INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 286 - Setembro/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Adolescências inscritas na ilegalidade. A Lei 11.343/2006 e os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa

Autoras: Heloisa de Souza Dantas, Camila Magalhães Silveira e Marília Rovaron

– O que você acha que motiva os meninos a
permanecerem no tráfico?
– O dinheiro fácil, o respeito e a fama adquiridos e para alguns a oportunidade de se alimentar, se manter até mesmo com o básico. Vi muitos no tráfico que não tinha nem aonde dormir antes de entrar no tráfico e depois de envolvido, passou a ter um teto, uma boa condição de se manter.
O trafico é o lugar onde a porta de entrada sempre
estará aberta para todos.

 P.A., três vezes internado na Fundação CASA

Jovens negros e pardos que vivem nas diversas periferias brasileiras são os principais alvos de uma violência simbólica e material de nossa sociedade. A violência simbólica é invisível e se apoia em “expectativas coletivas” e em crenças “socialmente inculcadas”,(1) já a violência material está claramente expressa nos números divulgados em 2014 pelo Mapa da Violência: sete jovens entre 15 e 29 anos são mortos a cada duas horas, perfazendo 82 mortos por dia e 30 mil por ano. Dos assassinados, 77% são negros.(2) No entanto, a publicação desses números na mídia não causa comoção. É como se tais informações fizessem referência a algo que nos parece abstrato e distante.

O imobilismo diante do horror não é novidade e muito já foi dito sobre a constatação de Hannah Arendt de que a “banalidade do mal”(3) acontece no vazio do pensamento, transformando a violência em algo corriqueiro. A tentativa de enxergar o outro exige que saiamos de nossos lugares e que consigamos nos identificar com aqueles que pensamos ser diferentes de nós. Em vez de nos mobilizarmos para inverter este cenário que elimina parte da população jovem, o ódio e a sensação de impunidade conclamam o cidadão a eleger um culpado maior pelo seu medo cotidiano. Programas de TV sensacionalistas bradam para que a sociedade faça “justiça” com as próprias mãos, alcançando, com seus discursos, espaços em que análises críticas sobre desigualdade social não chegam com a mesma facilidade.

Se, por um lado, a frágil investigação dos crimes e a burocracia do sistema de justiça acabam levando à falta de credibilidade das instituições responsáveis pela aplicação da lei,(4) por outro, somos a quarta maior população carcerária do mundo e a que tem a maior velocidade de encarceramento.(5) O sistema carcerário expõe claramente a seletividade do sistema penal: a maioria dos detentos é jovem, 67% são negros ou pardos e aproximadamente oito em cada dez pessoas estudaram, no máximo, até o ensino fundamental.(5) No caso dos adolescentes que cumprem medidas de privação e restrição de liberdade a situação não é diferente: 57% são pardos ou negros, 56% estavam fora da escola antes de serem internados e 86% não haviam finalizado o ensino fundamental.(6)

Bauman analisa a criminalização de determinados grupos sociais ao tratar dos “indesejáveis”, “lixos” ou “refugos humanos” produzidos pela modernidade, efeitos do processo de globalização excludente de nosso tempo.(7) A partir da análise de François de Bernard, de que há uma progressiva “criminalização do globo e globalização do crime”, em que bilhões de dólares e euros são controlados pelas máfias e outros crimes organizados, é mais fácil para os governos “dirigir a animosidade popular” contra os pequenos crimes.

A pergunta é: quem efetivamente está sendo encarcerado em nosso país? Indivíduos pobres, sem educação formal, que são precocemente estigmatizados. Tal fato é previsível diante da dificuldade de eliminar o tráfico de drogas e outras atividades ilícitas controladas pelo crime organizado, pois implicaria desmembrar um sistema complexo que movimenta mundialmente somas volumosas. Estima-se que em 2009 o faturamento do crime foi de aproximadamente US$ 2,1 trilhão, ou 3,6% do PIB. Desse total, os ganhos do crime organizado transnacional – como tráfico de drogas, falsificação, tráfico de seres humanos e contrabando de armas de pequeno porte podem ter atingido 1,5% do PIB global, dos quais 70% teriam sido lavados por meio do sistema financeiro.(8) Se realmente quiséssemos enfrentar o crime, teríamos que movimentar um universo em que personagens e instituições do mundo lícito se encontram fortemente entrelaçadas com o universo da ilegalidade.

Os adolescentes inseridos no tráfico de drogas

Os adolescentes que acabam se envolvendo na prática de ato infracional análogo ao tráfico de drogas enfrentam as angústias, incertezas e necessidades de modelos identificatórios como qualquer outro indivíduo nesta mesma faixa etária. Em nosso país, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) compreende que aqueles que estão entre 12 e 18 anos se encontram em uma fase peculiar do desenvolvimento humano, porém há diferenças fundamentais na maneira como este período é vivido ao serem considerados fatores como classe, raça, gênero e região.

Concomitante com tais diferenças que marcarão as trajetórias desses meninos e meninas, Birman alerta para o impasse da juventude atual que não encontra “um horizonte delineado para sua inscrição no espaço social”. No mundo, a globalização neoliberal contribui diretamente para a não inclusão de jovens no chamado “mercado de trabalho” criando o excedente que garante, entre outras coisas, a precariedade das garantias trabalhistas e obriga aqueles que conseguem se inserir a constantes adaptações em nome da sobrevivência.(9)

Nas diferentes cidades brasileiras, os adolescentes são atingidos diretamente pela instantaneidade e ausência de perspectivas desse nosso tempo, bem como pela profunda desigualdade social atribuída à má distribuição de renda e ausência de políticas públicas capazes de responder às necessidades de saúde, educação, cultura, entre outros campos de direito de uma população que vive constantemente bombardeada por ideologias de consumo.

A geração de jovens, nascida entre o final da década de 1990 e o início dos anos 2000, não reconhece como sua a ideologia de seus pais e avós, que foi fortemente marcada pela moral do trabalho. A partir da reestruturação produtiva – resposta criada pelo capital como forma de atender à crise econômica vigente que teve início na década de 1970 – houve o aumento do desemprego em massa e o fim da sensação de estabilidade que atravessava a geração de trabalhadores no Brasil, sobretudo na década de 1980. Neste contexto, há clivagens entre o universo moral do trabalhador e do jovem inserido no mundo do crime, que precisam ser consideradas para um entendimento sobre as expectativas dessa nova geração e sua possibilidade de ascensão em um mundo marcado pela legitimação do consumo.(10)

No cotidiano das periferias, Feffermann inscreve o tráfico de drogas como uma forma de inserção ilegal dos adolescentes no mundo do trabalho: “O tráfico de drogas funciona como qualquer indústria e os jovens trabalham em todas as etapas de sua produção. Sua realidade mostra a violência incrustada na economia ilegal. Nas periferias da cidade e da economia, os jovens sofrem e são coadjuvantes nessa forma cruel e avassaladora de violência.(11)

Simultaneamente ao tráfico, o consumo de drogas também participa da vida desses adolescentes. Apesar de não haver estudos epidemiológicos nacionais, um levantamento do Conselho Nacional de Justiça conduzido nos centros socioeducativos de todas as regiões brasileiras revelou que aproximadamente 75% faziam uso de drogas ilícitas antes da internação, sendo o percentual mais expressivo na região centro-oeste (80,3%). Quanto ao tipo de droga, a maconha foi a substância mais usada, seguida da cocaína, com exceção da região Nordeste, em que o crack foi a segunda droga mais utilizada.(12) Uma pesquisa realizada em 2006 pela Fundação CASA identificou que 62% faziam uso frequente de maconha, 46% já tinham experimentado cocaína, sendo que 19% faziam uso frequente desta droga.(13)

A Lei 11.343/2006 e o sistema socioeducativo

Um dos desafios postos pela Lei 11.343/2006 é a ausência de uma diferenciação objetiva (quantitativa) entre uso e tráfico de drogas. Sem dúvida que a simples adoção de critérios objetivos que pudessem diferenciar os arts. 28 e 33 da Lei de Drogas não sanaria todas as dificuldades advindas da própria seletividade do sistema de justiça – um adolescente com 70, 150 ou 500 gramas de maconha costumeiramente receberá diferentes tratamentos a depender de fatores tais como a cor de sua pele e o local de moradia.

Ao mesmo tempo, a lógica proibicionista criou a ideia do traficante de drogas como um ser perigoso que precisa ser combatido. A noção de combate se aplica diretamente ao pequeno traficante, varejista de drogas; os “acionistas do nada”.(14)

Somada a esta lógica, apesar de haver lacunas na sistematização dos dados sobre os percentuais dos diferentes atos infracionais praticados pelos adolescentes no país, a partir da nova Lei houve um crescimento do número de internações relacionadas ao tráfico. No Brasil, entre 2002 e 2011 as internações de adolescentes relacionadas a este ato infracional passaram de 7,5% para 26,6%.(15) O aumento mais expressivo ocorreu no estado de São Paulo – números da Fundação CASA revelam que no ano da publicação da nova Lei de Drogas, 52,8% dos adolescentes cumpriam medida restritiva ou privativa de liberdade devido ao roubo qualificado e 14,4% devido ao tráfico de drogas.(16) Em 2014, 40,7% estavam cumprindo medida em decorrência do tráfico de drogas e 40,1% por roubo qualificado.(17) Ainda que tenha havido uma redução desses percentuais – em junho de 2016 os dados da Fundação CASA indicavam que 37,4% dos atos infracionais eram análogos ao tráfico de drogas e 44,5% ao roubo qualificado,(18) é fato que as internações continuam elevadas, mesmo com esforços para alterar esse quadro, como a publicação da Súmula 492 do STJ em 2012 que estipulou que: “o ato infracional análogo ao tráfico de drogas não conduz obrigatoriamente à imposição de medida socioeducativa de internação ao adolescente”.

Passados 10 anos da Lei 11.343, é possível concluir que seus efeitos acabaram escapando aos objetivos inicialmente propostos de garantir a atenção social de usuários de drogas, permitindo que o abuso e a dependência de substâncias psicoativas pudessem ser reconhecidos como questões do campo da saúde e da assistência social. Não se nega a importância de o Brasil ter retirado o sistema carcerário para os usuários e dependentes, porém a tentativa de punir o tráfico de drogas de forma mais incisiva em combinação com o art. 28 acabou levando a uma punição indevida de usuários, prováveis dependentes e pequenos traficantes. É certo que não é possível atribuir toda responsabilidade da superpopulação do sistema socioeducativo à nova Lei de Drogas, sendo fundamental também direcionarmos nossa crítica à seletividade do sistema penal, a uma cultura punitiva e à política de drogas que ainda se sustenta a partir do paradigma proibicionista.

A questão dos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa é muito mais complexa do que se permite alcançar. Somente uma visão sistêmica, humanizada e que deixe de lado as fracassadas estratégias coercitivas poderá garantir outros lugares e oportunidades a estes jovens. Devemos reconhecer que estes adolescentes necessitam de atenção, em alguns casos de tratamento e, no geral, de perspectivas concretas de inclusão social, sob a marca dos direitos humanos.

Notas

(1) Bourdieu, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. 11. ed. 2.ª reimp. Campinas: Papirus, 2011, p. 171

(2) Waiselfisz J.J. Mapa da Violência 2014. Os Jovens do Brasil. São Paulo: Instituto Sangari, 2014. Disponível em: . Acesso em: 9 jul. 2014.

(3) Arendt, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

(4) Adorno, S.; Pasinato, W. Violência e impunidade penal:da criminalidade detectada à criminalidade investigada. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, v. 3, p. 51-84, 2010.

(5) Infopen. Levantamento de Informações Penitenciárias: INFOPEN – Junho de 2014. Disponível em: . Acesso em: 21 out. 2015.

(6) Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Panorama Nacional: a execução das medidas socioeducativas de internação. Disponível em: . Acesso em: 21 out. 2015.

(7) Bauman, Z. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

(8) United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC). Estimating Illicit Financial Flows Resulting from Drug Trafficking and Other Transnational Organized Crimes: Research Report, Viena, 2011. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2016.

(9) Birman, J. Juventude e condição adolescente na contemporaneidade: uma leitura da sociedade brasileira de hoje. In: Bocayuva, H; Nunes, S.A. (Org.). Juventudes, subjetivações e violências. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009.

(10) Feltran, G.S. Periferias, direito e diferença: notas de uma etnografia urbana. Revista de Antropologia da USP, Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – v. 53(2), 2010.

(11) Feffermann, M. Os jovens inscritos no trafico de drogas: os trabalhadores ilegais e invisíveis/visíveis. In: Bocayuva, H; Nunes, S.A. (Org.). Juventudes, subjetivações e violências. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009. p. 67.

(12) Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Panorama Nacional: a execução das medidas socioeducativas de internação. Disponível em: . Acesso em: 21 out. 2015.

(13) Fundação Casa. Pesquisa com Internos 2006. Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, 2006. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2016.

(14) D’Elia Filho, O. Z. . Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

(15) Brasil. Secretaria de Direitos Humanos (SDH). Atendimento socioeducativo ao adolescente em conflito com a lei. Levantamento nacional 2011. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2012.

(16) Fundação Casa. Apresentação Fundação CASA Baixada Santista, 2007. Disponível em: . Acesso em: 3 jul. 2016.

(17) Estado de São Paulo. Secretaria de Segurança Pública. Plano Decenal de Atendimento Socioeducativo, 2014. . Disponível em: . Acesso em: 3 jul. 2016.

(18) Fundação Casa. Boletim Estatístico Completo ref 17.06.16. Disponível em: . Acesso em: 3 jul. 2016.

Heloisa de Souza Dantas
Professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP).
Mestre em Psicologia Comunitária pela Michigan State University.
Mestre em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da USP.

Camila Magalhães Silveira
Professora Colaboradora do Instituto de Psiquiatria da FMUSP.
Pesquisadora do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA) e do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica do IPq-HC-FMUSP.
Doutora em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da USP.

Marília Rovaron
Mestranda em Ciências Sociais pela UNESP.
Socióloga.



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