Fernando Gardinali Caetano Dias
Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi
Autora: Mariângela Gama de Magalhães Gomes
Estar à frente do IBCCRIM em 2013 e 2014 foi – como não poderia deixar de ser – motivo de grande honra e enorme responsabilidade. Estes são sentimentos que decorrem da importância adquirida pelo nosso Instituto, tanto na esfera nacional como no âmbito internacional, a partir da dedicação e persistência daqueles que nos antecederam e criaram as condições para que tivéssemos em nossas mãos o mais importante centro de estudos das ciências criminais no Brasil. A isso se soma o fato de que, pela primeira vez em sua história, nenhum membro da Diretoria Executiva foi sócio-fundador do IBCCRIM; ao contrário, são profissionais que puderam contar com o Instituto desde o início da vida profissional, sendo que a maioria o conheceu quando ainda frequentava os bancos acadêmicos. Essa circunstância, por si só, já seria suficiente para apontar o grande feito atingido por aquele grupo de homens e mulheres que, em outubro de 1992, registrou em ata o propósito de lutar por um sistema penal condizente com os valores do Estado Democrático de Direito; afinal de contas, não pode haver sucesso maior do que perceber que seu ideal vive e se fortalece nas novas gerações.
Apesar desse importante passo no sentido de crescimento e amadurecimento, a atuação do IBCCRIM manteve-se fiel aos seus princípios estatutários, o que se verifica facilmente a partir das pautas que nortearam suas ações e do firme posicionamento frente às diversas ameaças sofridas pelo Estado de Direito e, mais especificamente, pela justiça criminal.
Deve ser recordado que, no início de 2013, a sociedade brasileira ainda estava sob o impacto do julgamento da Ação Penal 470 (Mensalão), momento em que o processo penal esteve sob todos os holofotes. Temas como lavagem de dinheiro, associação criminosa, evasão de divisas, fundamentação das decisões judiciais, direito de defesa, dosimetria da pena, passaram a fazer parte do vocabulário de toda a nação, demandando cuidado para que o populismo penal não soterrasse a técnica e as garantias que são próprias desse setor do ordenamento jurídico.
Já no primeiro semestre de 2013, precisou ser enfrentada a tentativa, especialmente por parte de setores do Poder Judiciário, de limitação ao uso do habeas corpus, uma vez que, diante do excesso de trabalho atribuído aos magistrados e da necessidade de conferir maior celeridade à prestação jurisdicional, a diminuição das hipóteses de cabimento do habeas corpus foi apresentada como solução. Frente a essa ameaça ao sistema de proteção das garantias fundamentais, o Instituto criou o Grupo de Trabalho sobre o Habeas Corpus, posicionou-se publicamente demonstrando preocupação com essa iniciativa e promoveu diversos debates sobre a matéria, incluindo a mesa de encerramento do seu 20º Seminário Internacional.
Tema que esteve bastante presente na pauta do Instituto, naquele biênio, foi a execução penal. Uma das questões que precisou ser enfrentada foi aquela referente à aprovação da Lei Complementar 1.208, de 23 de Julho de 2013, do Estado de São Paulo, que criou Departamentos de Execuções Criminais e de Inquéritos Policiais. No Editorial do Boletim 244, o Instituto argumentou não ser “legítimo que se pense em um departamento de execução penal, absolutamente desvinculado do local da execução e protagonizado por juízes indicados pelo próprio Presidente do Tribunal de São Paulo. Juízes estes, portanto, desprovidos de parte das garantias instituídas pela Constituição para garantir sua imparcialidade”. Mesmo após a aprovação e sanção da lei, o IBCCRIM esteve presente na audiência com o Procurador-Geral da República em defesa do ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade ( ADI 5070 – STF) e, posteriormente, com o ministro relator Dias Toffoli, visando à declaração de inconstitucionalidade daquela norma pelo Supremo Tribunal Federal.
Ainda na primeira metade de 2013, havia sido celebrada, em Minas Gerais, a primeira Parceria Público-Privada (PPP) no Brasil voltada à administração de um complexo penal, fundamentada expressamente nos “princípios da necessidade de uma gestão profissional de unidades penitenciárias, aplicando conceitos de qualidade e eficiência na custódia do indivíduo infrator e promovendo a efetiva ressocialização do detento”. Quando o Brasil era o quarto país que mais prendia no mundo e contava com quase 550 mil detentos, o Instituto não poderia deixar de manifestar sua preocupação com a tragédia anunciada da consolidação da lógica perversa segundo a qual a prisão é um negócio – com grande potencial lucrativo, diga-se de passagem.
O problema da execução penal no Brasil tornou-se inquestionavelmente visível, no entanto, no início de 2014, com a exposição, em todas as mídias, da situação dos presídios maranhenses, e, mais especificamente, do Centro de Detenção Provisória de Pedrinhas. Diante do descaso do Estado, a disputa pelo controle interno do presídio por duas facções criminosas levou a diversas mortes dentro do estabelecimento, e a intervenção da polícia para tentar resolver o problema gerou diversas acusações de maus-tratos e violências. Como se não fosse suficiente, o horror expandiu-se para fora do presídio e passou a atingir toda a população. Embora significativa parcela da sociedade apenas tenha tomado consciência desse problema a partir do caos instalado no Maranhão, há tempos o IBCCRIM já vinha denunciando o equívoco em que consiste a política penitenciária no Brasil e a ineficácia do encarceramento em massa, o que foi reforçado diante dessa nova tragédia. Cabe registrar que, passados três anos da violência em Pedrinhas, o ano de 2017 igualmente teve seu início marcado pela exposição midiática do descontrole do sistema penitenciário por parte do Estado, novamente com a consequência trágica de violência e muitas mortes, especialmente no Amazonas, em Roraima e no Rio Grande do Norte. O problema, portanto, está longe de poder ser resolvido.
Outra questão enfrentada pelo IBCCRIM diz respeito às mudanças na política de drogas que vinham ocorrendo no Brasil, sendo que , à época, encontrava-se em trâmite na Câmara dos Deputados o PL 7663/10, que propunha ainda maiores retrocessos, como a internação “involuntária”, preferencialmente em comunidades terapêuticas e religiosas, e a ideia da abstinência como meta a ser alcançada para a “cura” da dependência de drogas. Foi de grande importância, nesse sentido, o Seminário Ibero-Americano sobre Drogas realizado em maio de 2013, em São Paulo, onde foram analisados os modelos existentes em Portugal e na Espanha – especialmente na Comunidade Autônoma do País Vasco –, além de países da América Latina; o encontro foi um marco na abordagem de todas as iniciativas de descriminalização ou que apontassem para uma perspectiva de tolerância, e levou à redação de um manifesto contrário à política de drogas adotada pelo Estado brasileiro, subscrito por diversas entidades preocupadas com o problema. Posteriormente, no segundo semestre de 2014, o IBCCRIM deu outra demonstração de quão cara a questão é para o Instituto, uma vez que teve papel fundamental na criação da Plataforma Brasileira de Política de Drogas – cujo objetivo é congregar organizações não governamentais, coletivos e especialistas de diversos campos de atuação, para atuação conjunta no debate e na promoção de políticas de drogas fundamentadas na garantia dos direitos humanos e na redução de danos –, sediando-a.
Na análise retrospectiva do país nesse período, ainda, não é possível deixar de fazer referência às manifestações da sociedade civil em junho de 2013, inicialmente marcadas por protestos contra o aumento da tarifa dos transportes públicos em São Paulo e progressivamente transformadas numa indignação ampla e difusa contra certas práticas oficiais e formas correntes de se fazer política. Nesse processo, a truculência e a violência da Polícia Militar, que demonstraram a inabilidade do Estado para lidar com o exercício legítimo dos direitos de reunião e manifestação, tiveram um papel essencial para que os protestos se alastrassem pelo Brasil.
Por um lado, aquele momento trouxe um sopro de esperança, fazendo com que fossem pensadas medidas necessárias para que o sistema político adquirisse maior higidez, fidelidade às regras democráticas e, com isso, também maior funcionalidade e legitimidade – o que o tempo mostrou que, pelo menos até 2017, não aconteceu. De outro lado, porém , evidenciou-se aquilo que as pessoas pobres, negras e habitantes de favelas conhecem muito bem, e que dificilmente chega ao conhecimento do público em geral: atos de violência física e prisões abusivas praticados por agentes da repressão em intensidade digna dos anos de chumbo da ditadura militar. Foram registradas “dezenas de prisões por fatos inexistentes ou penalmente irrelevantes – como o anedótico ‘porte de vinagre’ –, agressões a cidadãos, uso indiscriminado de gases pimenta e lacrimogênio e disparos de balas de borracha feitos ao arrepio de protocolos de segurança e contra cidadãos indefesos” (Editorial Boletim 258). Assim, o papel da polícia no Estado de Direito, cujo questionamento já vinha sendo intensificado pelo IBCCRIM, voltou a ser objeto de atenção e preocupação. Não por acaso, o Editorial do último Boletim publicado sob a Diretoria de 2013 e 2014 foi intitulado Pelo fim dos ‘autos de resistência’, em que se defendia a aprovação do PL 4471/12, “para garantir que todos os homicídios cometidos no país, inclusive aqueles praticados por agentes da segurança pública no exercício de sua função, sejam registrados e investigados como o que realmente são” (Boletim 265). Cabe registrar que a mudança ainda não ocorreu, embora, recentemente, no dia 3 de maio de 2017, tenha sido aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania o PLS 239/2016, com o mesmo objetivo.
Cabe aqui ressaltar que, embora tendo como pano de fundo outros fatos concretos, as principais preocupações que marcaram a atuação política do IBCCRIM durante o biênio 2013-2014 já faziam parte dos temas que sempre inquietaram seus associados e que, por isso, eram objeto de manifestações e atuações públicas. Assim, não parece ser coincidência que o Instituto tenha sido escolhido para indicar dois membros ao Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), criado pela Lei 12.847/13. Com a função de prevenir e combater a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (art. 6º, caput), a criação do CNPCT – como destacado no Editorial do Boletim 262 – “representa um momento histórico no Brasil, especialmente porque o país ainda não conseguiu superar a cultura de tolerância institucional à tortura”. Embora também esteja presente em manicômios e hospitais psiquiátricos, a tortura e os maus-tratos encontram-se fortemente atrelados à falta de vagas e às condições prisionais, além de acompanharem as inúmeras abordagens policiais, prisões em flagrante e investigações policiais. Foi motivo de muita alegria a participação do IBCCRIM na nomeação do CNPCT, o que demonstra o reconhecimento do trabalho feito ao longo das mais de duas décadas de sua existência até então e seu potencial de contribuição para o desenvolvimento de políticas públicas de prevenção e combate à tortura no Brasil. Como expresso no Editorial do Boletim 262, “fazer parte desse momento histórico, além de constituir reconhecimento dos serviços prestados à cidadania ao longo de mais de vinte anos de história, significa honrar a missão do Instituto de defender os princípios e a efetiva concretização do Estado Democrático e Social de Direito”.
Foi comemorada, em 2014, também, a realização do 20º Seminário Internacional do IBCCRIM, simbolizando mais de duas décadas de claro comprometimento do Instituto com a produção de ciências criminais, com o fomento de debates e críticas à política criminal, com a difusão do conhecimento científico e com o suporte à atuação prática dos diversos profissionais que lidam com o Direito Penal. A diversidade de temas postos à discussão – assim como nos seminários anteriores e nos posteriores – demonstra a versatilidade adquirida pelo Instituto ao longo de sua existência, além de sua vocação ao protagonismo no desenvolvimento das ciências criminais; isso fica claro não só quando o IBCCRIM se vê diante do dever de tecer necessárias críticas às atuações estatais, mas também quando tem em suas mãos a possibilidade de contribuir para a elaboração, construção e efetivação de políticas públicas.
Embora outros fatos e outros feitos pudessem ser aqui lembrados, é de se ver a importância do IBCCRIM para a justiça criminal brasileira e, consequentemente, para a sociedade em geral. Os exemplos pinçados de 2013 e 2014 demonstram a perene necessidade de se manter a vigilância e a crítica às atuações do Estado, e são também demonstrações de que o papel do IBCCRIM é – e será por muito tempo – essencial para a resistência às tentativas de restrições e interferências nas liberdades individuais, assim como para a proposição de uma política criminal realmente condizente com os valores da Carta de Direitos Fundamentais de 1988. Embora o caminho seja longo e não sejam poucas as pedras no percurso, a energia das novas gerações e a inspiração naqueles que contribuíram para a edificação do IBCCRIM são motivos para acreditar que estes são apenas os primeiros 25 anos de uma longa história de luta. Enquanto aguardamos o dia em que toda a Diretoria Executiva será composta por pessoas que nasceram após a criação do nosso Instituto, é hora de agradecer e parabenizar todos aqueles que contribuíram para tornar o IBCCRIM a referência que é hoje, principalmente os signatários da ata de sua fundação.
Mariângela Gama de Magalhães Gomes
Presidente do IBCCRIM na gestão 2013-2014.
Professora Associada de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.
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