INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 286 - Setembro/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Estatuto da Criança e do Adolescente. Ato infracional. Tráfico de drogas / entorpecentes. Valor probante da prova testemunhal.  Depoimento de policial.

Anexo da Infância e Juventude da Comarca de Itapevi/SP Processo 0002156-36.2014.8.26.0271 j. 05.05.2016

Vistos.

Não há elementos mínimos a autorizar a abertura de processo infracional em face do adolescente.

Trata-se de uma acusação de suposto tráfico de drogas, descoberto em razão de patrulhamento de rotina pela polícia.

Em sua oitiva informal perante o Ministério Público, o adolescente negou a traficância, sustentando que estava no local apenas para adquirir entorpecentes. “Quando indagado a respeito de seu depoimento prestado na Delegacia, afirmou ter ficado confuso” (fls. 70).

O fato é que se a suposta confissão policial não viesse a ser confirmada em juízo não haveria como se valer dela para um decreto condenatório. E, realmente, já deu indicativo claro o adolescente que não confessaria em juízo – posto que negou a traficância em oitiva informal.

Os imputáveis J. (fls. 12) e P. (fls. 13) permaneceram em silêncio na delegacia.

Assim, o que se teriam, na melhor das hipóteses, na fase judicial, seriam apenas as declarações dos próprios policiais que participaram da ocorrência.

E admissão de uma acusação baseada exclusivamente em testemunhos policiais viola as garantias do contraditório e da ampla defesa, inerentes ao nosso Estado Democrático de Direito – a par de vir embasada em uma concepção fantasiosa, para dizer o mínimo, acerca da atividade policial em tempos de guerra às drogas.

De fato, em um cenário em que há clara polarização, no qual os agentes estatais têm em suas consciências forjados dados entendimentos (muito pouco racionais) acerca da questão das drogas, em que o achismo impera sobre um conhecimento verdadeiramente embasado,(1) como seria realista esperar a necessária isenção ao agente policial que efetiva a prisão de um suposto traficante e está pautado por legitimar a sua própria conduta? E com isso não se está a falar propriamente em corrupção (que inegavelmente é um problema sabidamente sério). E isso, também, sequer focando na possibilidade de que haja certos incentivos, mesmo que inconscientes, para que a versão policial seja sempre muito “coerente”, bastando lembrar as cobranças por produtividade (leia-se, por prisões efetivadas, com, inclusive, a premiação respectiva ao policial).(2)

Não se pode fechar os olhos à realidade e ignorar o considerável risco de que dado agente – que é especialmente treinado para “combater o tráfico”, e não para ter uma avaliação equidistante dos fatos – possa, por exemplo, “concluir” pela prática de tráfico tanto em uma situação de efetiva mercancia por parte do suspeito quanto em dado cenário em que apenas visualize jovens descamisados correndo próximos de uma suposta “boca de fumo”, e, assim, procurar, para dar “melhor colorido” à sua conclusão, sustentar com mais “coerência”, tanto na polícia quanto em juízo, a narrativa de efetiva participação de tais ou quais indivíduos no comércio de drogas, apenas “aparando certas arestas” – mas que seriam, certamente, fulcrais para o convencimento das autoridades policial e judiciária.

Nesse sentido, confiram-se os seguintes trechos de esmerado voto vencedor perante o E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

A amplitude da defesa, ditada na Constituição Federal, decerto, em nome do princípio da proporcionalidade, impede que a prova criminal seja feita, exclusivamente, por quem interveio na causa em nome de uma das partes, ou mesmo daquele que a tenha assistido.

(...)

Não se perca de vista que, é da própria condição humana, relatar a situação pretérita segundo suas próprias conveniências, até para não se evidenciar como um usurpador do direito individual alheio, dando ensejo ao crime de abuso de autoridade.

(...)

Aqui e acolá, costuma-se justificar, para não dar foros de juridicidade aos argumentos antes dedilhados, que os policiais não são impedidos de depor. Para tanto, traz-se à colação, de quando em quando, a norma processual segunda a qual toda pessoa pode ser testemunha (cf. artigo 202 do CPP). Lamenta-se dizer, entretanto, que as coisas não se passam com essa santa simplicidade que se quer ver. No feliz ensinamento de Borges da Rosa, em face da propalada norma processual, ‘não podemos, em matéria criminal, falar em incapacidades de testemunhas. Isto, porém, não impede que falemos em defeitos de testemunhas, ou sejam, motivos de caráter pessoal que tornam os depoimentos de certos indivíduos ou pessoas não ou menos merecedores de crédito’ (In Processo penal brasileiro, Vol. 2°, p. 64).

É certo que os policiais não estão impedidos de depor - e isso nem se discute -, mas, porque prenderam certo acusado, seus exclusivos depoimentos não se apresentam idôneos para um definitivo esclarecimento da verdade processual, ou para embasar, com a segurança desejada, um justo édito condenatório do preso. Não são, certamente, imparciais.

Relembre-se que, em países com democracia solidificada, onde os direitos fundamentais do cidadão são levados a sério, nem mesmo se dá início à ação penal, se a prova nela espelhada só diga respeito a testemunhos policiais. Prefere-se prosseguir com as investigações, até ter-se uma conformação probatória adequada a respaldar o processo-crime. Aqui, de uns tempos para cá, ao se tratar de crime de tráfico, tudo ocorre de maneira diferente. Talvez pela lei do mínimo esforço, deixa-se ao largo uma investigação futura, bem dosada e emoldurando toda a sorte de provas, e se lança mãos de imediato da prisão em flagrante, nada importando se os testemunhos do estado de flagrância só digam respeito a policiais. Quer-se impor, a todo custo, a visão por eles mesmos preconcebida, sem adicionar-se um melhor e mais confiável conteúdo probante. E, este Sodalício deve-se negar a ser carimbador da legalidade de uma situação dessa.”

(0050041-74.2007.8.26.0050, Apelação Criminal com Revisão, Relator(a): Sydnei de Oliveira Jr., Órgão julgador: 7ª Câmara de Direito Criminal, Data do julgamento: 18/09/2008).

Confiram-se, ainda, os seguintes trechos de parecer da lavra do procurador de justiça Plínio A. B. Gentil, do Ministério Público do Estado de São Paulo (Ap. n. 0000024-56.2015):

“Os depoimentos de agentes da polícia, que atuaram na investigação, mesmo se prestados em juízo, não podem ter natureza de prova, podendo, quando muito, reforçar uma prova já existente e obtida conforme o padrão fixado pelo citado artigo 155. Não é que se duvide da sinceridade das testemunhas policiais. Nem que policiais estejam impedidos de depor. Nem tampouco que se imagine que eles depõem influenciados pelas diligências de que participaram antes. É que esses depoimentos inevitavelmente representarão uma reprodução, em sede judicial, de fatos que já cumpriram a sua finalidade com o oferecimento da denúncia ou da queixa. Eles já não podem ser valorados como prova e sim como elementos informativos que são, pois oferecidos ao juiz pelos próprios protagonistas da ação administrativa estatal de fornecer dados para o titular da ação penal. Não importa que sejam repetidos em juízo, porquanto o lugar, ou a fase procedimental, em que isto se dá não retira a sua qualidade de dados informativos.

Fora isto, a admissão pura e simples, como prova, da confirmação de seus relatos anteriores, feita pelos agentes da persecução, em sede judicial, reconhece a inocuidade de todo o processo, no limite autorizando aceitar que o trânsito em julgado da condenação já floresça diretamente da prisão em flagrante, dispensando-se, por conseguinte, todo o custoso e desgastante aparato estatal e defensivo (Judiciário, Ministério Público, Defesa etc.), o que não pode, evidentemente, ser tido como compatível com um Estado Democrático de Direito.

(...)

Para finalizar, já é hora de polícia e Ministério Público se habituarem a cercar de maior consistência a colheita de provas no que concerne a acusações dessa espécie. Não é razoável continuar entendendo que basta a uma desejada condenação a palavra isolada dos agentes que efetuaram a prisão – e mais nada. Com tantos recursos tecnológicos hoje disponíveis, é vem possível ajuntar outros elementos à simples informação (padronizada) de que fulano ou sicrano foi flagrado com isto ou aquilo e que confessou informalmente o crime (quando há confissão). Nisto se resume a produção de elementos informativos, aos quais equivocamente se pretende, mais tarde, em sede judicial, dar estrutura de prova.

Relatórios da autoridade policial e denúncias do promotor têm se acostumado a conformar-se com apenas isso. Assim fosse, de nada valeria todo o processo. É preciso, pois, vencer tal precariedade e ir à busca de prova de verdade, como assim considerada por lei. Não se está de outro jeito – sem embargo de entendimentos contrários – a prestar serviço à justiça, compreendida como instrumento de realização de igualdade e de (alguma) estabilidade social.”

E o referido parecer reproduz, também, outros julgados no mesmo sentido deste Tribunal de Justiça: “(...) (TJSP – 7ª Câm. – Ap. Cr. n. 1.465.651/6 – Com. de Campinas – j. 19/5/2005 – v.u.) (...) (TJSP - 15ª Câm. – Ap. Crim. n. 993.08.030764-4 – Com. de Sorocaba – Rel. Roberto Mortari – j. 09/dez./2008 – v.u.)”.

E quanto ao ato infracional relativo à posse de entorpecente para uso próprio, entendo que se trata de fato atípico, posto que inconstitucional a repreensão a uma conduta inserida na órbita da liberdade e autonomia individual, ou, quando muito, uma conduta auto-lesiva.

Pelas razões supra, DEIXO DE RECEBER a representação oferecida pelo Parquet.

Int.

Notas

(1) Nessa linha, nosso Criminologia do achismo. Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 253, p. 14, 2013.

(2) Em todos esses sentidos já se posicionou a doutrina: Valois, Luís Carlos. O direito à prova violado nos processos de tráfico de entorpecentes. In: Shecaira, Sérgio Salomão. (Org.). Drogas: uma nova perspectiva. São Paulo: IBCCRIM, 2014. p. 112-116. O autor, inclusive, reproduz trecho de um artigo de um ex-policial americano que declara que “mentir é comum na cultura policial” (p. 115). Com isso, não se está a sustentar uma ampla aleivosia por parte de toda uma classe de profissionais, apenas se está a chamar a atenção para a realidade e para os dados que esta nos fornece, destacando que em um contexto de “guerra às drogas” é certamente temerário fiar a liberdade de alguém única e exclusivamente na versão apresentada por aquele que é destacado especialmente para “vencer tal guerra”.

Roberto Luiz Corcioli Filho
Juiz de Direito.



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