INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 298 - Setembro/2017





 

Coordenador chefe:

Fernando Gardinali Caetano Dias

Coordenadores adjuntos:

Daniel Paulo Fontana Bragagnollo, Danilo Dias Ticami e Roberto Portugal de Biazi

Conselho Editorial

25 anos depois, Direito Penal 3.0

Autor: Luiz Flávio Gomes

O Direito Penal, visto sob a perspectiva de um sistema de garantias, pode ser estudado em três etapas: de meados do século XVIII ao princípio do século XIX (1ª etapa), décadas finais do século XX (2ª) e princípio do século XXI (3ª). A essas três etapas correspondem os direitos penais 1.0, 2.0 e 3.0. Nas faculdades, nos congressos e nos livros, o último ainda é pouco discutido.

Em 1992 (ano de fundação do IBCCRIM), vivíamos a eclosão (no nosso país) do Direito Penal 2.0 (que veio como resposta ao hiperpunitivismo norte-americano, nascido no final dos anos 60 do século XX).

A polarização político-criminal e ideológica vigente nos primeiros anos de 90 era a seguinte: punitivismo penal (crença absoluta na efetividade das normas penais e no aumento das penas para o “combate” à criminalidade) “versus” Direito Penal minimalista garantista (sendo disso paradigma a doutrina acentuadamente iluminista de Luigi Ferrajoli, explicitada, sobretudo, no seu livro Direito e razão, que funcionou como um tipo de bíblia para nossa geração).

Desse debate falso (punitivistas “versus” garantistas) todos nós participamos (alguns bem intencionados). Era falso, desde logo, porque a punição (o império da lei contra a bandidagem, incluindo particularmente a do colarinho branco) e as garantias não são aporéticas (antagônicas). Todo país civilizado (para a preservação da ordem) usa e depende das duas coisas: tanto do império da lei (contra todos) como do respeito ao Estado de Direito.

Era falso, ademais, não pelas suas evidências, sim, pelas suas ignorâncias (obscuridades). O que os punitivistas fundamentalistas ignoravam? A doutrina de Beccaria de 1764, que dizia que, para a prevenção do delito, mais vale a certeza do castigo do que a aprovação de leis penais duras (veja meu livro Beccaria 250 anos depois).

O que os garantistas formalistas não enxergavam? Que o Brasil é muito mais que um país corrupto. O Brasil é uma cleptocracia (desde 1500) dominada por alguns ladrões e corruptos da política e do mercado econômico e financeiro. Juntos, formam o mais potente crime organizado do país, de tipo protomafioso e neocolonialista (escravagista, racista, paternalista e elitista).  

Essa cleptocracia, dentro da lei, deve ser combatida com todas as armas adequadas da política criminal, incluindo a colaboração com a Justiça, conformada com base em garantias específicas (típicas do Direito Penal 3.0, mas distintas do Direito Penal 2.0). Nos itens que seguem, vamos sintetizar essa evolução do Direito Penal enfocado como instrumento de garantias.

Direito Penal 1.0

O Direito Penal 1.0 nasceu no entorno cultural europeu (iluminista) do século XVIII (e princípios do século XIX, com a era das codificações). Vigorava no Brasil, nesse tempo (da Colônia), o velho e bárbaro Direito Penal monárquico português, que foi combatido duramente por Beccaria (Dos delitos e das penas, 1764), que continua muito atual (em pleno século XXI), porque em países como o nosso (governado por grupos de ladrões protomafiosos), que impõem suas ordens sociais, políticas, econômicas e jurídicas, ainda não foi resolvido o drama entre a barbárie e a civilização.

A leitura atenta do livro clássico Dos delitos e das penas revela muitos “Beccarias”: o iluminista, que criticou duramente o poder monárquico e sua justiça inquisitiva; o secular, que pugnou pela separação entre a Igreja e o Estado, a religião e o Direito e o delito e o pecado; o racionalista, que partia da premissa de que o humano deveria fazer uso da razão e se libertar das crenças e superstições, das religiões estabelecidas assim como dos costumes autoritários; o contratualista (o poder político é fruto de um mitológico acordo, de um pacto entre as pessoas, consoante lições de John Locke, Hobbes e Rousseau).

Ainda se vê o Beccaria crítico do sistema medieval, que pregava, com Montesquieu, que toda pena desnecessária é tirânica; o garantista e sistematizador dos princípios orientadores do moderno sistema penal (legalidade dos delitos, proporcionalidade das penas etc.); o humanista, que censurava a tortura e a pena de morte, assim como as arbitrariedades judiciais, reivindicando um sistema punitivo mais suave, mas certo e infalível; o utilitarista, que aceitava a ideia de que a pena tem por finalidade a prevenção de crimes; o “socialista”, que postulava reformas socioeconômicas e educacionais; o “burguês”, porque acabou fornecendo a argamassa necessária para a construção do novo poder punitivo comandado pela burguesia ascendente após a Revolução Francesa de 1789.

Beccaria recebeu críticas dos conservadores (da Igreja, sobretudo) assim como dos progressistas (que contestavam sua posição diante do direito de propriedade). Sua doutrina, especialmente na América Latina, no entanto, sempre foi muito bem recepcionada.

Direito Penal 2.0

O movimento minimalista garantista nasce (nos anos 70/80) em oposição ao movimento punitivista da law and order (EUA, final dos anos 60), fundamentando-se em propostas elaboradas por incontáveis filósofos e penalistas, merecendo destaque evidentemente Baratta (em relação ao minimalismo) e Ferrajoli (no que diz respeito ao garantismo).

Ao lado da corrente abolicionista radical, portanto, existe uma linha moderada, que propugna por um Direito Penal “mínimo”, isto é, “mínima intervenção, com máximas garantias”. É o que defendia Ferrajoli, Hassemer, Cervini e, principalmente, Alessandro Baratta.

Em torno da doutrina do minimalismo se construiu um enorme consenso acadêmico (doutrinário), mesmo porque seus postulados e princípios não são fechados. Vêm dos clássicos e da doutrina iluminista (Beccaria, Bentham, Stephen, Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão etc.) as primeiras reivindicações de não intervenção estatal.

De conformidade com Ferrajoli (Direito e razão), garantista é o sistema penal em que a pena se afaste da incerteza e da imprevisibilidade, condicionada exclusivamente na direção do máximo grau de tutela da liberdade do cidadão contra o arbítrio punitivo. Mínima intervenção penal com as máximas garantias: nisso consiste o garantismo de Ferrajoli, que está fundado em dez axiomas:

(a) Nulla poena sine crimine (não há pena sem crime);

(b) Nullum crimen sine lege (não há crime sem lei);

(c)  Nulla lex (poenalis) sine necessitate (não há lei penal sem necessidade);

(d) Nulla necessitas sine iniuria (não há necessidade sem ofensa ao bem jurídico);

(e)  Nulla iniuria sine actione (não há ofensa ao bem jurídico sem conduta);

(f)  Nulla actio sine culpa (não há conduta penalmente relevante sem culpa, ou seja, sem dolo ou culpa);

(g)  Nulla culpa sine judicio (não há culpabilidade ou responsabilidade sem o devido processo legal);

(h) Nullum judicium sine accusatione (não há processo sem acusação; nemo iudex sine actori);

(i)   Nulla accusatio sine probatione (não há acusação sem provas, ou seja, não se derruba a presunção de inocência sem provas válidas);

(j)  Nulla probatio sine defensione (não há provas sem defesa, ou seja, sem o contraditório e a ampla defesa).

O Direito Penal 2.0 caracteriza-se, ademais, pela conflitividade. O conflito penal é resolvido de forma antagônica, de acordo com o modelo francês. Não se permite o consenso, que é o eixo do Direito Penal 3.0 (originário da common law).

Vício de defeito e vício de excesso

O Direito Penal 2.0, já no princípio do século XXI, apresentava um duplo vício: o de defeito e o do excesso.  Consoante Ferrajoli (ver Delitos de los estados, de los mercados e daño social, coordenação de Iñaki Rivera, Barcelona, Anthropos, 2014), ambos devem ser evitados. Não é aceitável nem a “deficiência da jurisdição penal” (sobretudo frente à criminalidade dos poderosos) nem o Estado policialesco (sobretudo frente à criminalidade dos sem poder).

Particular atenção vem dedicando Ferrajoli (na última década) à criminalidade organizada dos poderosos. O crime organizado dos poderes públicos desviados (ou o resultante dos poderes econômico e político) “é o mais infame de todos, porque envolve crimes contra a humanidade, torturas, desaparecimentos forçados, sequestros, guerra e, sobretudo, corrupção”.

O mais sério ataque contra a democracia é o emanado desses grupos organizados. A corrupção contraria todos os fundamentos da democracia (transparência, legalidade, moralidade etc.). Afeta de modo grave a esfera pública assim como os princípios democráticos. O bem jurídico que está em jogo, quando se trata de crime organizado que envolve o poder público ou o público-privado, é a própria democracia, ou seja, o Estado de Direito.

Conforme a doutrina de Ferrajoli (citado), uma dupla involução cabe ser mencionada: (a) a legislação e o funcionamento do sistema penal garantiam a impunidade da corrupção dos poderosos, fosse despenalizando alguns crimes, fosse permitindo a prescrição; (b) suas forças continuavam sendo dirigidas contra os mais débeis (pobres), aumentando penas, endurecendo os regimes da execução, tudo por meio de uma legislação demagógica, típica do populismo penal, fundada no medo, com alta dose de ineficácia, o que coloca em xeque a função dissuasória da pena.

É neste contexto (marcado por um sistema penal extremamente classista e racista) que surge o Direito Penal 3.0 .

Direito Penal 3.0

Não se trata de um sistema punitivo substitutivo do Direito Penal 2.0 . É alternativo, por constituir outro paradigma de Justiça criminal, ao qual o réu não é obrigado a aderir. Mais: comprovando-se qualquer tipo de ameaça ou constrangimento, nulo será o sistema da negociação penal .

O modelo 3.0 constitui uma mudança de paradigma. Da Justiça conflitiva (clássica, do sistema francês) se coloca à disposição do réu também a Justiça consensuada (resolução alternativa e negociada do conflito).

O sistema de garantias da Justiça criminal negociada é bastante diverso do sistema desenhado pelo Direito Penal 2.0. São outras garantias (da legalidade, da autonomia da vontade, da ausência de coação etc.).

Sobre a Justiça consensuada (negociada) pode-se afirmar:

1.  Veio para ficar. É a norte-americanização (racionalização) da Justiça criminal de praticamente todo o Ocidente. O velho modelo francês (burocratizado) de investigação do crime e produção de provas mostrou-se ineficaz no enfrentamento da criminalidade dos poderosos.

2.  Pluralidade de ordenamentos jurídicos: o sistema da Justiça negociada (3.0) se apresenta apenas como uma alternativa ao sistema penal clássico (2.0). Cada sistema possui suas regras e garantias específicas. A teoria dos microssistemas explica essa pluralidade de normas.

3.  A plea bargaining (declaração de culpabilidade, guilty plea) constitui a base da negociação. No sistema brasileiro, sem a confissão do réu não existe colaborador da Justiça. E, sem provas, a colaboração “premiada” não permite a concessão dos prêmios legais pactuados.

4.  Não se pode confundir a plea bargaining com a plea of nolo contendere (que demarca nossos juizados criminais). O novo sistema penal, que está sendo aplicado pela Lava Jato, também contempla o approvement norte-americano, que consiste na impunidade do colaborador: isso ocorreu, por exemplo, com os proprietários da JBS.

5.  A mera confissão do crime não basta. Confissão sem comprovação judicial não tem valor jurídico. Com base exclusivamente nela não se pode condenar ninguém. As provas devem ser produzidas dentro do devido processo legal. Quando isso acontece, não há nenhuma inconstitucionalidade (disseram recentemente a Corte Constitucional alemã, em 2013, assim como o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em 2014).

6.  A plea bargaining se divide em charge bargaining (negociação sobre a imputação), sentence bargaining (negociação sobre a pena e demais consequências do delito) ou negociação mista (as duas coisas). O sistema penal alternativo vigente hoje no Brasil caminhou por essa terceira via.

7.  A justiça negociada é praticada nos EUA desde o final do século XIX. Já são mais de 130 anos de experiência (de apoios e de críticas).

8.  As principais razões ou justificações desse sistema nos EUA são: o excesso de processos, o amplo poder discricionário de que dispõe o órgão acusatório, a complexidade do tribunal do júri e a satisfação dos interesses dos atores processuais (excesso de trabalho com escassez de meios, pessoas e recursos, racionalização do trabalho; ganho de honorários mais rápido pelos advogados; evitam-se penas mais severas; excesso de trabalho dos defensores públicos, previsibilidade do resultado do processo, “crime wave” dos anos 60 nos EUA, reconhecimento da plea bargaining anos 70 pela Suprema Corte etc.).

9.  Destaca-se a ampla discricionariedade do órgão acusatório, valendo aqui o princípio da oportunidade extremada (que permite até mesmo o arquivamento do caso sem nenhuma sanção penal, quando se trata de uma confissão ou colaboração de grande monta).

10. Permite-se, assim, ampla disponibilidade do objeto do processo pelas partes (ou seja, negocia-se desde o arquivamento do caso até uma mera redução das penas).

11. As mais contundentes críticas giram em torno dos abusos praticados pelos órgãos acusatórios: overcharging (o acusador diz que tem provas sobre mais crimes que os reais), overrecomendation (ameaça de penas mais duras e mais severas do que seria o justo) e bluffing (notícias de provas que não existem).

12. Por força da regra da discovery, no momento das negociações a lealdade impõe o recíproco conhecimento das provas, incluindo as das investigações paralelas (investigações particulares).

13. No sistema da plea bargaining, tendo em vista a teoria dos jogos, se um dos corréus delata normalmente o melhor para todos os demais é também delatarem.

14. Algumas garantias típicas da Justiça negociada são a documentação das negociações (em audiência aberta – in open court), a presença de advogado assim como a supervisão final de um juiz.

15. São requisitos básicos de validade da negociação: a capacidade (de compreensão e de determinação) do acusado, a declaração ou confissão informada (o réu deve ser informado dos seus direitos previamente, sobretudo do direito de que pode não aceitar a negociação), a declaração ou confissão voluntária (nenhum tipo de coação ou ameaça se permite), existência de base fática (que possa derrubar a presunção de inocência) etc.

16. A homologação final é do juiz. No caso do STF, é do relator. Depois de homologado o acordo, não se admite alteração.

A questão passa a ser probatória (havendo provas ganha-se o prêmio).

17. A revogação (havendo vício da vontade) ou impugnação (vícios precedentes) depende sempre de prova inequívoca.

18. Outras críticas frequentes: desjudicialização do conflito, erosão do princípio acusatório, erosão das garantias da defesa, aplicação desigual da lei penal, desconformidade com os fins da pena. Muitas dessas críticas confundem os sistemas penais 2.0 e 3.0.

A plea bargaining triunfou nos EUA e está fazendo muito sucesso no Brasil (com a Lava Jato). Mas o melhor mesmo é quando também triunfa a Verdade, a Igualdade e a Justiça.

Luiz Flávio Gomes
Presidente do IBCCRIM na gestão 1993-1994.
Jurista.
Criador do movimento Quero Um Brasil Ético.



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