José Carlos Abissamra Filho
Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos
Em 15 de dezembro de 2016 a Resolução CNJ 213 completará um ano.
Com seus dispositivos e protocolos de atuação, o Brasil, enfim, venceu a inércia de 23 anos, desde a ratificação do Pacto de São José, que tornou a Convenção Americana de Direitos Humanos direito positivo em território brasileiro.
A disciplina das audiências de custódia, ainda que por via heterodoxa, traz de simbólico o reconhecimento dos descaminhos pelos quais a prisão preventiva enveredou.
Nem todos, porém, ainda se sensibilizaram para o fato de que um ser humano é alvo das decisões que campeiam o sistema de justiça criminal e de que essa pessoa conta uma história de vida, integra um determinado contexto familiar e interage socialmente. Nem todos ainda se aperceberam de que a ideia de prender sem ver e se importar com aquele que se submete à prisão, sem ouvir e sem ter contato algum com essa pessoa, nem esboçar o menor interesse e preocupação em saber se a prisão em si mesma foi executada com moderação, se houve excessos e ofensa à integridade da pessoa detida, transpira um comportamento absolutamente contrário ao regime de estrita legalidade a que se submete esse instituto.
Dados do último censo penitenciário divulgado pelo Departamento Penitenciário Nacional (de dezembro de 2014) registram que o Brasil apresenta a quarta maior população prisional do planeta. Desde o final dos anos noventa até os dias atuais, o Brasil saltou da casa dos quase 100.000 para pouco mais de 622.000 presos. E o mais impressionante: 40% desse contingente é de presos provisórios.
Ocorre que aproximadamente 250.000 é o déficit de vagas do sistema prisional brasileiro, cuja taxa de ocupação, hoje, tem no expressivo índice de 1,9 presos por vaga, a dimensão do colapso humanitário que experimentamos, até porque, nesse mesmo intervalo de tempo, o número de presos em nosso país não cresceu na mesma proporção da disponibilização de novas vagas no sistema prisional.
Resultado disso é que os já hostis e barbarizados espaços de confinamento sofisticaram-se em crueldade, tortura e maus tratos dispensados a todos aqueles ali inseridos. Pior do que isso: não logramos no Brasil, com a cultura do “prender cada vez mais, construir mais presídios e aumentar o contingente de presos”, alcançar uma sociedade mais pacificada.
O cárcere, tal como ele é praticado entre nós, só serve para uma coisa: reforçar os mecanismos de reprodução de um ciclo pernicioso de violência que, como padrão estrutural, só acentua a vulnerabilidade das pessoas e os índices de criminalidade.
Essa é a razão pela qual as audiências de custódia, ainda que não exclusivamente, representam um dos investimentos mais significativos que a justiça brasileira, por intermédio do Conselho Nacional de Justiça, ousou bancar nos últimos tempos. Ao oferecer um novo procedimento para racionalizar a “porta de entrada” dos espaços de confinamento em todo o país, a iniciativa que partiu desde o CNJ, a bem da verdade, buscou depurar o filtro dos requisitos que se manejam para validar a decretação de uma prisão, reconectando a justiça com a sua dimensão mais humanista. Prisão em flagrante e qualquer outra modalidade de prisão, em não sendo ratificada através de audiência de custódia, não tem validade !(1)
Realmente, se temos uma Convenção Americana de Direitos Humanos que, uma vez lida em conformidade com a nossa Constituição Federal, desenha-nos uma série de compromissos, e não zelamos, como intérpretes e cumpridores desse arcabouço normativo, pela aplicação material dessas prescrições, é porque somos seletivos na escolha do que devemos ou não devemos respeitar, atuar e aplicar o direito. Reconhecer e admitir esse dilema, publicamente, já é um bom começo. Mais que isso: é uma etapa necessária para permitir a (re)discussão, com alguma maturidade e seriedade, de propostas que possam levar à redução dos danos que a utilização do “instrumento prisão” provoca.
Atualmente, faz-se necessário investir na fase de expansão ou interiorização das audiências de custódia. Uma fase ainda mais complicada que a fase de “desmistificação inicial”. Porém, os modelos de referência em cada um dos estados onde as audiências de custódia já funcionam servem para aplacar dúvidas e lidar com os aspectos ainda desconhecidos dessa prática.
Ainda, faz-se necessária a promoção de vários ajustes, a fim de que o instituto da audiência de custódia não venha a ser descaracterizado, como rotineiramente ocorre com institutos despenalizadores que, sob a ação da cultura punitivista das instituições forenses, acabam relegados a formalidades inócuas. Em alguns locais onde as audiências de custódia foram instaladas, percebeu-se que o padrão das decisões pouco mudou, demonstrando que o contato imediato com o cidadão preso nem sempre é o que basta para vencer a insensibilidade do representante do Poder Judiciário e a utilização da prisão processual como panaceia universal. (2)
Por outro lado, a apuração judicial de agressão e violência policial ainda deixa muito a desejar, apesar de esse ser um dos objetivos principais das audiências de custódia. Dados colhidos pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) (3) na capital paulista demonstram que os juízes questionaram o preso sobre violência policial apenas em 42% dos casos. O Ministério Público, por seu turno, perguntou sobre a ocorrência de violência apenas em 8% dos casos, o que causa perplexidade, na medida em que essa é justamente a instituição constitucionalmente responsável pelo controle externo da atividade policial. Há, ainda, portanto, a cultura que normaliza a prática da brutalidade policial, internalizada pelo próprio Poder Judiciário e pelo Ministério Público.
Teremos que caminhar muito para vermos todo o Brasil, efetivamente, em toda a sua extensão territorial, realizando audiências de custódia. Teremos de caminhar mais ainda para que as audiências de custódia, gradualmente implementadas, com mais de duas décadas de atraso, pelo esforço de instituições jurídicas e movimentos sociais, não sejam desconfiguradas e engolfadas pelas vetustas práticas antidemocráticas que permeiam nossa justiça criminal. Mas um fato é incontestável: avançamos sobre um modelo de atuação que já não mais admite qualquer possibilidade de retrocesso. Um procedimento que, por sua essência, valoriza e prestigia o respeito à alteridade e a humanização do jurisdicionado, caminhando no sentido de atenuação do monstruoso processo de encarceramento em massa da pobreza e, quem sabe, contribuindo para que, um dia, o Brasil saia do “pódio da vergonha”, deixando de ser um dos países que mais encarceram no mundo.
Notas:
(1) O que a Resolução CNJ 213 fez foi reforçar, em verdade, o que o Supremo Tribunal Federal já havia desnudado na ADPF 347 e está na raiz do que se assenta como “estado de coisas inconstitucional”. É dizer, o culto a um “modelo” asséptico de legalidade tão superficial em que os atores do sistema de justiça foram forjados a atuar, e estão acostumados a lidar, serve de (con)causa e explica a razão pela qual o Brasil, nos dias de hoje, coloca-se entre as nações com um dos maiores contingentes prisionais do planeta.
(2) Dados preliminares compilados pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a título de exemplo, demonstram que, no período de setembro a outubro de 2016, na comarca de Jundiaí, os juízes responsáveis pela audiência de custódia converteram a prisão em flagrante em preventiva em 70% dos casos, o que, obviamente, demonstra que, mesmo com a implementação do instituto, diversos juízes permanecem firmes na opção por violar a Constituição Federal e o mandamento de excepcionalidade das prisões processuais. Por outro lado, nas comarcas de Osasco e da Capital, o índice de soltura, que orbitava em torno de 20%, subiu para cerca de 50% com a implementação das audiências de apresentação. O índice demonstra que a prisão processual ainda não é entendida como excepcional pelos juízes, mas o aumento do índice de solturas afigura-se como de extrema relevância na caminhada para a superação do encarceramento em massa (dados obtidos por meio da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, com base na Lei de Acesso à Informação).
(3) Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Monitoramento das audiências de custódia em São Paulo. São Paulo, 2015, p. 67.
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