais por parte de agentes públicos ou privados, a proteção da vida de grupos vulneráveis, como se vê na discussão da violência de gênero, contra crianças ou por discriminação odiosa. Essa obrigação encontra forte desenvolvimento na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), como se vê nos Casos Velásquez Rodriguez, Godinez Cruz, entre outros.

Desde cedo o Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao buscar promover os direitos de todos os indivíduos, fez menção à necessidade de prevenir as violações de direitos humanos e, no caso de ocorrência destas, de reparar os danos causados às vítimas. Com efeito, a Declaração Universal de Direitos Humanos, peça-chave no Direito Internacional, estabeleceu, em seu artigo VIII, que toda pessoa vítima de violação a sua esfera juridicamente protegida tem direito a um recurso efetivo perante os tribunais nacionais, para a obtenção de reparação. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos da ONU estabelece o mesmo direito, em seu art. 2º, § 3º, o que também ocorre na Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial (art. 6º). Na Convenção internacional contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, todo Estado deve assegurar às vítimas reparação de todo dano sofrido (art. 14, § 1º). A Declaração e Programa de Ação da Conferência Mundial de Viena (1993) implantou, em definitivo, o dever dos Estados de punir criminalmente os autores de graves violações de direitos humanos para que seja consolidado o Estado de Direito, tendo sido estabelecido que os “Estados devem ab-rogar leis conducentes à impunidade de pessoas responsáveis por graves violações de direitos humanos, como a tortura, e punir criminalmente essas violações, proporcionando, assim, uma base sólida para o Estado de Direito.”

Por sua vez, espera-se que efetivamente o Estado cumpra seu dever internacional e não apenas emita uma declaração vazia de que “iniciará as investigações”. Deve-se evitar, então, que o ônus da prova do envolvimento de agentes públicos seja da vítima, pois o Estado tem que possuir agentes independentes capazes de auxiliar a busca da verdade. Pelo contrário, deve ser estabelecido, sob pena da responsabilização internacional do Estado, um sistema interno eficiente de investigação, punição e indenização às vítimas.

Em face da impossibilidade de se prevenir, com êxito, agressão injusta ao direito à vida, cabe ao Estado criar mecanismos de investigação, persecução e punição aos violadores. Essa obrigação de investigar, processar e punir os perpetradores de violações do direito à vida tem sido reiteradamente fixada pelos tribunais internacionais de direitos humanos, sendo essencial para prevenir novas violações, pois serve como fator de desestímulo ao evitar a impunidade.

Assim, a facilitação do uso de excludentes de ilicitude em casos de violação do direito à vida colide, nos dois ângulos acima estudados, com a proteção internacional do direito à vida.

Os precedentes internacionais vistos acima permitem a fixação de parâmetros que podem ser utilizados na análise da convencionalidade de qualquer reforma pretendida do Código Penal no que tange às excludentes de ilicitude e, em especial, à legítima defesa. O direito à vida é peça fundamental no arcabouço normativo de um Estado; disso decorre a necessidade de uma interpretação que lhe dê a (i) máxima efetividade e ainda (ii) restrinja as possibilidades de sua legítima vulneração, o que não ocorre na presente reforma. Além disso, o recurso à força e o sacrifício da vida humana tem que ser (iii) absolutamente necessário e (iv) ser estritamente proporcional ao bem jurídico que se procura tutelar (por exemplo, a vida de outros). A privação da vida feita por agentes públicos deve ser precedida por (v) análise rigorosa, tomando em consideração todas as circunstâncias do caso concreto, em especial a (vi) existência de outras alternativas menos gravosas.

Notas

(1)  Sobre o controle de convencionalidade de matriz internacional, ver Carvalho Ramos, André de. Curso de direitos humanos. 6. ed., São Paulo: Saraiva. p. 532 e seguintes.

(2)  Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velasquez Rodriguez, sentença de 29 de julho de 1988, Série C n.o 4, parágrafo 165.

(3)  Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Neira Alegria - Mérito, Sentença de 19 de janeiro de 1995, Serie C nº 20.

(4)  Corte Europeia de Direitos Humanos, Caso McCann and Others v. Reino Unido, julgamento em 5 de setembro de 1995.

(5)  Corte Europeia de Direitos Humanos, Caso Ergi v. Turquia, julgamento em 28 de julho de 1998.

(6)  Sobre a proibição do retrocesso, ver Carvalho Ramos, André de. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 6. ed., São Paulo: Saraiva, 2016. p. 290 e seguintes.

(7)  Ver a decisão do Tribunal Internacional Penal para a ex-Iugoslávia no Caso Tadić. Tribunal Internacional Penal para a ex-Iugoslávia, Caso Dusko Tadić, Appeals Chamber, Decision on the Defence Motion for Interlocutory Appeal on Jurisdiction, IT-94-1-AR72, julgamento de 02 de outubro de 1995, em especial parágrafo 70.

(8)  Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodríguez, sentença de 29 de julho de 1988, Série C n. 4, parágrafo 166. A respeito do caso, ver in Carvalho Ramos, André de. Direitos humanos em juízo – comentários aos casos contenciosos e consultivos da Corte Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 2001.

(9)  Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Velásquez Rodríguez -Mérito, sentença de 29 de julho de 1988, Série C n. 4, parágrafos 149-150, 153, 155-158.

André de Carvalho Ramos
Professor de Direito Internacional e Direitos Humanos da USP.
Doutor e Livre-Docente em Direito Internacional pela USP.
Procurador Regional da República.
carvalhoramos@usp.br



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