INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 286 - Setembro/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Histórias miúdas da criminalização das drogas e das vidas: sobre alguns beneficiários do De Braços Abertos

Autores: Taniele Rui, Maurício Fiore e Luís Fernando Tófoli

Antônio Carlos tem 43 anos. Nascido e criado no interior de São Paulo, filho de um policial e de uma cozinheira, começou a consumir cocaína aos 15 anos, num engajamento que se desdobrou na prática de furtos e roubos e na construção de uma carreira criminal (conciliada com os trabalhos de frentista e segurança no mercado de trabalho formal) que permitiu a ele ser gerente de biqueira por 10 anos, até ser preso e ficar na cadeia de 2008 a 2010. Após desavenças familiares em Sorocaba-SP, chegou à região estigmatizada como cracolândia, no centro de São Paulo, em 2014, e logo tomou conhecimento do programa De Braços Abertos (DBA),(2) ao qual se vinculou.

Natasha, que nasceu Pedro em Fortaleza, no Ceará, foi expulsa de casa aos 14 anos pelo pai, que não admitiu conviver com um “filho traveco”. Desde então, dificuldades financeiras, preconceitos de gênero, violência sexual e ingestão de hormônios marcam sua trajetória por casas de prostituição em Cruzeiro do Sul, cidade do interior de São Paulo, e por cidades italianas. Da Itália para o Centro de São Paulo, conheceu, aos 22 anos, seu parceiro amoroso mais duradouro, quem lhe apresentou o crack. Prostituindo-se, consumindo e vendendo crack em troca de pequenas porções, Natasha foi presa acusada de tráfico de drogas e transitou por sete Centros de Detenção Provisória (CDPs) diferentes entre 2007 e 2009. Em 2013, habitando uma barraca montada em frente à Sala São Paulo, foi incluída no DBA.

Cristina, de 34 anos, é carioca, filha de mãe poetisa e pai carnavalesco. Usa maconha e cocaína desde a adolescência, num ritmo que ela considera descontrolado – passava vários dias na rua sem comer, sem dormir, sem tomar banho, devendo para traficantes. O primeiro marido morreu de câncer quando o filho tinha apenas cinco anos. Aumentando paulatinamente o consumo de crack, passou a vender a droga para poder comprá-la. Terminou presa e sentenciada por tráfico de drogas, o que redundou na perda da guarda do filho. O segundo filho, hoje com seis anos, é fruto de uma inseminação artificial do segundo casamento de Cristina, desta vez com Mara. Em 2013, Cristina soube que o filho mais velho estava na cracolândia e foi encontrá-lo. Cadastrada numa das primeiras levas do DBA, ela viveu num dos hotéis do programa com o mais novo e lhe dava tudo o que não conseguiu ofertar para o primeiro: escola, alimentação, presentes e presença. Em maio de 2015, aos 32 anos, ela foi novamente presa, acusada de roubo no entorno da Luz; assim, não conseguiu sustentar a convivência com o caçula, que hoje está com Mara.

Vanessa, filha de uma empregada doméstica e de um pai ausente, tem 40 anos e saúde frágil. Taquicardia frequente, tosse, falta de ar, dores de cabeça, gastrite e memória muito comprometida. Um terço de sua vida viveu cercada por muros, entre as penitenciárias paulistas e os manicômios judiciários, batizados, hoje, como hospitais de custódia. Perdi minha vida todinha. Não é justo o que fizeram comigo”,ela nos disse. Fumando crack com o primeiro namorado desde os 15 anos, passou a viver pelos arredores da Estação da Luz quando ele foi morto pela Polícia Militar. Presa, acusada de tráfico de drogas, foi diagnosticada genericamente pela classificação internacional de doenças, a CID-10: F70 (retardo mental leve), F10.2 (transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool – síndrome de dependência) e F20.8 (outras esquizofrenias). Nos hospitais-presídios, trocou o crack por um coquetel de medicamentos: diazepam, fenergan, tegretol, neuroleptil.(3) Sua última internação terminou em maio de 2014, quando retornou para a cracolândia e soube da existência do DBA. Beneficiária do programa, ela cumpre tratamento em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), acompanhada pelo Fórum Criminal, e não exerce atividade remunerada em decorrência das restrições de saúde.

Luciene, de batismo, Paola, por escolha, nasceu no Rio de Janeiro, mas foi registrada no Rio Grande do Norte, em 1972. Abusada sexualmente pelo avô, foi expulsa de casa ao contar aos pais o que ocorria. Aos dez anos, passou a viver de favor com conhecidos até completar 18 anos, quando foi para o Rio de Janeiro, onde se iniciou na prostituição na Praça Mauá. Foi engravidando dos clientes e teve oito filhos. Casou-se com um desses clientes e mudou para São Paulo. Na metrópole, além dos programas, começou a roubar lojas com uma amiga e a revender drogas. Presa pela primeira vez na região da Luz em 1999, foi condenada por tráfico. A partir daí, cinco prisões. Criada pela rua, pelos puteiros e pela cadeia, afirma que nunca abandonou os filhos: “foi o destino que separou a gente”, ela disse. Depois da última prisão, Paola retornou à Luz. Ouviu sobre a existência do DBA e foi incluída no programa, mesmo sem ser consumidora frequente de crack.

Wesley nasceu no interior de Minas Gerais, em 1975, de onde saiu aos 14 anos para ir trabalhar no corte de cana em Ribeirão Preto e morar no alojamento da empreiteira. Passada a safra, aprendeu nas ruas a se tornar trecheiro, usando as passagens doadas pelos albergues para pingar de cidade em cidade. Em Valinhos, conheceu a primeira esposa. Em Pouso Alegre, se aprimorou no estelionato por cinco anos, até ser preso. Depois de sair da prisão, aos 30 anos, começou a consumir crack e, como ele diz, nunca mais se reergueu. Chegou a São Paulo e foi “acolhido” pela cracolândia. Ali conheceu gente, passou as festas de Natal, recebeu ajuda. Num dia de cadastro, entrou na fila, deu o nome e em troca recebeu um kit de higiene e o endereço do seu quarto de hotel.

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Esses são seis resumos minúsculos de histórias de vida contadas por pessoas que encontramos em 2015, durante a fase qualitativa da primeira pesquisa sistemática sobre o Programa De Braços Abertos. Beneficiárias do programa, essas pessoas experimentavam a vida em hotéis alugados pela Prefeitura na região estigmatizada como cracolândia. Embora os fatos sejam reais, suas identidades foram preservadas por nomes fictícios.

Todas essas trajetórias foram atravessadas pelo marco legal da criminalização do comércio e do consumo de drogas, acentuando, de diferentes modos, processos objetivos e subjetivos de ruptura pessoal e familiar, todos eles caracterizados por inserção residual no mercado de trabalho formal. A relação direta com a prisão não foi encontrada peculiarmente nas trajetórias de pessoas escolhidas para entrevistas em profundidade. O levantamento quantitativo, com amostra estatisticamente significante, apontou que 68% dos beneficiários do DBA já passaram pela prisão ao menos uma vez (uma boa parte já foi presa diversas vezes). E cerca de um quarto deles sofreu as primeiras medidas judiciais de restrição de liberdade já na adolescência, tendo sido internado, então, no âmbito do sistema socioeducativo.

São, portanto, seis histórias que repõem muito brevemente os imbricamentos complexos entre consumo e comércio de drogas, atividades lícitas e ilícitas, circulação pela rua, por bairros e prisões, e que constituem um pequeníssimo exemplo da experiência recente de parcela importante dos pobres urbanos que vivem em grandes cidades brasileiras. Narrá-las implica trazer à tona tipos densos desses arranjos, que desafiam o horizonte normativo e classificatório da legislação sobre drogas em vigor, bem como das políticas públicas existentes.

A face minúscula e íntima do que se tornou a política de drogas brasileira na sua ponta mais cruel aí se verifica: trajetórias marcadas pela experiência radical da prostituição, da “errância”, do crime, da distância e até da perda dos filhos, mesmo do diagnóstico do transtorno mental, configurando vidas criminais e criminalizáveis do começo ao fim.

Ao ser articulado ao arbítrio da legislação atual, o exaustivamente observado trânsito fluído entre o uso e o tráfico de drogas praticado na experiência concreta das pessoas (como se vê, com variados desdobramentos particulares) coloca desafios a propostas de atenção como o DBA, que partem dessa divisão para estruturar seu público-alvo. Mais que tudo, deixa explícito um dos maiores paradoxos das políticas sobre drogas, cuja matriz é a Lei 11.343, que esse ano completa uma década: um tratamento drasticamente diverso, com o aumento da oferta de cuidado para aqueles considerados usuários de drogas de forma concomitante à mão pesada do sistema penal para os que são considerados traficantes. Se é verdade que, nos casos dos beneficiários do DBA que investigamos, o tráfico não é o único motivo de encarceramento – roubo e furto também se destacam –, a relação entre as substâncias ilícitas e o chamado mundo do crime parece ser um par socialmente indelével em determinadas experiências e, por isso mesmo, precisa ser seriamente repensada.

Há algo de óbvio nisso, na medida em que a própria ilicitude das substâncias faz criminosos os seus consumidores. O olhar um pouco mais aproximado para o universo de beneficiários do DBA, ou da imensa maioria dos usuários de crack que residem ou trafegam pela região da Luz, será capaz de perceber como são borradas as fronteiras entre usar, dar, compartilhar e vender e como a etiqueta do crime é capaz de criar uma rede de sociabilidade instável, vulnerável e, muitas vezes, violenta – inclusive a esses próprios sujeitos. Completamente distante, portanto, de qualquer coisa que se pareça com promoção da saúde pública e com o respeito aos direitos humanos, que são os bens jurídicos que a atual legislação, a princípio, busca tutelar.

Notas

(1) Este breve texto traz alguns dos dados levantados no âmbito da pesquisa de avaliação do Programa De Braços Abertos, realizada pela Plataforma Brasileira de Políticas sobre Drogas e pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), sob responsabilidade dos autores, e financiada pela Open Society Foundations. Agradecemos aos pesquisadores Fabio Mallart e Mariana Martinez, fundamentais para a coleta das narrativas aqui apresentadas. O relatório completo está disponível em: .

(2) O DBA é um programa intersetorial implementado pela Prefeitura de São Paulo desde janeiro de 2014 e que oferece residência em hotéis, trabalho remunerado, alimentação e cuidados em saúde para moradores da região da Luz, principalmente pessoas que fazem uso problemático de crack.

(3) Embora essas drogas sejam muito diferentes entre si – há antidepressivos, antialérgicos e antipsicóticos –, todas são substâncias psicoativas potentes que fazem parte do arsenal receitado no sistema prisional brasileiro. É curioso notar que Vanessa cita, para algumas drogas, o nome comercial (Tegretol e Fenergan, por exemplo) e, para outras, a denominação genérica da substância, como no caso do diazepam, demonstrando intimidade com esse universo.

Taniele Rui
Professora do Departamento de Antropologia da Unicamp.
Antropóloga.

Maurício Fiore
Coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas. Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Antropólogo.

Luís Fernando Tófoli
Professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
Coordenador do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (LEIPSI).
Médico psiquiatra.



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