José Carlos Abissamra Filho
Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos
Autoras: Soraia da Rosa Mendes e Priscila Akemi Beltrame
A paráfrase da célebre afirmação de Simone de Beauvoir que dá título a este texto não é nossa, pertence à professora e pesquisadora Lourdes Bandeira,(1) uma das mais conceituadas militantes e estudiosas do tema da violência contra a mulher em nosso país. Contudo, dela nos apropriamos para refletir sobre o quanto a violência é um poder em si mesma, capaz tanto de matar, quanto de violar a liberdade sexual, perseguir criminalmente quem ouse denunciar todo este “estado de coisas” violador dos direitos e garantias das mulheres, ou mesmo de cercear nossa liberdade de expressão.
O ano de 2016 nem bem terminou e já é possível dizer que não deixará boas marcas na história das mulheres brasileiras. A Lei 11.340 tem nome de mulher, mas no momento em que comemoramos seus 10 anos, a Lei Maria da Penha poderia ter sido dezenas de vezes rebatizada com os nomes de incontáveis mulheres e meninas vítimas da violência patriarcal em suas mais diversas faces.
Um ano de casos emblemáticos, infelizmente não únicos. O feminicídio de Louise em Brasília. O estupro coletivo no Rio de Janeiro. A condenação de uma militante feminista por manifestação na Marcha das Vadias em São Paulo. O ataque misógino sofrido por uma acadêmica em Rondônia. De uma ponta a outra no Brasil fomos/somos a cada dia violadas.
Brasil, março de 2016.
Em 10 de março de 2016 morreu, dentro da Universidade de Brasília, Louise Ribeiro. Uma jovem de apenas 20 anos, estudante de Biologia, assassinada pelo ex-namorado. Inconformado com o término da relação, dizendo-se depressivo, ele a dopou, amarrou suas mãos e a fez ingerir clorofórmio, causando a morte da mulher que ousou dizer-lhe “não”.
Louise não foi a única vítima de morte por ser mulher. De acordo com o “Mapa da violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil”, em média 13 mulheres são assassinadas por dia em nosso país. Ocupamos o 5.º lugar neste ranking mundial, estando atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e da Federação Russa.
Ironicamente, em 9 de março de 2016, a Lei 13.104, que incluiu o feminicídio entre as qualificadoras do homicídio, completou seu primeiro ano de existência, o que, por si só, nada significa se padrões culturais não forem substancialmente alterados, se falar sobre subjugação e violência contra a mulher sob a perspectiva de gênero não se tornar a tônica.
Brasil, maio de 2016.
Em 25 de maio de 2016, veio ao conhecimento público, por um vídeo publicado no Twitter, imagens de uma adolescente submetida à violência sexual. As centenas de comentários que a ele foram postados estigmatizando a vítima (uma menina de 16 anos, estuprada por mais de trinta homens), mostraram o quanto em um sistema social como o nosso, marcado pela cultura patriarcal, não basta violentar a materialidade de nossos corpos, não basta nos dominar. É preciso reafirmar o poder de dominação e, de alguma forma, responsabilizar a própria vítima.
Brasil, setembro de 2016.
A Justiça paulista condenou a militante feminista R.S.P. pela prática do crime de ato obsceno por seu “comportamento” durante a Marcha das Vadias – 2013, na cidade de Guarulhos/SP.
Fato típico? Retirar a camiseta e, de peito aberto, manifestar-se pela descriminalização do aborto e contra a violência de gênero. Segundo o magistrado, o ato da militante ofendeu “o decoro público”, “o sentimento coletivo a respeito da honestidade e decência dos atos, que se fundam na moral e nos bons costumes”.
O que a decisão mostrou, todavia, é que, em pleno século XXI, o corpo feminino ainda permanece marcado por critérios de “decência” e “pudor” como forma de cerceamento da liberdade das mulheres. O que mostrou é quenossos corpos, como em tempos idos, ainda são usados como motivações vazias de sentido para a criminalização da luta por direitos humanos fundamentais que nos permanecem negados em nosso país.
Brasil, outubro de 2016.
A pesquisadora e militante feminista Sinara Gumieri é violentamente agredida por um professor do Curso de Direito da Universidade Federal de Rondônia. Motivo? A palestra sobre direitos sexuais e reprodutivos das mulheres proferida por ela na semana anterior naquela faculdade.
Diferentemente de liberdade de expressão, como o professor fez questão de dizer enquanto vociferava perante uma turma lotada de estudantes, suas ofensas e “opiniões” trataram-se de misoginia.
Um discurso de ódio que, guardadas as devidas proporções, não é um fenômeno isolado dentro das universidades brasileiras, em que muitos professores fazem “graça” ao falarem de estupro, violência doméstica e feminicídio, assim como ridicularizam e oprimem as alunas que a isso se contrapõem. O que se quer é a lei do silêncio.
Brasil, novembro de 2016.
No Brasil, a cada 4 minutos uma brasileira é agredida; uma mulher é estuprada a cada 11 minutos; treze mulheres são assassinadas por dia, uma a cada três por feminicídio; e cada vez mais recrudescem em violência as formas de tentar calar as nossas vozes na academia e nas ruas.
Em 20 de novembro iniciamos mais uma campanha: 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra as Mulheres. Uma mobilização mundial que todos os anos envolve mais de 160 países a partir do dia 25 de novembro, Dia Internacional da Não Violência contra a Mulher, perdurando até 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.
Em nosso país, desde 2003, iniciamos a campanha no Dia da Consciência Negra, como forma de visibilizar a violência de gênero especialmente sofrida pelas mulheres negras. E este artigo tem como objetivo marcar esta campanha com o instrumento que aqui nos cabe: a palavra.
Quisera, em nossa análise de conjuntura, pudéssemos desenhar um retrato menos violento de 2016. Ou, ainda mais, quisera pudéssemos rascunhar um quadro mais alvissareiro para 2017. Infelizmente, não podemos .
Não enquanto as águas turvas do conservadorismo estiverem em nossos pescoços, a tentar impedir que falemos com crianças e jovens sobre igualdade, liberdade, justiça e paz entre homens e mulheres. Não enquanto a discussão de gênero for demonizada. Não enquanto ir às ruas nos impuser ameaças que nos lembrem fogueiras medievais.
Não se nasce mulher, mas por sermos mulheres somos agredidas, mortas, criminalizadas, silenciadas. Lutar contra isso é uma das tarefas que nos cabe nestes 16 dias de ativismo, e também nos demais dias de muitas nuvens escuras que ainda virão.
Nota
(1) Conforme dito na conferência de encerramento do III Colóquio de Estudos Feministas e de Gênero FINATEC – UnB.
Soraia da Rosa Mendes
Doutora em Direito, Estado e Constituição pela UnB.
Coordenadora nacional do Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, Cladem/Brasil.
Priscila Akemi Beltrame
Doutora em Direito Penal pela USP.
Coordenadora nacional do Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher, Cladem/Brasil.
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