Fernando Gardinali Caetano Dias
Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi
Autor: Ivan Martins Motta
A escolha deste tema é resultado da observação de que a identificação do exercício regular de direito, dentro do qual se inserem as práticas desportivas (violentas ou não), exclusivamente como causa de exclusão da ilicitude, gera uma contradição entre essa natureza jurídica e as consequências processuais penais delas resultantes.
O presente texto trata apenas das lesões corporais ocorridas na prática dos esportes violentos dentro das regras desses esportes, desprezando aquelas que podem ocorrer fora das respectivas regras, caso em que, necessariamente, devem ter outro enfoque jurídico-penal.
Reinhart Maurach leciona que o tipo penal é “o ponto de partida do exame judicial de um caso concreto, o qual deve realizar-se conforme um procedimento abreviado, possibilitado pela criação do tipo e que ao mesmo tempo permita oferecer a garantia da segurança jurídica”. (MAURACH, 1994, p. 348)
De fato, a primordial relevância processual penal da prática de uma conduta típica é dar início à persecução penal, isto é, ao exame judicial do caso concreto, seja essa persecução efetivada através da instauração de inquérito policial ou de qualquer outro procedimento administrativo averiguador, seja através da ação penal (MOTTA e VILLAS BÔAS, 2017, p.68). A palavra persecução indica “não só a propositura da ação penal, como ainda, a simples investigação e a atribuição a alguém em notitia criminis de um fato delituoso”. (MARQUES, 1998, p.127)
Não há qualquer possibilidade jurídica de a prática de fato previsto em lei como crime, com autoria conhecida, não ser objeto de persecução penal. Mesmo aqueles fatos típicos cobertos por uma excludente da ilicitude, perfeitamente caracterizada nos autos, submetem seus autores a esse exame judicial. Assim, quem mata alguém, usando moderadamente dos meios necessários, em repulsa a uma agressão atual ou iminente e injusta, é submetido a um processo penal, sendo, ao final, absolvido devido à presença da causa de justificação prevista no art. 25 do CP.
A consideração de qualquer excludente da ilicitude pressupõe, necessariamente, a presença da tipicidade. Isso é uma decorrência lógica do conceito analítico de crime em que seus elementos estão vinculados de tal maneira que o posterior pressupõe o anterior.
Há certos esportes violentos cuja prática necessariamente, acarreta como consequência lesões corporais, algumas até de certa gravidade, como, por exemplo, aquelas ocorridas nas lutas de boxe. Essas lesões, no entanto, se praticadas dentro da lex artis, não têm qualquer repercussão processual penal, mesmo quando do conhecimento das próprias autoridades.
Até meados da década de 90 do século passado, a maioria dos livros e artigos sobre a parte geral do Direito Penal enquadrava a prática de esportes (violentos ou não violentos) exclusivamente no exercício regular de direito (CP, art. 23, III), e considerava as lesões dela decorrentes justificadas por essa excludente.
Como já mencionado no livro “Estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito, dupla natureza jurídica e repercussões processuais penais”: (1) verbis:
“Apenas nos restringindo à doutrina nacional sobre o Código Penal de 1940: NelsonHungria, além de não distinguir com precisão os casos de cumprimento de dever legal e exercício de direitos, cinge-se a citar, entre os casos de excepcional licitude, além daqueles previstos na parte especial da lei penal, a prática de esportes violentos, as operações cirúrgicas e qualquer fato que seja inerente ao exercício normal de uma profissão. José Frederico Marques inclui dentro de seu âmbito, no que toca à lei não penal, o costume, o ius corrigendi que promana do pátrio poder, o tratamento médico cirúrgico e os esportes violentos. Com relação a estes dois últimos (...) acrescenta o consentimento do ofendido também como fundamento da sua licitude. Anibal Bruno insere nesta fórmula os atos praticados com o fim de correção por pais ou mestres, as defesas predispostas ou offendicula, as intervenções médicas e cirúrgicas e as lesões em jogos esportivos (...). Heleno Fragoso menciona as intervenções cirúrgicas e os esportes violentos. Edgard Magalhães Noronha relaciona o castigo paterno, a agressão no esbulho possessório, o costume, a violência nos desportes e a intervenção médico-cirúrgica, estas últimas com fundamento, também, no consentimento do ofendido (...). Damásio de Jesus enumera a prisão em flagrante realizada por um particular, a liberdade de censura prevista no artigo 142 do Código Penal, o direito de retenção permitido pelo Código Civil, o direito de correção do pai em relação ao filho, as intervenções médicas e cirúrgicas e a violência esportiva. Julio Fabbrini Mirabete inclui o direito de correção dos filhos pelos pais, a prisão em flagrante pelo particular, o penhor forçado (artigo 779 do Código Civil), a defesa em esbulho possessório recente (artigo 502 do Código Civil), os ofendículos, a violência esportiva e as intervenções médicas e cirúrgicas. Cezar Roberto Bitencourt alude às intervenções médicas e cirúrgicas e à violência esportiva.” (MOTTA, 2000, p.51 e 52)
Ainda atualmente, destaca-se que essas lesões são mencionadas em alguns livros de Direito Penal como exemplo de excludentes da ilicitude, acobertadas pelo exercício regular de direito, CP. (2)
No entanto, esses compêndios não explicam a razão pela qual, nessas hipóteses, não se inicia a persecução penal, muito embora típicas as condutas. Aliás, saliente-se, nem sequer superficialmente abordam a questão, ignorando totalmente o reflexo necessário da natureza jurídica por eles atribuída aos referidos institutos sobre o plano processual penal.
No Direito nacional, o livro Estrito foi um dos primeiros a tratar o estrito cumprimento de dever legal e o exercício regular de direito como institutos com dupla natureza jurídica: excludente da ilicitude e excludente da tipicidade.
Para fundamentar esse entendimento, a referida obra socorre-se, inicialmente, dos ensinamentos de Eugênio Raúl Zaffaroni, com a sua até hoje prestigiada teoria da tipicidade conglobante (ZAFFARONI, 2010, p.393-398). Zaffaroni leciona, em primeiro lugar, que a estrutura do tipo penal contém basicamente três conceitos básicos: bem, norma e lei. O bem é o ente da vida real (por exemplo, a vida humana) valorado pelo legislador que, dessa forma, manifesta o seu interesse em tutelá-lo; a norma, proposição jurídica obrigatória sob a forma de proibição ou mandado, traduz esse interesse do legislador em tutelar o bem por ele previamente valorado (por exemplo, não matarás); a lei (tipo) é a expressão da norma em formato legal (exemplificando, matar alguém, pena: CP, art.121). Somente então é que o bem passa a ser um bem jurídico penalmente tutelado. Desse modo, o legislador vai do bem (ente) à norma e da norma ao tipo (lei).
A tipicidade, isto é, a adequação de uma conduta concreta a um tipo legal de crime, será, pois, obrigatoriamente, contrária à norma pressuposta pelo tipo e afetará o bem jurídico penalmente tutelado. Por conseguinte, prossegue Zaffaroni, acentuando que a conduta, por ser típica, deve, necessariamente, ser também antinormativa, isto é, contrária à norma pressuposta pelo tipo. Porém, no seu entendimento, a antinormatividade não se comprova com a só adequação da conduta ao tipo legal, que ele denomina de tipicidade legal, exigindo ainda uma investigação sobre a afetação do bem jurídico. Essa investigação é uma etapa posterior que, uma vez comprovada a tipicidade legal, obriga o intérprete a indagar sobre a antinormatividade. Somente quando essa está comprovada é que se pode concluir naquilo que Zaffaroni denomina de tipicidade penal da conduta. Em suas palavras, “a tipicidade penal requer que a conduta, ademais de enquadrar-se no tipo legal, viole a norma e afete o bem jurídico”
Para tanto, continua Zaffaroni, se exige a “comprovação da tipicidade conglobante, consistente na averiguação da proibição mediante a indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, mas conglobada com toda ordem normativa. A tipicidade conglobante é um corretivo da tipicidade, posto que pode excluir do âmbito do típico aquelas condutas que só aparentemente estão proibidas”. Finalmente, conclui Zaffaroni, afirmando que “será, pois, função deste segundo passo do juízo de tipicidade penal, reduzi-la à verdadeira dimensão do que a norma proíbe, deixando fora da tipicidade penal aquelas condutas que só são alcançadas pela tipicidade legal, mas que a ordem jurídica não quer proibir, precisamente porque as ordena ou as fomenta”.
A única censura feita à tese de Zaffaroni é que se pode chegar à sua mesma conclusão, isto é, descaracterizar a tipicidade da conduta naquelas modalidades de exercício regular de direito, sem o recurso de se seccionar a tipicidade em tipicidade legal e tipicidade formal, de modo a complicar a singeleza e coesão do instituto da tipicidade. A tipicidade pode ser afastada “naquelas situações de (...) exercício regular de direito em que a ordem normativa (...) fomenta a conduta, empregando a sua linha conglobante, porém sem a necessidade (...) de se cindir a tipicidade entre tipicidade legal e tipicidade formal. No nosso entender, esta cisão do conceito de tipicidade prejudica a pureza e a simplicidade que devem existir no conceito analítico de crime, complicando-o desnecessariamente”. (MOTTA, 2000, p. 64)
Quanto aos direitos incentivados ou fomentados pela ordem jurídica, dá-se especial destaque à pratica desportiva de viés violento, que necessariamente acarretam lesões corporais, tais como, boxe, karatê, kung-fu, etc. Imperioso se realçar que a prática dos desportos em geral é uma atividade fomentada pelo art. 217 da CF. (3) A Lei Maior não excepciona dessa área de fomento a prática de esportes violentos. Como o exercício regular desses esportes implica necessariamente uma lesão ao bem jurídico saúde e integridade corporal, forçoso é reconhecer que as lesões sofridas durante a sua prática não são eventos típicos, estando as condutas que as ocasionam amparadas pelo exercício regular de direito que, no caso, atua como excludente da tipicidade.
Para se chegar a essa conclusão, considera-se, repita-se, que o exercício regular de direito tem dupla natureza jurídica: causa de exclusão da ilicitude (art.23, III, do CP) e causa de exclusão da tipicidade. O não reconhecimento das lesões ocorridas durante a prática de esportes violentos como fatos típicos é fundamentado, invocando-se o instituto do concurso (conflito) aparente de normas. Efetivamente, nessas práticas desportivas que geram resultados lesivos, se observa a presença de duas normas aparentemente em conflito: a) a norma geral, pressuposta pelo tipo, que se dirige a todas as pessoas e que proíbe a ofensa à integridade corporal e à saúde de outrem, (art. 129 do CP), e b) a norma especial que fomenta a prática dos esportes, violentos ou não (CF, art. 217), que se dirige aos atletas e aficionados que praticam esses esportes. Efetivamente, fomentar implica direcionar a conduta a um determinado fim (equivalente a uma norma imperativa: pratiquem atividades desportivas!).
O princípio da especialidade é que resolve esse aparente conflito As condutas dos envolvidos no exercício desses esportes violentos, que obrigatoriamente causam lesões corporais, se ajustam, como mencionado, a duas normas: a norma geral, que proíbe a ofensa à integridade corporal e à saúde de outrem e a norma especial, que fomenta a sua prática. Como a norma especial sempre prevalece sobre a norma geral (BOBBIO, 1997, p.95 e 96) o preceito constitucional que fomenta a prática desses esportes, incentivando e dirigindo o comportamento ao seu exercício, prevalece sobre o que proíbe a ofensa à integridade corporal. De fato, seria um contrassenso o Estado proibir aquilo que ele mesmo incentiva e fomenta.
Com essa afirmativa chega-se à conclusão de que a conduta dos praticantes desses esportes fomentados pela ordem jurídica, realizada com total observância de suas regras, que, no exercício regular de seu direito, ofendem forçosamente a integridade corporal e a saúde de seus contendores é atípica, pois não é antinormativa face à presença de fomento estatal, que incentiva a sua prática : não se pode proibir condutas que o Estado fomenta!
Isso explica o porquê de as lesões ocorridas nas práticas desses esportes não serem objeto de qualquer persecução penal, embora conhecidas pelas autoridades estatais. “Este entendimento preserva o nexo de harmonia que deve existir entre o direito material e o direito instrumental, evitando, consequentemente, as perplexidades decorrentes da consideração das entidades jurídicas em exame exclusivamente como causas de exclusão da ilicitude, não obstante os autores das mencionadas condutas “típicas” não serem submetidos a qualquer procedimento persecutório, o que seria um contrassenso.” (MOTTA, 2000, p.100).
Notas
(1) Baseado na dissertação de mestrado com o mesmo título, apresentado em 1997, na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Direito-PUC/SP.
(2) Greco, Rogério, Curso de direito penal, parte geral. 11ª ed. Niterói: Impetus, vol. I, 2009, p.376. Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, vol. 1, p.433.
(3) CF, art. 217: “É dever do Estado fomentar as práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados (...)”. (destaque nosso)
Referências bibliográficas
Bitencourt, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral, 22ª ed.. São Paulo: Saraiva , 2016.
Bobbio, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 9ª ed. Brasília: UNB, 1997.
Greco, Rogério. Curso de direito penal: parte geral, 11ª ed. Niterói: Impetus, 2009, vol. 1.
Marques, José Frederico. Elementos de direito processual penal, 1ªed. 2ª tiragem. Campinas: Bookseller, 1998, vol. 1.
Maurach, Reinhart; Zipf, Heinz. Derecho penal: parte general, trad. Genzsch, Jorge Bofill e Gibson, Enrique Aimone. Buenos Aires: Astrea, 1994, vol. I.
Motta, Ivan Martins; Villas Bôas, Regina Vera. Manual de direito penal: parte geral: livro de estudo, 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2017.
Motta, Ivan Martins. Estrito cumprimento de dever legal e exercício regular de direito: dupla natureza jurídica e repercussões processuais penais. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000.
Zaffaroni, Eugenio Raúl; Pierangeli, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral, 8ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010.
Ivan Martins Motta
1º Tesoureiro do IBCCRIM na gestão 2003-2004.
Doutor e mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da PUC/SP.
Professor de Direito Penal da Universidade São Judas Tadeu – USJT e professor licenciado do Curso de Mestrado do Centro Universitário Fieo – UNIFIEO.
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