INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 286 - Setembro/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

Direito Penal. Tráfico de drogas / entorpecentes. Bem jurídico. Lesão ao bem jurídico protegido. Atipicidade. Princípio da insignificância.

1.ª Câm. Crim. AP 0002002-52.2009.8.26.0575 j. 19.05.2014 – public. 02.06.2014 Cadastro IBCCRIM 3497

1. J. P. S. foi condenado, como infrator do artigo 33, caput, da Lei nº 11.343/2006, ao cumprimento da pena privativa de liberdade de sete anos, onze meses e vinte e nove dias de reclusão em regime inicial fechado, e ao pagamento de quinhentos dias-multa, no valor unitário mínimo. (...)

2. Consta da denúncia que, nas condições de tempo e local descritas, o acusado trazia consigo duas porções de cocaína com peso inferior a nove decigramas, destinadas ao tráfico e ao consumo de terceiras pessoas, sem autorização e em desacordo com determinação legal e regulamentar. Apurou-se que, diante da manifestação de interesse da testemunha S. em adquirir drogas, J. P. apanhou as duas porções que tinha consigo, para entregá-las a S.. Nesse momento, policiais militares que passavam pelo local notaram a atuação do réu, que, assustado com a presença deles, dispensou a droga no solo. Os milicianos então diligenciaram até encontrarem a apreenderem as duas porções de cocaína.

3. Verifica-se do exame dos autos que a conduta descrita na inicial não ofendeu o bem jurídico(1) tutelado pela lei penal de forma relevante e grave a justificar a imposição de uma pena criminal, fato que deve determinar a absolvição do acusado por atipicidade material, nos termos do inciso III do artigo 386 do Código de Processo Penal.

4. A intervenção penal - via mais rigorosa de controle social formal -

deve restringir-se aos casos de estrita necessidade, quando em causa graves afetações a bens fundamentais à vida em comunidade. Ou seja, consideradas as sérias restrições aos direitos fundamentais ínsitas à sanção penal, a imposição da pena criminal deve dar-se como ultima ratio, aplicável nos casos de lesões intoleráveis, quando esgotados ou ineficazes meios outros, não penais, à proteção dos elementos essenciais ao viver.

(...)

Mas, acima de tudo, que, em cada caso concreto, só sejam censuradas criminalmente condutas socialmente danosas, que, de fato, lesionem, de forma relevante, o bem protegido (razão de ser da incriminação).(3) (4) Do contrário, a alargada referência de que o Direito Penal só encontra legitimidade para a proteção de bens jurídicos tornar-se-ia mera retórica, letra morta.

(...)

5. O princípio da insignificância constitui justamente a materialização da acepção de que lesões ou riscos de pequena monta, de reduzido desvalor, não podem ser legitimamente alcançadas pela repressão criminal. Mais do que isso: se o exercício do poder punitivo, consoante já dito, só se justifica nos casos de “mais grave afetação à coexistência”, inviável considerar-se abarcadas pela proibição lesões ínfimas ou perigos de dano irrelevantes, sem danosidade social, que não põem em causa o bem tutelado.

Claus Roxin concebeu o princípio enquanto critério para a determinação do injusto a partir do brocardo “minima non curat praetor”, ressaltando que “atualmente só se pode proibir uma conduta com uma pena quando ela resulta de todo incompatível com os pressupostos de uma vida em comum pacífica, livre e materialmente assegurada. O moderno Direito Penal não se vincula mais com a imoralidade da conduta, senão à sua danosidade social é dizer, a sua incompatibilidade com as regras de uma próspera vida em comum”.(5) (6)

(...)

7. Portanto, o compromisso a sério com a premissa de que uma incidência penal (válida) deve adstringir-se à proteção dos bens fulcrais à coexistência implica, necessariamente, que uma conduta só seja considerada típica (leia-se, abarcada pela proibição penal) acaso vulnere, de forma relevante, o bem alvo de tutela. Em não sendo assim, estar-se-ia a admitir a proibição pela simples proibição, a imposição de uma pena pela mera contrariedade formal à previsão legal.

8. (...) Doutrina majoritária(8) e jurisprudência(9) brasileiras se pronunciam pela inadmissibilidade de incidência do princípio da insignificância em delitos de drogas, por se tratar de crimes de perigo abstrato ou presumido, categoria essa adotada pelo Supremo Tribunal Federal.

(...) A doutrina tradicional conceitua o perigo abstrato como aquele presumido iuris et de iure, diferentemente do perigo concreto, que exige comprovação.

Nota-se que diversas decisões judiciais não reconhecem o princípio da insignificância em crimes de perigo abstrato, motivadas por esse impedimento colocado pela doutrina tradicional e na linha de precedentes jurisprudenciais que simplesmente fazem referência genérica e acrítica à suposta inadequação desse princípio com a aludida potencialidade lesiva intrínseca dessas ações.

No entanto, essa presunção absoluta de perigo citada pela jurisprudência majoritária necessita ser revista, sob pena de se punirem condutas tidas como presumivelmente perigosas, mas que, antes de mais, não deveriam sequer estar sujeitas à intervenção do Direito Penal, por serem incapazes de gerar qualquer risco relevante ao bem jurídico tutelado.

Lembra a Professora Helena Regina Lobo da Costa(10) que “as teorias da presunção afirmam que o crime de perigo abstrato é uma presunção de perigo criada pelo legislador, a partir da avaliação de fatos concretos. Originalmente, essa presunção era considerada iuris et de iure. Hoje, muitos partidários dessa corrente consideram que a presunção absoluta não é legítima no direito penal, defendendo a sua classificação como iuris tantum [nota de rodapé: Como por exemplo, ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de derecho penal: parte general, cit., v. 3, p. 259. TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal, cit., p. 226]. Essas teorias costumam ser criticadas em razão de a presunção, mesmo que relativa, violar o princípio ‘in dubio pro reo’ e, também, porque converteriam judicialmente crimes de perigo abstrato em crimes de perigo concreto, contrariando a previsão legislativa.”

(...)

A corroborar esse entendimento, especificamente no que respeita ao crime de tráfico de drogas, Gustavo Octaviano Diniz Junqueira e Paulo Henrique Aranda Fuller(12) esclarecem: “(...)mesmo os crimes de perigo devem ser compreendidos a partir da existência de real e relevante risco ao bem. Se a quantidade não for capaz de causar relevante risco ao bem, entendemos que o fato sempre é irrelevante penal, em face do princípio da insignificância” (grifado, notas de rodapé suprimidas).

9. Ressalta-se que o Supremo Tribunal Federal já aplicou esse princípio em delito previsto na lei de drogas, destacando que a quantidade ínfima da substância ilícita apreendida com o agente (0,6 gramas) afastava a lesividade da conduta ao bem jurídico saúde pública.(13) Conquanto tal decisão tenha sido proferida em ação penal instaurada por porte ilegal de drogas para consumo próprio, o bem jurídico protegido é o mesmo - saúde pública(14) e, igualmente, não se mostrou ofendido ou em risco pela ação imputada ao apelante.

No precedente supra mencionado, a Suprema Corte acolheu parecer do Ministério Público Federal, no sentido da aplicabilidade do princípio da insignificância a delitos classificados como de perigo abstrato, nos seguintes termos: “(...) o fato de o tipo descrito no artigo 28 da Lei 11.343/06 configurar um delito de perigo abstrato não pode impedir, absolutamente, a aplicação do postulado da insignificância. Isso porque, mesmo nesses casos, não se afasta a necessidade de aferição da lesividade da conduta, ou seja, se capaz ou não de atingir, concretamente, o bem jurídico resguardado pela norma. É indispensável, pois, que se demonstre a aptidão da conduta em lesar o bem jurídico (...)

(...)

12. (...) Frise-se não haver espaço, no juízo de aferição da tipicidade penal, para valoração moral sobre a gravidade abstrata do delito de tráfico de drogas, tampouco para juízo dedutivo sobre a possibilidade ou probabilidade de que o pequeno traficante possua outras quantidades maiores de drogas supostamente ocultas ainda não apreendidas, como se costuma argumentar na tentativa de afastar a insignificância de um determinado fato em tais casos. Não se perca de vista que, em um Direito Penal do fato, a persecução volta-se em relação a um fato concreto supostamente delituoso.

(...)

14. Por fim, saliente-se que, no Brasil, a pena mínima cominada para a infração ao artigo 33 da Lei nº 11.343/2006 é de cinco anos de reclusão e 500 dias-multa, independentemente da quantidade de drogas apreendida com o acusado. Cuida-se de previsão legal resultante de técnica legislativa que, ao ser aplicada no caso concreto, imprescinde do exame dos fatos pelo julgador à luz do princípio da proteção do bem jurídico, a fim de se apurar se a conduta posta em julgamento realmente merece ser punida penalmente com tamanha intensidade refletida na hipótese normativa. Deixar de fazer essa valoração jurídica poderia eventualmente conduzir este Tribunal de Justiça a apenar excessivamente o imputado em afronta, inclusive, ao princípio da proporcionalidade (30) (...)

15. Assim, não se pode afirmar, no caso dos autos, que o fato descrito na inicial acusatória expôs a perigo a saúde pública, vista como “situação de bem estar físico e psíquico da coletividade”.(32) Com efeito, além de mínima a quantidade de substâncias apreendidas (menos de nove decigramas no total, que continha cocaína e xilocaína, a qual não se encontra sequer prevista na Portaria nº 344 do SNVS do MS, cf. fls. 09), dizem a denúncia e três testemunhas (cf. fls. 233/234 e 236) que o réu não chegou a transferir a droga aos possíveis compradores, pois a dispensara no solo logo após notar a aproximação dos policiais. Acrescente-se que J. P. e uma testemunha afirmaram que ele era usuário de drogas havia sete ou oito anos, bem como dependente de crack na data dos fatos (cf. fls. 237 e 288). O réu asseverou, ainda, que venderia aquela pequena quantidade de narcótico para o fim exclusivo de obter dinheiro necessário para sustentar sua dependência no outro tipo de droga (cf. interrogatório de fls. 288).

Dessa maneira, a partir da premissa de que o Direito Penal se restringe à tutela de bens jurídicos essenciais à coexistência, quando ofendidos ou colocados em risco por condutas graves, resta claro, no presente feito, que a ação imputada ao réu é atípica, tornando de rigor o decreto absolutório, nos termos do artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal.

Uma vez reconhecida a atipicidade do fato, resta prejudicada a análise das teses defensivas suscitadas nas razões recursais.

16. Ante o exposto, por este voto, dá-se provimento ao apelo defensivo, para absolver o recorrente do delito imputado, com arrimo no inciso III do artigo 386 do Código de Processo Penal.

Notas

(1) Adota-se, neste voto, o conceito de “bem jurídico” apontado por Luís Greco, segundo a teoria dualista: (...)Leciona o autor que o relevante é que “este interesse, valor, unidade funcional, pretensão de respeito etc. seja de importância fundamental para alguém, de modo que a existência ou o bem-estar deste alguém estariam severamente ameaçados caso a incriminação inexistisse. (...) para esta concepção, [dualista] há bens jurídicos tanto individuais, quanto coletivos, e não se pode reduzir os bens jurídicos individuais à sua dimensão de interesse coletivo e nem vice-versa os bens jurídicos coletivos à sua dimensão de interesse individual. Bens jurídicos individuais e coletivos seriam ambos igualmente legítimos e admissíveis. (...) Podemos falar em interesses, funções, dados, elementos, no que quisermos. Prefiro usar o termo ‘dados’, pela sua maior conotação fática: bens jurídicos seriam, portanto, dados fundamentais para a realização pessoal dos indivíduos ou para a subsistência do sistema social, nos limites de uma ordem constitucional.” (Revista Brasileira de Ciências Criminais 49, julho-agosto de 2004, Ed. RT, “‘Princípio da ofensividade’ e crimes de perigo abstrato Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito”, pp.101/102, grifado).

(...)

(3) Juarez Tavares, ao retratar o injusto penal, realça que “em face das exigências políticas que se codificaram tanto no direito interno quanto nos pactos internacionais, no sentido de assegurar-se a realização plena das potencialidades do sujeito, o preenchimento dos elementos do injusto penal deve subordinar-se ainda a que a restrição da liberdade constitua sempre uma exceção, somente justificável em casos definidos de necessidade e desde que atendidas, complementarmente, as condições de proporcionalidade e adequabilidade da intervenção, quer dizer, dentro dos critérios de intervenção mínima e demonstração de efetiva lesão ou perigo concreto de lesão a um bem jurídico, que traz embutida a demonstração da danosidade social da conduta” (Teoria do injusto penal, Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 120).

(4) Parte da doutrina faz menção, enquanto critérios a pautarem o legítimo exercício do jus puniendi, à dignidade e à carência de tutela penal. Pelo critério da dignidade, o bem alegadamente protegido deve ser, realmente, merecedor de tutela pelo meio mais gravoso de incidência por tratar-se de bem fulcral à coexistência e a conduta incriminada deve, de fato, ser idônea a afetar e por em causa o bem tutelado (gravosidade social do comportamento). Já pelo critério da carência, imperioso que a ingerência penal revelese necessária e adequada à tutela do bem. Pelo parâmetro da necessidade, só é possível lançar-se mão da intervenção penal quando inexistentes meios outros, menos gravosos, idôneos e eficazes à tutela; e, pela adequação, deve o direito penal ser uma via hábil ao amparo do bem, sem que tal implique custos desmedidos aos direitos e liberdades fundamentais. Critérios que, segundo Manuel da Costa Andrade, dão cor aos princípios da subsidiariedade e da ultima ratio do Direito Penal. (A «dignidade penal» e a «carência de tutela penal» como referências de uma doutrina teleológico-racional do crime, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2, fascículo 2, abril-junho 1992).

(5) Introducción al derecho penal y al derecho penal procesal, Espanha: Ariel derecho, 1989, p.21.

(6)Visão, aliás, em consonância com a concepção de “tipicidade conglobante” de Eugenio Raúl Zaffaroni. Leciona o autor que “La insignificancia de la afetación exluye la tipicidad, pero la misma sólo se puede establecer a través de la consideración conglobada de la norma: todo el orden normativo persigue una finalidade, tiene un sentido, que es el aseguriamento jurídico para possibilitar uma co-existencia que evite la guerra civil (la guerra de todos contra todos). La insignificancia sólo puede surgir a luz de la función general que da sentido al orden normativo y, por consecuencia, a la norma en particular, y que nos indica que esos supuestos están exluidos de su ámbito de proibición, lo que es imposible de establecer a la simple luz de su consideración aislada”. (Tratado de derecho penal: parte general, Editora Ediar, p. 555)

(...)

(8) Dentre outros, Guilherme de Souza Nucci, “Leis Penais e Processuais Penais Comentadas”, Ed. RT, 2010, p. 362.

(9) Dentre outros, AC 0000.009-61.2012.8.26.0318, 3ª Câmara de Direito Criminal, Desembargador Relator Amado de Faria, j. em 26 de novembro de 2013: “(...) PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA INAPLICABILIDADE. Por se tratar de crime de perigo abstrato, incabível a aplicação do princípio da bagatela no crime de tráfico de drogas, ainda que a quantidade de droga destinada ao tráfico seja ínfima. Lesão ao bem jurídico saúde pública que independe de prova de sua efetiva violação. (...)”

(10) “Proteção Penal Ambiental: viabilidade efetividade tutela por outros ramos do direito”, Ed. Saraiva, São Paulo, 2010, p. 36

(...)

(12) Legislação Penal Especial, Vol. 1, Ed. Saraiva, São Paulo, 2010, p. 284.

(13) HC 110.475/SC, 1ª Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, j. em 14 de fevereiro de 2012

(14) A despeito do entendimento respeitável de parte da doutrina de que o delito de porte de drogas para consumo próprio consiste em autocolocação em risco e não sujeito à incriminação penal (Claus Roxin, “Crimes de Posse”, Revista Liberdades nº 12, janeiro/abril de 2013), é certo que, no sistema brasileiro delineado pela Lei nº 11.343/2006 esse tipo penal está previsto com vistas a tutelar a saúde pública, conforme lembrado por Gustavo Octaviano Diniz Junqueira e Paulo Henrique Aranda Fuller: [o objeto jurídico do artigo 28 da Lei Antidrogas] “continua a ser, como no art. 16 da revogada Lei n. 6.368/76, a saúde pública. É que não seria, a nosso ver, constitucional proteger a integridade física do próprio usuário, visto que a autolesão não é punida, dada a autonomia individual.” (Legislação Penal Especial, Vol. 1, Ed. Saraiva, São Paulo, 2010, p. 265.

(...)

(30) Fernando Gómez Recio assinala, dentre as condições em que se decompõe o princípio da proporcionalidade: “bem jurídico socialmente relevante: o direito penal deveria atuar unicamente quando resultem atacados bens ou valores básicos para a convivência social, e que se desprendam diretamente dos valores constitucionais. E deveria atuar não em todos os casos, mas sim somente naquelas hipóteses em que o ataque ao bem jurídico tenha uma mínima significação. Necessidade: só se justifica o recurso ao direito penal quando não existir outro meio alternativo menos gravoso para os direitos fundamentais que possa conseguir os mesmos fins. O direito penal é e deve ser a ‘ultima ratio’” (ob. cit. p. 954, tradução livre). O autor ainda critica a existência de penas mínimas tão altas para delitos de drogas, destacando a desproporcionalidade: “(...) “uma pena mínima tão elevada colide frontalmente com a realidade social do meio em que as leis hão de ser aplicadas, até o ponto que podem aparecer como notoriamente desproporcionais em relação a determinados casos concretos” (ob. cit. p. 968, tradução livre).

(...)

(32) Cf. Luiz Regis Prado, ob. cit.

Márcio Bartoli
Relator.



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