INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 286 - Setembro/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Tribunal Regional Federal da 1.ª Região

Direito Penal. Tráfico internacional de drogas / entorpecentes. Planta ou semente sem o princípio ativo entorpecente. Uso para fins terapêuticos / medicinais. Causas de justificação. Estado de necessidade.

4.ª Vara Federal do Estado do Pará IP 15482-69.2014.4.01.3900 j. 23.04.2015 – public. 04.05.2015

(...)

Decido.

A denúncia imputou ao denunciado a suposta prática de crime de tráfico de drogas, em razão de ter adquirido no Reino Unido 20 (vinte) sementes da substância entorpecente denominada Cannabis Sativa, com peso total de 5g (cinco gramas), conhecida popularmente como “maconha”, apreendida pela Receita Federal do Brasil, em São Paulo, junto aos Correios.

Em percuciente análise dos autos, abstraindo-se a questão da ínfima quantidade de sementes da erva adquirida pelo denunciado (20 sementes, pesando cerca de 5g - cinco gramas), evidencia-se sobejamente, diante dos elementos probatórios trazidos aos autos, em defesa prévia, que a aquisição, via Correios, do Reino Unido, dessas 20 sementes, por parte do denunciado, tinha como único e exclusivo fim medicinal.

Com efeito, T. S. T. C., esposa do denunciado, quando estava grávida, em estado adiantado, começou a sentir fortes dores pelo corpo, o que ensejou a decisão dos médicos de antecipar o parto, para uma melhor investigação do que estava ocorrendo, nascendo assim a filha do casal, G. T. C., prematura de oito meses, e com saúde frágil, sendo encaminhada à UTI Neonatal.

Duas semanas após o parto, no ano de 2010, a esposa do denunciado ainda sentia muita dores, quando foi diagnosticado que a mesma apresentava um tumor maligno no ovário e precisava passar por cirurgia de urgência para retirada de todo o seu aparelho reprodutivo (histerectomia), passando a submeter-se a um longo e penoso tratamento de quimioterapia, cujos efeitos colaterais foram drásticos provocando-lhe extrema debilidade, parando de se alimentar, perdendo muito peso, além das fortes dores pelo corpo, náuseas, etc., tendo seu oncologista inclusive decidido alterar os intervalos de tempo entre algumas das sessões do coquetel quimioterápico.

Diante desse quadro, sucintamente relatado e provado nos autos pelos fartos documentos médicos juntados, o denunciado, em atitude de desespero, após tomar conhecimento sobre tratamentos alternativos e na ânsia de minorar o sofrimento de sua esposa, descobriu que médicos americanos prescrevem Cannabis Sativa para combater os efeitos maléficos colaterais e drásticos da quimioterapia e as próprias células cancerígenas, já havendo autorização em vários países para o uso da erva com essa finalidade, resolveu fazer uso desse tratamento alternativo com a referida erva, como tratamento auxiliar de sua esposa, alcançando resultados bastante satisfatórios, já que cessaram as dores no corpo e as náuseas que sua esposa sentia, com significativo aumento de apetite, tendo ela voltado a se alimentar adequadamente.

A finalidade altruísta e humanitária que moveu o denunciado J., ao adquirir as sementes no Reino Unido, qual seja, para o exclusivo fim medicinal, em face à grave moléstia que foi sua esposa acometida apresenta-se induvidosa nos autos, de modo a tornar irrelevante até mesmo o fato de ter ele se utilizado de pseudônimo de Francisco Alves, por discrição e para preservar sua esposa, como espontaneamente declarou perante a autoridade policial, ocasião em que relatou de forma consistente que esse era o seu único objetivo em adquirir as sementes da referida droga.

A propósito, releva acentuar, robustecendo a veracidade do que afirma o denunciado, além dos fartos documentos médicos acostados aos autos, o fato de ter sua esposa, T. C., participado, como relatora, no IV Simpósio Internacional sobre Cannabis Medicinal, à convite do professor Elisaldo Carlini médico representante do Brasil nas comissões de drogas da Organização Mundial de Saúde e das Nações Unidas, ocorrido nos dias 15, 16 e 17/05/2014, na Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, conforme certificado de fl. 292.

Acrescente-se, ainda, que, a experiência de T. no uso da Cannabis Sativa para lhe ajudar, com eficácia, no combate aos graves efeitos colaterais da quimioterapia, foi também objeto de matéria ilustrada na revista Isto É, edição de 28/05/2014 (fls. 293/294).

Todos esses importantes fatos, corroborados pela robusta documentação carreada aos autos, deixam induvidosa a assertiva de que o denunciado não tinha qualquer intenção de comercializar a droga, já que foi movido por sentimento de compaixão e solidariedade por sua esposa, quando adquiriu as sementes da erva unicamente para fins medicinais, de modo a restar evidenciada a atipicidade de conduta, por ausência do elemento subjetivo exigido pelo tipo penal em comento, qual seja o dolo do agente.

Ademais, patente a causa excludente de ilicitude, em razão de ter o denunciado, em tese, praticado o delito em estado de necessidade (CP – art. 23, I), já que agiu diante de perigo atual, inevitável e que não deu causa, visando proteger bem jurídico alheio (estado de necessidade de terceiro, sua esposa), não sendo razoavelmente exigível, nas circunstâncias concretas, outra conduta.

Frise, ainda, que, conforme consta no Laudo de Perícia Criminal Federal – Química Forense nº 30/2013 – NUCRIM/SETEC/SR/DPF/SP (fls. 27/31), “Segundo publicações da UNODC (United Nations Office on Drugs and Crime), os frutos aquênios (vulgarmente conhecidos como “sementes”) da planta Cannabis Sativa, não apresentam tetraidrocanabinol (THC) em sua composição, portanto não seriam considerados, a princípio, estruturas vegetais contendo substância entorpecente e/ou psicotrópica, tão pouco capazes de causar dependência física ou psíquica, de acordo com a legislação vigente. (...)”.

Ou seja, a despeito de se saber que a planta Cannabis sativa, cujas sementes analisadas poderiam dar origem, encontra-se relacionada na Lista de Plantas Proscritas que podem originar substância entorpecente, sendo proibida sua importação manipulação e uso, tem-se o fato de que as sementes adquiridas pelo denunciado não contém em si mesma substância entorpecente ou psicotrópica, já que não se extrai maconha da semente, mas da planta dela germinada, não sendo a sementes, assim, matéria prima da maconha. Para ilustrar, segue o aresto:

(...)

6. Para que se configure o crime de tráfico de drogas previsto no art. 33 da Lei n. 11.343/06, é preciso que a substância por si só tenha potencialidade para a produção de efeitos entorpecentes e/ou psicotrópicos e possa causar dependência física ou psíquica, o que não ocorre com as sementes da planta Cannabis sativa Linneu.

(...)

11. Importante ressaltar a distinção que a lei faz em relação à matéria-prima que sirva para a preparação de drogas e às plantas que se constituem em matéria-prima para a preparação de drogas. Nesse passo, é de se observar que, no inciso I do § 1º do art. 33, fala-se em “matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas”, enquanto, no inciso II, “plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas”.

12. Razoável interpretar a primeira referência a “matéria-prima”, contida no inciso I, como a que cuida da hipótese em que a matéria-prima não decorreu de plantas, enquanto a segunda, contida no inciso II, como a que decorreu de plantas. Essa distinção parece excluir a semente de maconha do âmbito de incidência do inciso I e incluí-la no do inciso II, pois ela é que dá origem a planta que se constitui em matéria-prima para a preparação da substância entorpecente conhecida como “maconha”.

13. Assim, não se prepara a “maconha” tendo por base a semente dela, mas sim a partir da planta que dela se originou.

(...)

22. Agravo regimental prejudicado. Ordem concedida para trancar a ação penal, em razão da atipicidade da conduta imputada ao paciente. (TRF 3ª Região, PRIMEIRA TURMA, HC 0025590-03.2013.4.03.0000, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL TORU YAMAMOTO, julgado em 12/11/2013, e-DJF3 Judicial 1 DATA:26/11/2013).

Nesse contexto, diante do conteúdo da denúncia e dos documentos carreados aos autos, desde logo se verifica a atipicidade da conduta, por ausência do elemento subjetivo exigido pelo tipo penal em comento, consistente no dolo dos agentes e/ou a excludente de ilicitude do estado de necessidade.

(...)

Da forma como delineados os fatos na denúncia, aliado às pertinentes razões e documentos trazidos em defesa preliminar pelo denunciado, a questão denota ser atípica a conduta a ele atribuída, como antes explanado, em razão da ausência do elemento subjetivo exigido pelo tipo penal em comento, alusivo ao dolo dos agentes, e, ainda que se ultrapassasse dessa análise sobrelevaria a excludente de ilicitude pelo estado de necessidade em que atuou o agente.

Ante o exposto, REJEITO a denúncia apresentada em desfavor de J. C. D., por falta de justa causa, já que ausente a tipicidade na conduta do agente, a teor do art. 395, III, do CPP.

(...)

Antonio Carlos Almeida Campelo
Juiz Federal.



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