INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 313 - Dezembro/2018





 

Coordenador chefe:

Fernando Gardinali Caetano Dias

Coordenadores adjuntos:

Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi

Conselho Editorial

A criminalização da pobreza

Autor: Kai Ambos

Tradução
Inês Freixo e a Pablo Alflen

Com a sua maioria de dois terços, o governo do primeiro-ministro Viktor Orbán, do partidohúngaro Fidesz, impôs uma emenda constitucional que relembra a legislação nacional-socialista contra os considerados “estranhos à comunidade” (Gemeinschaftsfremde) e “associais”. Nesse sentido, o novo parágrafo terceiro do artigo 22 da Constituição passou a declarar a proibição da residência “habitual” em lugares públicos. Ainda que, paralelamente, se exija do Estado húngaro um esforço no sentido de prover habitação para todos os cidadãos, com especial atenção às pessoas desabrigadas. No que concerne ao direito de habitação de todos os cidadãos, a nova norma constitucional foi submetida a uma espécie de reserva da ordem pública. Contudo, como pode um Estado proibir que se viva em lugares públicos quando não garante o direito à habitação? Segundo organizações não governamentais, a Hungria tem cerca de 11.200 alojamentos temporários para 30 mil desabrigados.

Os nacional-socialistas lutaram da mesma forma contra os “estranhos à comunidade” e os “associais”

Com essa nova legislação, comete um ilícito à ordenação quem se encontrar “habitualmente” em lugares públicos. Quando tal se verifique, pode haver lugar a diferentes sanções, podendo estas passar pela simples admoestação, a realização de trabalho comunitário, ou até mesmo prisão, ainda que em regime de separação dos demais reclusos. Além disso, os bens da pessoa em causa podem ser confiscados e destruídos. Na prática, essas pessoas receberão inicialmente advertências por parte da polícia: no máximo três vezes no espaço de 90 dias. Se, não obstante, permanecerem no espaço público, serão julgadas em processo sumário. De qualquer forma, o simples fato de se dar ao juiz a possibilidade de impor uma sanção de prisão contradiz o caráter da proibição como ilícito à ordenação e conduz a uma verdadeira criminalização encoberta dos desabrigados.

A “Ação de junho” de 1938 na Alemanha

Essa legislação recorda a clássica discriminação de pessoas socialmente marginalizadas por parte de um Estado autoritário. Na Alemanha, o Código Penal do Império de 1871 previa a punibilidade da vadiagem e da mendicidade. Baseando-se nessa lei, os nacional-socialistas ordenaram –na sua infame “Lei contra os perigosos delinquentes habituais e sobre medidas de segurança e de melhoramento”, de 24 de novembro de 1933 – que os vadios e mendigos condenados fossem internados numa, à época, denominada, “casa de trabalho”. Ademais, a imposição da “detenção preventiva contra o comportamento associal” passou a ser prevista num “decreto básico sobre a prevenção da delinquência” proferido em finais de 1937. Um “associal” seria todo aquele que, “sem ser um delinquente profissional ou habitual, colocasse em perigo a comunidade em geral através do seu comportamento antissocial”. Isso valia igualmente para os desabrigados. A chamada “ação de junho” de 1938, por meio da qual foram detidos cerca de 10 mil homens, muitos deles supostamente “associais”, teve o mencionado decreto como fundamento legal. No final de 1944, o Projeto de Lei sobre o tratamento dos alheios à comunidade determinava que as pessoas que não conseguissem demonstrar que mantinham uma vida digna seriam determinadas como “estranhas à comunidade” e, consequentemente, poderiam ser utilizadas para a realização de trabalhos forçados. O objetivo, segundo a exposição de motivos, era “o melhoramento e a conversão interior depois da mais estrita educação laboral”. A lei, todavia, acabou por nunca ser adotada devido à capitulação da Alemanha.

Perante esse cenário, é justo afirmar que o Governo de Orbán – consciente ou inconscientemente – tomou como inspiração conceitos da legislação nacional-socialista. Essa discussão é também de suma importância para a Alemanha, uma vez que assim se demonstra o que poderia suceder caso o partido populista de direita AfD (Alternative für Deutschland/ Alternativa para Alemanha) chegasse ao governo – tendo em conta que esse partido já se posicionou no passado ao lado do governo húngaro . É igualmente relevante conhecer qual a sua postura em relação a esta nova legislação húngara contra as pessoas desabrigadas.

Limpar o “corpo do povo alemão” de estudantes de esquerda

A nova direita europeia mostra aqui a sua verdadeira e desumana face: não se trata apenas da preservação da “homogeneidade etnocultural”, como exige o “Movimento Identitário”, senão também da exclusão social dos grupos marginalizados. E isso é apenas meia verdade, pois a homogeneidade social , étnica e cultural não existe hoje na Alemanha; e, para recuperá-la, teria primeiro de se produzir uma “autopurificação do corpo do povo alemão” como apresentado pelo infame jurista nazi Roland Freisler.

Uma linguagem que, por certo, se ouve novamente nos parlamentos alemães. Em fevereiro de 2017, o então líder do grupo parlamentar da AfD no Parlamento Estatal da Alta Saxônia, André Poggenburg, exigiu que os “tumores no corpo alemão” fossem finalmente removidos, referindo-se aos estudantes de esquerda, supostamente preguiçosos.

Kai Ambos
Professor Catedrádico e Diretor Geral do Centro de Estudos em Direito Penal e Processo Criminal Latino-Americano (CEDPAL) na Georg-August-Universität Göttingen.
Magistrado do Tribunal Especial para o Kosovo, Haia e Amicus Curiae da Jurisdição Especial para a Paz, Bogotá, Colômbia.



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