INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 286 - Setembro/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Entre a criminalidade e a constitucionalidade: o cultivo e produção de cannabis para fins terapêuticos

Autores: Emílio Nabas Figueiredo e Lorena Otero

O potencial terapêutico da cannabis(1) é investigado pela Ciência e utilizado em vários países no tratamento de diversas doenças, como câncer, depressão, ansiedade, esclerose múltipla, fibromialgia, alzheimer, bem como epilepsias e dores neuropáticas, proporcionando aos pacientes a manutenção da saúde e incremento da qualidade de vida.

No Brasil, a planta é proibida pela Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas) e seu uso medicinal passou a ser debatido, efetivamente, no ano de 2014, devido à notoriedade do caso de uma encomenda internacional contendo óleo de cannabis rico em canabidiol (CBD), apreendida pela alfândega. A encomenda destinava-se a uma mulher que importava o óleo ilegalmente há algum tempo, pois era o único produto capaz de controlar as crises epiléticas que sua filha sofria, crises decorrentes de uma síndrome rara, conhecida como CDKL5.(2) A menina, contando cinco anos à época, foi a primeira paciente no Brasil a fazer uso legal de cannabis, após obter autorização judicial para importar o óleo, o qual nos Estados Unidos é comercializado como suplemento alimentar, sem qualquer restrição de uso.(3)

Diante da história da criança e da decisão judicial, insurgiu um movimento em prol da legalização da cannabis medicinal no país. Muitos pacientes assumiram o uso terapêutico da planta, constituíram associações(4) e passaram a protestar nas passeatas da “Marcha da Maconha” pela mudança das leis e políticas públicas sobre drogas, pela regulação do cultivo, circulação e consumo do vegetal e seus derivados.

Com a intensificação desse movimento, o Poder Judiciário foi novamente provocado e a Justiça Federal da Paraíba, em sede de uma Ação Civil Pública promovida pelo Ministério Público Federal, determinou à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que autorizasse a importação de extrato de cannabis rico em CBD para o uso de 16 pacientes de doenças neurológicas.(5) Igualmente, a Justiça Federal de Minas Gerais determinou ao órgão que autorizasse a importação do medicamento Sativex, cuja composição possui como principal princípio ativo o tetrahidrocanabinol (THC).(6)

Essas decisões foram fundamentais para impulsionar a regulamentação do uso medicinal da cannabis, promovida pela Anvisa, com a publicação das Resoluções da Diretoria Colegiada (RDC) 3(7) e 17,(8) ambas de 2015, pelas quais, respectivamente, o CBD passou a ser classificado como substância controlada(9) e definiram-se os critérios e procedimentos para a importação em caráter de excepcionalidade de produto à base de CBD em associação com outros canabinóides por pessoa física, ou associações de pacientes, mediante prescrição médica de produto com algumas restrições, como ser composto mais por CBD do que THC.

Houve ainda, mais uma importante iniciativa do Ministério Público Federal, que ajuizou Ação Civil Pública com escopo de excluir o THC da lista de substâncias proscritas, permitir seu uso, posse, plantio, cultura, colheita, exploração, manipulação, fabricação, distribuição, comercialização, importação, exportação e prescrição, exclusivamente para fins médicos e científicos, bem como permitir a importação de quaisquer produtos ou medicamentos à base de cannabis, inclusive de suas sementes, se destinadas ao cultivo para uso medicinal.(10)

O Juízo Federal de Brasília, ao decidir sobre a antecipação de tutela na ação supramencionada, deferiu em parte os pedidos, primeiro para que fosse permitida a importação, exclusivamente para fins medicinais, de medicamentos e produtos que contenham THC e CBD, e, segundo, que fosse permitida ainda a prescrição médica de produtos que possuam THC e CBD, bem como a pesquisa científica de qualquer substância da cannabis.(11) Também foi determinado que o THC permanecesse na lista F2 de substâncias proscritas, contudo, com a inclusão de adendo prevendo a permissão exclusivamente ao uso medicinal registrado do THC.(12)

Depois de intimada para cumprir a decisão, a ANVISA publicou a RDC 66/2016,(13) que excetua proibição, com a inclusão dos adendos na Lista E e outro na Lista F2 da Portaria 344/1998, prevendo a “prescrição de medicamentos registrados na Anvisa que contenham em sua composição a planta Cannabis sp., suas partes ou substâncias obtidas a partir dela, incluindo o THC” e para a “prescrição de produtos que possuam as substâncias canabidiol e/ou tetrahidrocannabinol (THC), a serem importados em caráter de excepcionalidade por pessoa física, para uso próprio, para tratamento de saúde, mediante prescrição médica”.

Atualmente, de forma precisa e sucinta, a situação da cannabis medicinal é a seguinte: a) nos termos da RDC 66/2016, a prescrição de qualquer componente da planta é legal, porém antiética, nos termos dos arts. 1.º e 4.º da Resolução 2.114/2014(14) do Conselho Federal de Medicina (CFM), podendo o médico sofrer penalidade ético-disciplinar, motivo pelo qual, ainda que saiba da necessidade do enfermo, não está autorizado a prescrever qualquer medicamento ou produto senão aqueles à base de CBD, exclusivamente para o tratamento de epilepsias na fase de infância e adolescência; b) o uso de medicamentos e produtos registrados na Anvisa é permitido, porém não há qualquer um registrado; c) é permitida a importação de produtos à base de THC e CBD, por pessoa física, para uso próprio, com finalidade terapêutica, mediante prescrição.

A forma como foi exposta a situação atual da regulamentação da cannabis medicinal no país é proposital, a fim de chamar atenção para questões de extrema relevância, como a burocracia, o impedimento e restrição às prescrições médicas, a ausência de produção nacional e, sobretudo, a impossibilidade de acesso democratizado às terapias, obrigando os pacientes a procurarem alternativas para tratamento.

Logo, os pacientes que não dispõe de instrução, prescrição médica e condições financeiras de arcar com o alto custo dos medicamentos e produtos importados,(15) se veem obrigados a recorrer ao cultivo e produção doméstica de medicamento à base de extratos do vegetal, condutas consideradas criminosas, enquanto descritas nos arts. 28 e 33 da Lei de Drogas.

Nesse contexto, a pessoa que cultiva e produz medicamento para si ou para outrem, está exercendo o direito à vida, à dignidade humana, à autodeterminação, à liberdade e à saúde, todos assegurados pela Constituição Federal, não podendo o Poder Público interpretar essa conduta como criminosa.

Assim, quando essa modalidade de terapia deixa de ser contemplada pela regulamentação da Anvisa, pacientes são expostos ao risco de sofrerem consequências penais por autotutelarem direitos fundamentais, cultivando e produzindo, para si ou para outrem, remédios à base de extratos da planta para o cuidado de suas doenças.

Se o cultivo se inicia, essencialmente, pela germinação de uma semente, só no período de 2009 a junho de 2014,(16) a Receita Federal do Brasil apreendeu 2.813 encomendas contendo sementes de cannabis. As sementes podem ser adquiridas com facilidade por meio de sites estrangeiros que comercializam legalmente os frutos aquênios em seus países de origem, contudo, ao ingressarem no Brasil são retidas pelas barreiras fitossanitárias e seus importadores são perseguidos criminalmente, acusados de tráfico internacional, crime hediondo, cuja pena pode chegar até 15 anos de reclusão.

Um notório caso de importação de sementes foi processado pela Justiça Federal do Pará, que perseguiu um indivíduo que importou 20 sementes com finalidade de semear, cultivar e colher inflorescências da planta para produzir medicamento para sua esposa, paciente de câncer que sofria dos efeitos colaterais da quimioterapia. Por sua vez, o juízo rejeitou a denúncia de tráfico internacional de drogas e, na decisão, o magistrado reconhece a “finalidade altruísta e humanitária que moveu o denunciado ao adquirir as sementes no Reino Unido, qual seja, para o exclusivo fim medicinal, em face à grave moléstia que foi sua esposa acometida”.(17)

Se para adquirir sementes as consequências são desgastantes, as pessoas que conseguem adquiri-las de outro modo, senão importando, e passam a cultivar são consideradas, muitas vezes, como traficantes pela Justiça, que processa centenas de casos pelas varas criminais do Brasil.

Um caso emblemático de cultivo medicinal erroneamente interpretado como crime foi o de um gaúcho que, para enfrentar um tratamento pela cura de um câncer, comprou um sítio no interior do Rio Grande do Sul para plantar cannabis, outras plantas medicinais, verduras e legumes orgânicos. O sítio foi invadido pela polícia de forma truculenta, sua plantação foi devastada e quando processado, ele foi condenado por tráfico.(18)

Mesmo com esse risco de interpretação, mais recentemente, mães e pais de crianças possuidoras de graves doenças têm cultivado cannabis para produzir artesanalmente medicamento para o tratamento de seus filhos.(19) E não é só. Além dos casos de cultivo para uso medicinal próprio ou destinado a familiares e amigos, há também uma Rede de cultivadores e médicos que cultivam, produzem e distribuem, gratuitamente, desde 2014, um óleo de cannabis para pacientes de todo o país. Os cultivadores já plantavam para consumo próprio e decidiram ajudar pacientes necessitados por solidariedade e compaixão.(20)

Assim, a falta de regulamentação do cultivo de cannabis e da produção artesanal de medicamentos e produtos com finalidade terapêutica, restringe o acesso democratizado às terapias com a planta medicinal e expõe pessoas ao risco de sofrerem consequências penais. Entre a criminalidade – em razão de interpretação equivocada do Poder Público – e a constitucionalidade – de condutas protegidas constitucionalmente – estão o cultivo e a produção artesanal, que devem ser contemplados na regulamentação do uso medicinal de cannabis no Brasil.

Notas

(1) Nome científico da planta popularmente conhecida como “maconha”, que possui três espécies: sativa, índica e ruderalis.

(2) Essa história foi documentada no filme Ilegal – A vida não espera (2014).

(3) TRF 1.ª Reg., Seção Judiciária do Distrito Federal, 3.ª Vara Federal, ação ordinária, processo 24632-22.2014.4.01.3400, Juiz Federal Bruno César Bandeira Apolinário, decisão em 03.04.2014.

(4) Apepi e Abracannabis no Rio de Janeiro, Abrace e Liga Cannabica na Paraíba, Amemm na Bahia, Ama-me em Minas Gerais e Ananda em São Paulo.

(5) TRF 5.ª Reg., Seção Judiciária da Paraíba, 1.ª Vara Federal de João Pessoa, processo 0802543-14.2014.4.05.8200, Juiz Federal João Bosco Medeiros de Souza, decisão em 18.08.2014.

(6) TRF 1.ª Reg., Seção Judiciária de Minas Gerais, 13.ª Vara Federal de Belo Horizonte, processo 0065693-21.2014.4.01.3800, Juiz Federal Valmir Nunes Conrado, decisão no dia 22.08.2014.

(7) Anvisa, RDC 3, de 26.01.2015, publicada no Diário Oficial da União no dia 28.01.2015 às fls. 53/57.

(8) ANVISA, RDC 17 de 06 de maio de 2015, publicada no Diário Oficial da União no dia 8.5.2015 às fls.50/51.

(9) Lista C1 da Portaria 344/98 da Anvisa.

(10) TRF 1.ª Reg., Seção Judiciária do Distrito Federal, 16.ª Vara Federal, processo 0090670-16.2014.4.01.3400, Juiz Marcelo Rebello Pinheiro, distribuída em 09.12.2014.

(11) Decisão proferida no dia 09.11.2015.

(12) Decisão proferida no dia 03.03.2016.

(13) Anvisa, RDC 66, de 18.03.2016, publicada no Diário Oficial da União no dia 21.03.2016 às fls. 28/32.

(14) “Art. 4.º É vedado ao médico a prescrição da cannabis in natura para uso medicinal, bem como quaisquer outros derivados que não o canabidiol.”

(15) 03 unid. Revivid CBD Hemp Extract 3000 mg, 60 ml cada (dose para 30 dias) = R$ 12.960,00; 03 unid. de Sativex Spray 3x10 ml cada (dose para 30 dias) = R$ 23.773,20. Aos valores são adicionadas as taxas de autorização da Anvisa e valores com despachante e frete.

(16) Receita Federal do Brasil, consulta realizada em 15.09.2014, sob o n. 16853001660201411, por meio da Lei de Acesso à Informação.

(17) TRF 1.ª Reg., Seção Judiciária do Pará, 4.ª Vara Federal de Belém, processo 0015482-69.2014.4.01.3900, Juiz Antônio Carlos Almeida Campelo, decisão no dia 23.04.2015, publicada no Diário Oficial no dia 29.04.2015.

(18) TJRS, Comarca de Canoas, 3.ª Vara Criminal, processo 0024772-61.2011.8.21.0008, distribuído em 07.07.2011 (processo em grau de recurso).

(19) O Globo, “Mãe planta cannabis para produzir extrato medicinal para a filha”. Publicado em: 06.05.2016, disponível em: .

(20) O Globo, “Rede secreta produz maconha medicinal no Rio”. Publicado em: 12.10.2014, disponível em: .

Emílio Nabas Figueiredo
Membro Fundador da REFORMA.
Consultor jurídico do Growroom.net e de associações de usuários medicinais de Cannabis.
Advogado civilista.

Lorena Otero
Fundadora da REFORMA.
Pós-graduada em Processo Penal pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Universidade de Coimbra.
Advogada criminalista.



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