Fernando Gardinali Caetano Dias
Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi
Autor: Cristiano Avila Maronna
“as revoluções ocorrem quando as molas humanas da sociedade são esticadas além do que podem suportar” (Graco Babeuf)
A recente divulgação de áudios de julgamentos secretos realizados pelo Superior Tribunal Militar (STM) no auge dos anos de chumbo(1) revelou que houve, durante a ditadura militar no Brasil, uma opção deliberada por jogar às favas a Constituição em nome dos interesses da “revolução” [rectius, golpe].
Em 1976, o STM julgava o caso envolvendo a acusação formulada contra o então deputado federal Marcio Moreira Alves, que, em discurso no Congresso oito anos antes, convocara um boicote às paradas militares alusivas à Semana da Pátria e solicitara às jovens brasileiras que não namorassem oficiais do Exército (tal qual as mulheres de Atenas da canção de Augusto Boal e Chico Buarque de Holanda). A provocação despertou a ira dos militares, que revidaram com o Ato Institucional nº 5, o chamado golpe dentro do golpe. No áudio, verifica-se que a corte marcial reconheceu que a imunidade parlamentar impedia qualquer punição. Nada obstante, decretou sua condenação na sequência.
Nas palavras do Ministro Rodrigo Octávio: “Vou tomar uma decisão revolucionária, deixando de lado a lei. Pela lei, não se pode condená-lo, de maneira nenhuma, porque ele é inviolável. Não estamos julgando como um verdadeiro Tribunal de Justiça. Estamos julgando como um tribunal de segurança”.
Em 2016, utilizando-se de argumentação muito semelhante, assim decidiu a Justiça Federal brasileira: “Ora, é sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da chamada ‘Operação Lava-Jato’, sob direção do magistrado representado, constituem caso inédito (único, excepcional) no direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns”.(2)
Quando a regra é afastada em nome de um casuísmo que se busca revestir de extraordinário, o Estado de direito é colocado em uma espécie de coma induzido. O respeito à regra é o que diferencia democracias de estados de exceção.
A ausência de um acerto de contas com o passado ditatorial explica a nossa atual miséria política, jurídica e social. Explica também as chamadas permanências autoritárias no exercício da jurisdição, de que é exemplo a trágica decisão tomada por apertada maioria pelo Supremo Tribunal Federal, que autorizou a execução provisória da sanção penal, esfacelando a presunção de inocência.(3)
O panorama é desolador: um cenário de encarceramento em massa, um aparato estatal que parece ter licença para violentar, torturar e eliminar, literalmente, indivíduos e grupos sociais formados por pessoas pretas, pobres e periféricas, massivamente associadas oficialmente à conduta de tráfico de drogas.
Há mais de 10 anos, a Lei 11.343/2006 aumentou a pena do crime de tráfico e expressou claramente a perspectiva de deixar de prender usuários de drogas. No entanto, o que se verificou é que o mesmo grupo social continuou sendo preso, mas em outros termos. Em vez de prisões feitas na qualidade de usuários, passou-se a atribuir penas longas e em condições mais rígidas, na qualidade de traficantes. Embora seja possível identificar no Congresso Nacional a perspectiva de não aprisionamento de usuários de drogas, como mostram os resultados de pesquisa publicada pela Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD) em março de 2016,(4) os números de prisão por tráfico seguem crescendo.
As 60 mil mortes violentas anuais, muitas delas perpetradas por agentes do estado, contam com índices de investigação e esclarecimento pífios. Inegavelmente são o subproduto do disfuncional exercício da jurisdição no Brasil.
Caminha-se para um estado de coisas, mais que inconstitucional,(5) insuportável. Diante do insuportável, é preciso romper, revolucionar.
E qualquer alteração nesse estado de coisas, seja para combater o superencareramento, seja para frear a violência e a letalidade policiais, pressupõe a retomada de um projeto efetivamente democrático, que implica a democratização do sistema de justiça.
Esse é um debate inadiável, no qual se precisa avançar. Não à toa, tem repercutido em ondas uma pesquisa inédita sobre como a cooptação das instituições jurídicas pelos interesses dos Poderes Executivo e Legislativo impede a dissolução de uma chamada “espiral elitista”.(6)
A tese, desenvolvida por Luciana Zaffalon no início de 2017 pela Fundação Getúlio Vargas, traz um retrato atualizado dos desafios a serem abordados no sistema de justiça, chamando a atenção para o fosso ainda existente no que se refere à garantia de transparência e compreensão das motivações reais que movem as instâncias decisórias nas instituições públicas.
Por uma feliz coincidência, Zaffalon é integrante da equipe do IBCCRIM desde 2015. É preciso notar e celebrar a capacidade do Instituto de identificar e aproveitar convergências como essa, como a de contar com a autora de uma pesquisa dessa envergadura em sua equipe.
No mesmo sentido, está a interação cada vez mais intensa com uma rede nacional como a PBPD, que reúne organizações e pessoas interessadas e envolvidas das mais diversas formas nas implicações das formulações de políticas públicas sobre substâncias psicoativas.
25 anos após sua fundação, o IBCCRIM está, neste momento, construindo essa história, explorando de forma inédita a capacidade de conversar com especialistas de diversas áreas do Direito, assim como da Medicina, da Psicologia, da Assistência Social, da Antropologia e da Comunicação Social, entre outros.
Para além do diálogo com especialistas, a atuação da Plataforma conta com a participação efetiva de pessoas que vivenciam a realidade e os impactos das abordagens punitivistas sobre o assunto, como famílias que dependem de medicação para tratar transtornos pouco conhecidos ou grupos de apoio que interagem com a escalada da repressão ao uso de crack em zonas de altíssima vulnerabilidade social, em diferentes metrópoles do país.
É preciso assumir posições, agrupar-se com interlocutores que tenham não apenas qualificação, mas também legitimidade, produzir e revelar dados e informações de interesse público e, com isso, enfrentar os desafios que a atualidade e o futuro trazem para as Ciências Criminais .
Em tempos de exceção, neutralidade e parcimônia podem configurar grave omissão, equivalente a sacrificar o compromisso com a retomada de um projeto de democracia voltado para os interesses da coletividade e não das elites historicamente consolidadas.
Notas
(1) Reportagem da revista Época de 21/7/17:
(2) TRF 4, P.A. Corte Especial nº 0003021-32.2016.4.04.8000/RS. Relator: desembargador federal Rômulo Pizzolatti.
(3) ARE 964246 - Recurso Extraordinário Com Agravo do Supremo Tribunal Federal. Andamento disponível em:
(4) Com a participação de 200 deputados e 34 senadores, o levantamento apontou que 68% dos deputados se posicionaram contra a criminalização, patamar que se elevou a 79% entre os senadores. Pesquisa disponível em:
(5) “Estado de coisas inconstitucional” é uma expressão usada na petição inicial da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, no Supremo Tribunal Federal.
(6) Cardoso, Luciana Z. L. ‘Uma espiral elitista de afirmação corporativa: blindagens e criminalizações a partir do imbricamento das disputas do sistema de justiça paulista com as disputas da política convencional”. Disponível em:
Cristiano Avila Maronna
Presidente do IBCCRIM na gestão 2017-2018.
Doutor e mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo.
Secretário-executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas.
Advogado.
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