José Carlos Abissamra Filho
Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos
O ano de 2016 constitui um marco importante para a política de drogas. No plano internacional, realizou-se em abril a Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU sobre o Problema Mundial das Drogas (UNGASS), que avaliou avanços e desafios do sistema internacional de controle de drogas.(1) No Brasil, a
Lei 11.343/2006 completará 10 anos em vigor em meio a críticas, incertezas e questionamentos no Supremo Tribunal Federal.
Não é apenas uma coincidência. A atual Lei de Drogas, a despeito de importantes avanços, sobretudo em seus aspectos extrapenais, refletiu a tendência regional de incremento significativo das sanções atribuídas ao tráfico de drogas.(2) O recrudescimento generalizado das penas, por sua vez, encontrou fundamento e suporte no sistema internacional de controle de drogas, cujos pressupostos estão agora sendo colocados em xeque por parte significativa dos países. Se a realização da UNGASS representou um importante momento de reflexão sobre os rumos da política de drogas mundial, é fundamental aproveitar a ocasião para avaliar a lei brasileira tendo como pano de fundo a crise do sistema internacional de controle de drogas.
Voltemos um pouco no tempo. Em 2005, o Governo Federal aprovou a Política Nacional sobre Drogas (PNAD), contendo disposições bastante avançadas para a época. Nela estão presentes conceitos que ainda hoje não são reconhecidos em boa parte do mundo, como redução de riscos e de danos, não estigmatização das pessoas usuárias de drogas e garantia de tratamento adequado. Ao mesmo tempo, o documento estabelece a meta de “buscar, incessantemente, atingir o ideal de construção de uma sociedade protegida do uso de drogas ilícitas e do uso indevido de drogas lícitas”.(3)
Naquele mesmo ano, retomou-se a discussão parlamentar sobre um novo diploma legal para substituir a Lei 6.368/1976, então vigente. A nova legislação teria entre seus principais objetivos o de diferenciar melhor o uso do tráfico ilícito de drogas: aos primeiros, era necessário garantir um sistema de proteção e tratamento; os segundos deveriam ser punidos de maneira severa, atendendo ao clamor da sociedade.(4)
De fato, a diferenciação entre usuários e traficantes deu o tom da nova legislação de drogas no país. De um lado, a Lei 11.343/2006 estabeleceu diretrizes para prevenção, tratamento e reinserção social de dependentes químicos, reconheceu expressamente as ações de redução de danos e trouxe uma importante novidade no cenário jurídico brasileiro ao deixar de sancionar com pena de prisão as condutas previstas em seu art. 28. De outro, previu sanções consideravelmente mais altas para os crimes de produção e tráfico, impedindo a substituição da privação de liberdade por penas restritivas de direitos, além da proibição de se conceder fiança, sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória aos acusados de tais delitos.
Tais contradições não passaram despercebidas por este Instituto. Vários colaboradores do Boletim expressaram sua preocupação com a manutenção do paradigma da guerra às drogas,(5) com a supressão de direitos processuais que violam princípios e normas das declarações universais de direitos(6) e com o provável fracasso da estratégia simultânea de despenalização do uso e endurecimento do tráfico.(7)
Por tudo isso, a Lei 11.343/2006 foi tida como “retrocesso travestido de avanço”.(8)
É certo que a lei brasileira refletiu as ambiguidades do sistema internacional. As convenções da ONU sobre o tema, com o propósito de proteger a saúde e o bem-estar da humanidade,(9) determinam que as leis nacionais reflitam a especial gravidade do crime de tráfico de drogas.(10) Foi com base nessa autorização que muitos países aumentaram suas penas ou, de maneira ainda mais drástica, conduziram estratégias repressivas que culminaram em execuções judiciais e extrajudiciais, prisões arbitrárias e desmantelamento de serviços de atenção e cuidado a pessoas com problemas decorrentes do uso de drogas.
Naturalmente, o rigor da lei e das forças de segurança não é distribuído de maneira equilibrada na sociedade. Aqui, como em todos os países, o aumento das penas aplicáveis e a supressão de garantias processuais atingem, em sua quase totalidade, os escalões subalternos da economia do crime. Já em 2009, relatório produzido pela UFRJ e UnB identificou que “os pequenos e microtraficantes representam os elos mais fracos da estrutura do comércio de drogas ilícitas, e sofrem toda a intensidade da repressão”.(11)
Tal constatação é reforçada por pesquisas que demonstram a pequena quantidade de droga apreendida nas prisões em flagrante.(12)
Além disso, prende-se cada vez mais. A proporção de pessoas presas por tráfico de drogas em relação ao total de presos aumentou de 14% em 2005 para 26% em 2013.(13) Entre as mulheres, em um cenário de aumento de 567% no número absoluto de mulheres presas nos últimos 15 anos, a proporção de condenadas por crimes de drogas saltou de 49% em 2005 para 61% em 2013.(14)
Apesar dos importantes avanços simbólicos da Lei 11.343/2006, a realidade que se impôs foi condizente com os resultados da guerra às drogas na América Latina em geral: superencarceramento, mitigação de garantias processuais e cristalização da figura do traficante como inimigo público, a justificar execuções extrajudiciais, incursões violentas em comunidades vulneráveis e toda sorte de violações de direitos humanos.
Não por acaso, países latino-americanos apresentaram a proposta de realizar a UNGASS em 2016, a fim de questionar os rumos do sistema internacional de controle de drogas. O documento final do encontro foi considerado decepcionante por muitos, mas é preciso celebrar a linguagem precisa e decisiva com que postulou a necessidade de que processos judiciais para crimes de drogas atendam ao devido processo legal, respeitem as garantias individuais e que as condenações levem em consideração critérios de proporcionalidade, entre outros importantes aspectos referentes ao sistema de justiça. Tais avanços não são triviais: trata-se do reconhecimento de que os direitos humanos e garantias fundamentais não podem ser colocados em risco sob pretexto algum.
Nos últimos 10 anos, a Lei 11.343/2006 viu questionada a constitucionalidade de vários de seus artigos. O STF retirou a vedação abstrata à liberdade provisória e à substituição da pena de prisão por alternativas penais, e, recentemente, afastou a hediondez do tráfico privilegiado. Segue em discussão a constitucionalidade do art. 28. Independentemente do resultado do julgamento, é certo que os avanços dependem da atuação do Supremo, pois há pouco o que esperar do Parlamento mais conservador de nossa história democrática.
Os próximos anos devem ser interessantes no campo internacional. Na esteira da UNGASS, o mundo se prepara para a revisão da Declaração Política em 2019. No Brasil, o desafio será requalificar as noções de fracasso e sucesso das políticas de drogas. Que o balanço dos 10 anos da Lei de Drogas ensine a lição que já deveríamos ter aprendido: prisões e violações de direitos humanos jamais serão capazes de garantir a saúde e o bem-estar da humanidade.
Notas
(1) Resolução 67/193 da Assembleia Geral da ONU.
(2) Guzmán Rodriguez, Esther et alli (2012). La adicción punitiva: la desproporción de las leyes de drogas en América Latina. Colômbia: DeJusticia, p. 26. Disponível em:
(3) Resolução 3/GSIPR/CH/CONAD, de 27.10.2005. Vale notar que o objetivo de alcançar uma “sociedade livre de drogas” foi definido pela ONU em 1998, por meio de Declaração Política adotada pela Assembleia Geral. A despeito da evidente impossibilidade de alcançá-lo, o mesmo objetivo foi reiterado pela Declaração Política de 2009. A UNGASS 2016 amenizou a linguagem, mas, ainda assim, comprometeu-se a buscar umasociedade livre do abuso de drogas.
(4) Campos, Marcelo da Silveira (2015). Pela metade: as principais implicações da nova Lei de Drogas no sistema de justiça criminal em São Paulo. Tese de doutorado em Sociologia pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), p. 53-54.
(5) Taffarello, Rogério F. (2006). Nova (?) Política Criminal de Drogas: primeiras impressões. Boletim IBCCrim, n. 167, p. 2-3, out. 2006.
(6) Karam, Maria Lúcia (2006). A Lei 11.343/06 e os repetidos danos do proibicionismo. Boletim IBCCrim, n. 167, p. 6-7, out. 2006.
(7) Boiteux, Luciana (2006). A nova lei antidrogas e aumento de pena do delito de tráfico de entorpecentes. Boletim IBCCrim, n. 167, p. 8-9, out. 2006.
(8) Maronna, Cristiano A. (2006). Nova Lei de Drogas: retrocesso travestido de avanço. Boletim IBCCrim, n. 167, p. 4, out. 2006, p. 4.
(9) United Nations, Preamble of the 1961 Single Convention on Narcotic Drugs.
(10) United Nations, 1988 UN Convention against Illicit Traffic in Narcotic Drugs and Psychotropic Substances, art. 3.4(a).
(11) Boiteux, Luciana et al. (2009). Relatório de Pesquisa “Tráfico de Drogas e Constituição”, Projeto Pensando o Direito. Brasília: Ministério da Justiça/PNUD, p. 43. Em pesquisa de 2011, o NEV-USP identificou que a grande maioria das prisões por drogas em São Paulo foram efetuadas em flagrante, na via pública e em patrulhamento de rotina, e que os presos estavam sozinhos e desarmados. O perfil educacional das pessoas presas não deixa dúvidas sobre quem arca com o peso da repressão: 80% possuem, no máximo, ensino fundamental (Prisão Provisória e Lei de Drogas, coord. Maria Gorete Marques de Jesus).
(12) Carlos, Juliana (2015). Política de drogas e encarceramento em São Paulo, Brasil. IDPC, Relatório de Informações, set. 2015, p. 1-15; Uille Gomes, Maria Tereza (2014). Estudo técnico para a sistematização de dados sobre informações do requisito objetivo da Lei n. 11.343/2006. Curitiba: Secretaria de Estado da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos.
(13) Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (Infopen).
(14) Idem.
IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - Rua Onze de Agosto, 52 - 2º Andar - Centro - São Paulo - SP - 01018-010 - (11) 3111-1040