INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 298 - Setembro/2017





 

Coordenador chefe:

Fernando Gardinali Caetano Dias

Coordenadores adjuntos:

Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi

Conselho Editorial

Racismo: mais uma importante luta do IBCCRIM

Autor: Andre Pires de Andrade Kehdi

Racismo. Foi essa maldita palavra que veio à minha cabeça quando recebi o convite para escrever um artigo para o Boletim comemorativo dos 25 anos do IBCCRIM.

Tendo sido presidente do IBCCRIM durante um dos períodos mais sombrios da nossa história democrática (2015-2016), não foram poucos os retrocessos penais, processuais penais e de direitos humanos que tivemos de enfrentar. Como a sugestão era de que cada gestão falasse sobre um dos temas que mais lhe foi caro, eu bem poderia trabalhar o enterro do Processo Penal patrocinado pela Lava Jato,(1) a postura amesquinhadora de garantias individuais assumida por nossos Tribunais Superiores(2) ou a absurda tentativa do nosso Congresso Nacional de reduzir a maioridade penal,(3) entre tantas outras coisas. Mas o racismo não saiu da minha cabeça.

Até hoje aquele alerta feito por Carl Hart na manhã do dia 28 de agosto de 2015, durante o nosso 21º Seminário Internacional, me chacoalha, me incomoda: “Olhem para o lado, vejam quantos negros estão aqui. Vocês deviam ter vergonha”.

Morri de vergonha. Estava na primeira fila, era presidente do Instituto, tinha responsabilidade por aquilo e estava triste por saber que os outros 20 Seminários que antecederam aquele provavelmente não tinham sido diferentes (confesso não ter prestado atenção a isso em cada um dos eventos em que estive presente; mas, se tivessem sido diferentes, eu provavelmente lembraria). Em poucos segundos, ainda ali sentado, estourou como fogo de artifício na minha cabeça uma série de lembranças: no colégio, quantos colegas negros eu tive? Quantos professores? Na faculdade, quantos? Quantos defensores públicos, advogados, ministros, juízes, promotores, procuradores... negros atuaram em causas relevantes nas quais eu advoguei? Em oposição, nas inúmeras vezes em que entrei nos presídios, quanta gente negra eu vi? E quanta gente negra eu vejo nos restaurantes em que vou? No meu clube? Na escola do meu filho? No aeroporto? Na fila do passaporte?

Esses pensamentos que me invadiram pareciam autônomos em relação a tudo o que eu já tinha lido sobre o racismo; independiam das estatísticas horríveis que eu já conhecia. Vieram como alertas, como um choque, como um recado: atenção, há lugares em que eles não entram, e você não faz nada para tentar mudar isso.

Não basta denunciarmos o racismo. É preciso que cada um de nós, enquanto indivíduos, e cada uma das instituições, enquanto espaços em que há relações interpessoais, nos desconstruamos e nos reergamos à luz da diversidade, com foco na necessidade de termos espaços iguais para todas as pessoas, sem exceção. A diretoria e o conselho conversaram. Ao olharmos nossa composição, naquele momento e historicamente, notamos que nunca tivemos um diretor negro; que a presença de negros como palestrantes e professores em nossos seminários e cursos era ínfima, como também era pequena a presença de negros como alunos, como coordenadores, como funcionários de nossos quadros ou como autores nas nossas renomadas publicações. O negro, enfim, praticamente não estava lá. A prova disso, me disse uma vez uma associada negra, é que todos sabiam o nome dela, pois ela era muito diferente dos demais.

No mês seguinte, depois de todos concordarem que a situação exigia atitudes concretas, publicamos no Boletim n. 275 um editorial histórico (“Vergonha”),(4) no qual nos comprometemos com um processo de revisão de nosso funcionamento institucional, com a adoção de ações afirmativas de promoção da igualdade racial na composição de nosso quadro organizacional, na participação de nossos eventos e na nossa produção intelectual.

O IBCCRIM, na sua grande capacidade de se reinventar, de se autocriticar, de reconhecer seus erros e acertos, essa instituição que tem a obrigação estatutária de defender a efetiva concretização do Estado Democrático e Social de Direito, com ênfase à defesa dos direitos das minorias e dos excluídos sociais, assumiu expressamente o tão importante quanto difícil caminho do combate ao racismo.

Pouco após o editorial, as ações efetivamente tiveram início. Para o cargo de Supervisão da Seção de Educação – que tem por responsabilidade, entre outras importantes atividades, a gestão do Seminário Internacional e dos cursos em convênio com a Universidade de Coimbra –, foi contratada, após rigoroso processo seletivo, uma jovem advogada, militante e pesquisadora negra, Allyne Andrade. Foi um passo importante, não só pelo significado – a ocupação do mais importante cargo funcional por alguém negro –, como pelo resultado: a sua presença, aliada à aproximação de outros operadores do direito negros, e militantes contra o racismo, facilitou o tortuoso trabalho de tratar das ciências criminais e pensar as atividades do IBCCRIM sempre com um olhar que não deixasse escapar a questão racial.

Foi assim que o processo de concessão de bolsas de estudo, que já vinha em andamento, incorporou a questão das cotas raciais. A partir de então, 20% das cotas concedidas em cada um dos inúmeros cursos oferecidos pelo Instituto estava reservado para negros e indígenas. Mesmo num ano de forte crise financeira como foi 2016 para todo o país, o IBCCRIM mostrou com sobras de razão que o argumento financeiro é e sempre foi algo que camuflou e camufla o debate sobre o acesso de minorias ao conhecimento; a solução do problema – que, infelizmente, ainda está muito longe – depende, isso sim, de vontade política.

Era preciso ir além. Todo um esforço em torno do 22º Seminário Internacional, realizado em agosto de 2016, foi feito. A Comissão Organizadora tomou o cuidado de convidar intelectuais negros para enriquecerem a sua composição, e eles felizmente aceitaram. A atenção com a representatividade negra, a partir daí, foi minuciosa: desde a equipe de recepção, até a grade de palestrantes e número de inscritos para o mais importante evento do Instituto tiveram mudança substancial.

A tradicional sessão de abertura, tantas vezes ocupada por homens brancos do quilate de Eduardo Galeano, Rubem Alves e Mia Couto, teve, dessa vez, sua primeira escritora negra, a brilhante Moçambicana Paulina Chiziane.

Do mesmo lugar em que no ano anterior Hart pôde fazer o importante alerta acima mencionado , Chiziane viu uma plateia muito mais diversa, graças à abertura de portas possibilitada pela nova política de bolsas: quase 60 estudantes e pesquisadores negros tiveram acesso, dessa maneira, ao mais importante evento de ciências criminais da América Latina.

Além de Paulina, outros nove palestrantes negros nos brindaram com o seu conhecimento ao longo dos 4 dias do evento. Num país em que aproximadamente 51% da população é negra, pode parecer pouco. Mas o avanço de termos mais de 15% dos debatedores dessa raça é um primeiro passo a ser muito comemorado.

O simbolismo da abertura se repetiu no encerramento, com as fortes palavras da ex-Ministra e professora Nilma Lino Gomes, primeira mulher negra a comandar uma Universidade Federal no país (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – Unilab).

Os números ainda são tímidos, mas o caminho precisa ser sem volta.

Num dos países mais racistas do mundo, mesmo com as ações afirmativas ainda é ínfima a participação de negros nas universidades.(5)

Por consequência, naturalmente ainda formamos proporcionalmente muito menos negros como pesquisadores e profissionais que se interessem pelas áreas de conhecimento objeto da atuação do IBCCRIM. Isso não significa que , dadas as nossas dimensões continentais, e os mais de 200 milhões de habitantes, não existam milhares de mentes ávidas por conhecimento e por produção crítica, mentes que, uma vez instigadas e mergulhadas em condições de pleno desenvolvimento de suas capacidades, poderão atuar para que o Instituto implemente suas finalidades estatutárias e, assim, torne o Brasil um lugar melhor, um lugar em que o direito penal não se concretize como a máquina de moer pessoas (preferencialmente pobres e negras) que nos habituamos a ver em funcionamento.

Temos uma história a honrar, uma história de muita luta e de completa aversão à realidade do nosso sistema penal. Uma história linda, construída por cada um de nossos fundadores, idealistas que perseguiram e perseguem ao nosso lado, ao lado de todos os nossos associados, todos os nossos patrocinadores e financiadores, até hoje, uma utopia possível. Nesse contexto, é nosso dever histórico e institucional agirmos contra o racismo.

Se realmente defendemos o ideal democrático (artigo 2º, II, do Estatuto do IBCCRIM), é preciso que o IBCCRIM continue firme no seu propósito de abrir as portas e convidar a dele participar aqueles que sempre foram impedidos, por condições estruturais, de fazê-lo. Ficarmos estáticos não mudará esse estado de coisas, temos que agir. É preciso que sejam implementadas medidas para atrair estudantes, pesquisadores e profissionais negros de todos os pontos do país; é preciso estudar meios de aumentar a cada dia a sua participação nos nossos debates e na nossa produção científica. É preciso, por fim, estarmos atentos a cada passo que dermos, a cada mesa que compusermos, a cada Seminário e curso que organizarmos, a cada publicação que editarmos: o trabalho é e será diário, de permanente controle e esforço para que o espaço esteja ali, e seja devida e qualificadamente ocupado.

Como disse Silvio Luiz de Almeida na palestra que proferiu no 22º Seminário Internacional do IBCCRIM, “fazer ciência é o confronto com a realidade. E não há confronto com a realidade se nós não estamos com a disposição de encarar os grandes problemas do nosso tempo”.

É lindo, realmente maravilhoso, ver esse jovem de 25 anos que é o IBCCRIM encarar de frente, sem qualquer medo, esse monstro que aterroriza nossa sociedade desde a chegada dos colonizadores Europeus, e que está na medula da nossa formação como indivíduos e como país .

Para uma instituição assim, é preciso encher o peito para dar parabéns.

Notas

(1)  No dia a dia dos nossos miseráveis, clientela preferencial do sistema penal, a prisão preventiva obrigatória, em razão da gravidade do crime imputado, já “é regra ” há muito tempo (talvez a Lei Fleury nunca tenha vigido para eles; é de se crer, tampouco a alteração promovida pela Lei 12.403/2011). Mas a Lava Jato, além de democratizar esse aspecto da barbárie – a prisão preventiva obrigatória passou a viger também para os do andar de cima –, a expandiu. Ao lado dela, com violação explícita de regras de competência para manutenção dos feitos no Juízo Universal de Curitiba, vazamentos sistemáticos de informações sigilosas à imprensa para comprometer a imagem das pessoas investigadas, acompanhados do “bloqueio” cautelar de todos os seus bens serviram para desestabilizar os imputados e fazê-los aderir a colaborações premiadas. Não foram poucos os estudos sobre o tema, mas provavelmente o mais importante foi publicado pelo IBCCRIM (Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 122, v. 24, 2016, Editora Revista dos Tribunais).

(2)  Um exemplo? Em 17 de fevereiro de 2016 o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Habeas Corpus 126.292, riscou o inciso LVII, do art. 5º da Constituição Federal. Decidiu, contra seu texto literal e inquestionável, que sentenças penais condenatórias podem ser executadas neste país após a decisão em segundo grau, mesmo sem trânsito em julgado e sem qualquer cautelaridade para tanto. Ignorou que, em matéria de direitos humanos, não poderia haver retrocesso como tal; aviltou o texto que deveria defender e fingiu não ler texto expresso também no art. 283 do Código de Processo Penal (fruto de alteração legislativa de 2011); atuou como Constituinte Derivado, porque havia Propostas de Emenda à Constituição em discussão no Congresso Nacional, para alterar esse tópico de nosso Texto Maior, que se tornaram prejudicadas depois de sua atuação... O IBCCRIM tratou desse triste tema, entre outras oportunidades, no editorial do Boletim 281 (O Pêndulo do Supremo).

(3)  Dentre várias propostas legislativas feitas com o objetivo de jogar os jovens brasileiros (preferencialmente, como sempre, pobres e negros) nas nossas masmorras medievais, destacam-se PEC 171/93, aprovada na Câmara depois de um golpe dado pelo Deputado Federal Eduardo Cunha, então seu presidente, e a PEC 33/2012, de autoria do Senador Aloysio Nunes, em trâmite no Senado Federal. Dentre as várias atividades contra essa vergonhosa tentativa de tornar o nosso país ainda pior, o IBCCRIM organizou, ao lado de diversas entidades parceiras, grande Ato Contra a Redução da Maioridade Penal, realizado em 28 de abril de 2015 (), articulou diversas notas de contrariedade à proposição, encaminhadas a nossos legisladores, produziu, por seu Departamento de Estudos e Projetos Legislativos, diversas notas técnicas que embasaram forte atividade de advocacy no Congresso Nacional, realizou mesa de estudos e debates, audiência pública e publicou ao menos dois editoriais (Boletim 270 –Não à redução da maioridade penal; e Boletim 271 –Um Boletim Especial e uma Repetição Necessária), o último deles num boletim de acesso público, especial sobre o tema.

(4)  Disponível em: < https://arquivo.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5626-Vergonha>.

(5)  “O percentual de negros no nível superior deu um salto e quase dobrou entre 2005 e 2015. Em 2005, um ano após a implementação de ações afirmativas, como as cotas, apenas 5,5% dos jovens pretos ou pardos na classificação do IBGE e em idade universitária frequentavam uma faculdade. Em 2015, 12,8% dos negros entre 18 e 24 anos chegaram ao nível superior, segundo pesquisa divulgada [em 02.12.2016] pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Comparado com os brancos, no entanto, o número equivale a menos da metade dos jovens brancos com a mesma oportunidade, que eram 26,5% em 2015 e 17,8% em 2005.”

Disponível em: . Acesso em: 20.07.2017.

Andre Pires de Andrade Kehdi
Presidente do IBCCRIM na gestão 2015-2016.
Presidente do Conselho Consultivo do IBCCRIM na gestão 2017-2018.
Advogado.



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