INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

     OK
alterar meus dados         
ASSOCIE-SE


Boletim - 298 - Setembro/2017





 

Coordenador chefe:

Fernando Gardinali Caetano Dias

Coordenadores adjuntos:

Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi

Conselho Editorial

Tortura – 20 anos depois

Autor: Sérgio Salomão Shecaira

Em maio de 1997, publiquei um artigo intitulado Algumas notas sobre a nova Lei de Tortura (Lei 9.455 de 7 de abril de 1997).

No artigo, escrito no calor do advento da Lei de Tortura, fiz críticas ao sistema de tipificação adotado pela lei. O legislador abriu a possibilidade de que qualquer pessoa pudesse ser processada segundo a norma, independentemente de ser ou não agente do Estado, já que se optou por uma classificação do crime como comum, e não como próprio, conforme recomendava a doutrina. Por que isso aconteceu? A lei surgiu da comoção de um episódio que ficou conhecido como “Caso da Favela Naval”, em que policiais militares torturavam e intimidavam moradores da região de Diadema. As cenas de violência foram gravadas e transmitidas pelo Jornal Nacional, produzindo uma onda de indignação. O principal acusado, Otávio Gambra, conhecido como Rambo, foi processado pela violência que produziu uma morte, vindo a ser condenado a 15 anos de reclusão pelo Tribunal do Júri. A primeira reportagem foi ao ar em 31 de março de 1997. Sete dias depois, a lei estava aprovada no Congresso.

Em 1997, a sociedade esforçava-se por esquecer os anos tristes da Ditadura civil-militar (1964-1985). Pesquisas autorizadas identificaram mais de cem torturas usadas nos “anos de chumbo”. Esse baú de crueldades foi aberto de vez em 1968, o início do período mais duro do regime militar. A partir dessa época, a tortura passou a ser amplamente empregada, especialmente para obter informações de pessoas envolvidas com a luta armada. Contando com a “assessoria técnica” de militares americanos que ensinavam a torturar, grupos policiais e militares começavam a agredir no momento da prisão, invadindo casas ou locais de trabalho. Eram comuns os métodos como pau-de-arara, choques elétricos, cadeira do dragão, soro da verdade, afogamentos e espancamentos, geladeira etc. O livro Tortura: a história da repressão política no Brasil, de Antonio Carlos Fon, Global Editora, 1979, traça um amplo painel desse período e dos métodos adotados. Naqueles tempos, muitos jovens de classe média, envolvidos com a resistência democrática, acabaram mortos, exilados ou padeceram em torturas múltiplas. Por isso, muitos profissionais liberais, professores, advogados, estudantes e outros extratos sociais intelectualizados passam a combater com veemência a tortura. No entanto, findo o regime de exceção, as práticas de espancamentos e outros suplícios passam a ter de tais grupos uma espécie de silêncio cúmplice. Os perseguidos de sempre, pessoas simples do povo que padecem nas periferias das grandes cidades, passam a não ter mais a solidariedade das elites. Afinal de contas, o período identitário deixa de existir e as elites não veem nos pobres pessoas iguais.

A Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Degradantes ou Desumanos, recepcionada em nosso ordenamento por meio do Decreto 40, de 15 de fevereiro de 1991, estabelece como tortura “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido, ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência” (art. 1º).

A Lei 9.455/97, por sua vez, não considerou o crime de tortura como crime próprio – no sentido da prática ser restrita apenas aos agentes do Estado, como dispõe a Convenção. O artigo 1º, em seus incisos e alíneas, fala do “constrangimento de alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental”. Diz ainda daqueles que submetem alguém sob sua guarda, poder ou autoridade a grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Enfim, a lei de tortura deixa de mirar agentes públicos e passa a olhar para pais que maltratam filhos, babás que esperam os patrões irem ao cinema para agredir crianças indefesas, cuidadores que não cuidam de idosos etc. Uma das principais consequências da lei da forma como foi promulgada era o grande número de condenação de casos de violência doméstica como crime de tortura, ofuscando, assim, os casos que envolviam propriamente agentes públicos. Anos depois, pesquisas confirmaram essa possibilidade. O estudo Julgando a Tortura (2015), realizado pelo Conectas, demonstra, pela análise dos julgados dos Tribunais Superiores, que os agentes públicos acusados por crime de tortura têm mais chance de serem absolvidos do que simples particulares.(1) A pesquisa indica que há falta de empenho das instituições de segurança pública e justiça na apuração dos casos envolvendo agentes públicos, o que contribui significativamente para esse resultado. Ademais, entende-se que se a vítima é um suspeito ou alguém que estava preso, juízes e promotores passam a não acreditar na versão da vítima em detrimento da do agente público. Essa desqualificação produz consequências na forma como os casos são apurados, processados e julgados. Conclusão: o que era para coibir violências públicas passou a focar a atividade de particulares.

As notícias se sucedem, sempre mostrando as dificuldades em conseguir casos de condenações de agentes públicos no Brasil.

Veja-se a propósito: “Nenhum agente do estado foi responsabilizado, seja na esfera civil, criminal ou administrativa em 105 casos de tortura feitos nos presídios brasileiros. As ocorrências, praticadas entre os anos de 2005 e 2016, foram analisadas e acompanhadas pela Pastoral Carcerária Nacional, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). De acordo com a pastoral, o universo de casos de tortura contra encarcerados no Brasil é muito maior que as 105 ocorrências, que foram analisadas pelo estudo. As informações, publicadas na última quinta-feira (20), fazem parte do relatório Tortura e Encarceramento em Massa no Brasil, estudo da Pastoral Carcerária feito em 47 municípios de 16 estados e no Distrito Federal, com o apoio da Oak Foundation e do Fundo Brasil de Direitos Humanos, com a contribuição do Fundo de Fomento à Pesquisa da Universidade Presbiteriana Mackenzie (Mackpesquisa)”.(2) É emblemático que não tenha havido qualquer responsabilização de agentes estatais, na esfera civil, criminal, ou mesmo administrativa. O relatório mostra que em apenas 22% dos casos houve instauração de inquérito policial. Em 20% dos casos nenhum procedimento foi instaurado, o que demonstra absoluta negligência ou déficit de transparência por parte das instituições.

A suposta finalidade preventiva da lei, não obstante ser reafirmada em salas de aulas pelos seguidores do pensamento funcionalista, com base em vasta doutrina influenciada por autores alemães, tampouco está a demonstrar sua capacidade dissuasória no cometimento de delitos, se medidas efetivas de acompanhamento e fiscalização das instituições de controle social não forem adotadas. Pesquisa levada a efeito pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), aos cuidados de Maria Gorete Marques, intitulada Julgando a tortura: análise da jurisprudência nos tribunais de justiça do Brasil, examinou 455 acórdãos proferidos pelos Tribunais de Justiça no período compreendido entre 2005 e 2010, envolvendo 800 vítimas, e constatou aumento gradual de casos ao longo desse período. Na realidade, o sistema de justiça criminal está perpetuando a tortura, pois não tem tomado medidas enfáticas para coibir o aparecimento de novos casos.

Alguns casos paradigmáticos merecem destaque em vários lugares do Brasil. (i) Em janeiro de 2013, agentes penitenciários obrigaram 52 detentos do Presídio de Vila Velha III, localizado no Estado do Espírito Santo, a se sentarem nus em pisos escaldantes, em retaliação a um protesto por falta de água no presídio. Fotografias e depoimentos indicaram que vários detentos sofreram queimaduras graves nas nádegas. Ao se queixarem das queimaduras, alguns presos foram agredidos e atingidos por spray de pimenta; (ii) Amarildo Dias de Souza desapareceu após ter sido detido por policiais militares na comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro. Os policiais afirmaram que soltaram Amarildo e que ele havia deixado a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha a pé.

Porém, de acordo com autoridades que apuraram o caso, as filmagens das câmeras de segurança do local somente registraram a saída de viaturas policiais. Em outubro de 2013, 25 policiais foram acusados pela tortura de Amarildo com choques elétricos, asfixia e afogamento com o intuito de forçá-lo a revelar onde traficantes de drogas teriam escondido armas de fogo e drogas; (iii) imagens de câmeras de segurança da unidade da Vila Maria da Fundação Casa em São Paulo, que vazaram para a imprensa, mostraram funcionários da unidade espancando seis jovens após uma tentativa de fuga. Dois funcionários puderam ser vistos chutando e batendo nos adolescentes com seus punhos e cotovelos, enquanto os jovens se encolhem contra uma parede com roupas íntimas, com as mãos para trás. O diretor da unidade e três outros funcionários supostamente envolvidos no episódio foram afastados de seus postos;

(iv) policiais militares prenderam dois jovens em maio de 2012 e os levaram ao 58º Batalhão de Polícia Militar de Salvador, no Estado da Bahia. Os suspeitos depuseram em juízo que os policiais os haviam espancado e estrangulado para forçá-los a confessar a posse de drogas e armas de fogo, alegações corroboradas por exames de corpo delito que mostram diversas lesões em seus rostos, joelhos, cotovelos e peitos no dia de suas prisões. Em diferentes instituições, em vários Estados brasileiros, as denúncias — nem sempre adequadamente apuradas — surgem contra policiais civis e militares, agentes penitenciários, funcionários de instituições de recolhimento juvenis e, em muitas hipóteses, com certa complacência de promotores e juízes que sempre valoram depoimentos das vítimas como se tivessem menor credibilidade do que a palavra de agentes públicos, muitas vezes seus algozes.

Está na hora de o governo brasileiro criar um efetivo mecanismo nacional de prevenção à tortura e investigar os crimes do passado também. O mecanismo deve ser orientado pelo sistema da externalidade, devendo ter a sociedade civil o protagonismo desse controle. Tampouco podemos supor que fatos passados devam ser olvidados. Como expressa Zaffaroni, os crimes de massa são cometidos por um poder punitivo descontrolado, ou seja, as próprias agências do poder punitivo cometem os crimes mais graves quando deveriam operar para sua contenção.(3)

E por que isso acontece? Basicamente porque as ditaduras latino-americanas não desmontaram o aparato repressivo constituído ao longo de décadas, com as devidas punições dos responsáveis por mortes e torturas. Entre nós, o caso é ainda mais grave, pois a nossa Lei de Anistia funcionou como uma verdadeira lei de ponto final. Passamos uma borracha sobre o passado, mas ele continua a assombrar o presente. E, fora de toda dúvida, o saber penal pouco sabe acerca da função da pena e se vale de múltiplas construções idealistas, com base na intuição, que não dão conta de explicar racionalmente o fenômeno. Mas, sem qualquer dúvida, quando o poder punitivo do Estado se descontrola, desaparece o Estado de Direito e, em seu lugar, passa a existir um Estado de Polícia. E se é verdade que qualquer poder punitivo tende ao descontrole com o objetivo de combater inimigos, um Estado Policial potencializa ainda mais esse descontrole criminal. Seus agentes invocam razões práticas várias para justificar violências, mortes e torturas . E elas continuam a perturbar o nosso sono.

Entre 1979 e 1985, Dom Paulo Evaristo Arns, o Rabino Henry Sobel e o Pastor Jaime Wright empreenderam um projeto chamado Brasil nunca mais. Esse projeto contemplava uma importante documentação sobre a história do Brasil buscando sistematizar informações de mais de um milhão de páginas contidas em 707 processos do Superior Tribunal Militar (STM), revelando a extensão da repressão política no Brasil, cobrindo um período que foi de 1961 a 1979. O relatório completo, resultado do esforço de mais de 30 brasileiros que se dedicaram durante quase seis anos a rever a história do período no país, reescrevendo-a a partir das denúncias feitas em juízo por opositores do regime de 64, bem como o livro publicado pela Editora Vozes, tiveram papel fundamental na identificação e denúncia dos torturadores do regime militar e desvelaram as perseguições, os assassinatos, os desaparecimentos e as torturas; atos praticados nas delegacias, unidades militares e locais clandestinos mantidos pelo aparelho repressivo no Brasil. O vaticínio então voltado ao futuro, segundo o qual Tortura nunca mais, era um sonho que permitia supor que o fenômeno da tortura seria algo que se inseriria, em definitivo, como um capítulo findo da nossa história. Lamentavelmente, as instituições do presente, calcadas nas relações do passado, continuam a desmentir o vaticínio.

Continuamos a ter a tronitoante ameaça da tortura no Brasil, a despeito da expectativa sempre presente de que ela não exista no futuro.

Notas

(1) Disponível em: . Acesso em: 25/7/2017.

(2) Disponível em: . Acesso em: 25/7/2017.

(3) Zaffaroni, Eugenio Raúl. Crímenes de masa. Buenos Aires:   Ediciones Madres de Plaza de Mayo, 2010. p. 33.

Sérgio Salomão Shecaira
Presidente do IBCCRIM na gestão 1996-1998.
Professor Titular de Direito Penal e Criminologia da USP.
Ex-Presidente do CNPCP.



IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040