INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 286 - Setembro/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Os demônios da próxima década

Autor: Rafael Folador Strano

1986

Em setembro de 1989, no interior da Casa Branca, o então Presidente George Bush empunhou uma porção de pedras brancas amareladas e afirmou: “Isto é crack. Ele está transformando as cidades em zonas de batalha e matando as nossas crianças”.(1)

O discurso presidencial remonta ao pânico moral em torno da droga (crack scare), o qual havia se alastrado pelos EUA a partir de 1986. Histórias sobre indivíduos que perdem qualquer traço de humanidade ao fumar a substância, edifícios imundos habitados por “mortos-vivos”, anomalias fetais, promiscuidade, disseminação de doenças, abandono familiar, dentre outras, alarmaram a população estadunidense, que passou a apoiar, inclusive dentre os seguimentos mais atingidos pela repressão penal, um incremento punitivo sem precedentes na política criminal de drogas.

Naquele ano, como consequência de tal clamor, o Congresso dos EUA promulgou o Anti-Drug Abuse Act, diploma legislativo que impôs penas mínimas aos traficantes de drogas, estabelecendo uma escala de acordo com a qual a pena para o portador de 5g de crack equivaleria à de quem portasse 500g de cocaína. Foi instaurada, assim, uma proporção de 1:100 em relação à punição de cada tipo de droga, a despeito de ambas as substâncias terem basicamente a mesma composição química.

Não demorou para que a seletividade criminalizante fosse evidenciada, afinal, em razão de seu baixo custo de produção e da pulverização das vendas, o crack passou a ser vendido e consumido majoritariamente pela população negra e latina estadunidense, que, como consequência, foram os segmentos mais afetados pela política diferenciadora.

A mens legis implícita ao ato de 1986 também influenciou a política criminal executiva e judiciária, dando margem a operações policiais inspiradas na teoria da janela quebrada e exclusivamente focadas nas comunidades pobres, o que resultou em um aumento vertiginoso de detenções: 90% dos presos por tráfico de crack eram negros, enquanto a maioria dos indivíduos processados por uso de drogas era branca.(2) Nesse contexto, também houve a legitimação de inúmeras violações a direitos fundamentais, dentre as quais se inclui a admissão de confissões forçadas e buscas e apreensões realizadas sem qualquer observância aos ditames constitucionais outrora consagrados.

O encarceramento massivo das minorias decorrente de tal movimento levou Alexander a afirmar que a guerra às drogas, camuflada em uma linguagem neutra, ofereceu à população branca que se opunha às reformas raciais uma oportunidade única de expressar a hostilidade sobre os negros, evitando eventuais acusações de racismo.(3)

Apenas em 2010, no intuito de minimizar a iniquidade do sistema penal estadunidense, o presidente Barack Obama sancionou o Fair Sentencing Act. De acordo com a nova legislação, a disparidade da prisão por crack e cocaína foi reduzida para 18:1. Além disso, foram eliminadas as sentenças mínimas de cinco anos para a posse de crack. Embora atenuado, o tratamento desigual em relação ao crack persiste.

2006

No Brasil, duas décadas depois da “epidemia” de crack estadunidense, a Lei 11.343/2006 nasceu com a proposta de punir “grandes” traficantes, diferenciando-os dos “pequenos” traficantes (art. 33, § 4.º) e dos usuários de drogas (art. 28). Apesar de incrementar consideravelmente a punição para o tráfico de drogas, a lei brasileira não impôs tratamento diferenciador entre o crack e as demais substâncias consideradas ilícitas, juízo este que cabe ao Magistrado (art. 42).

Ocorre que, embora ainda não exista pesquisa empírica sobre o tema, a prática demonstra que indivíduos relacionados a tal droga são tratados de forma mais gravosa.

A conjuntura pode ser ilustrada pela frase do Min. Luís Roberto Barroso durante a prolação do voto no RE 635.659: “o crack muda a equação do problema das drogas, porque ele transforma as pessoas num corpo sem alma”. O usuário de crack foi, portanto, equiparado ao “desalmado”, aquele que é somente um corpo e que, implicitamente, merece tratamento presumidamente mais gravoso em relação aos usuários das outras substâncias. Paralelamente, o raciocínio também autoriza o recrudescimento em relação àquele que vende crack, diferenciando-o dos demais traficantes, já que seria o exclusivo responsável pela miséria dos “sem alma”.

A lógica embutida na fala do Ministro é típica de um crack scare, o qual, no caso brasileiro, tomou proporções nacionais a partir do início da presente década. Desde sua entrada no mercado consumidor de drogas brasileiro, o crack permaneceu vinculado à região central da cidade de São Paulo. A partir de 2010, a disseminação do uso para outras cidades brasileiras, as contundentes operações policiais realizadas na cracolândia paulistana, dentre outros fatores, levaram à construção midiática da “epidemia” brasileira do crack, tema que, inclusive, se tornou objeto da disputa presidencial de 2012.

Não se questiona que o crack é uma droga extremamente danosa, com alto potencial viciante e que aprofunda a relação de marginalização na qual provavelmente já está inserido o usuário antes mesmo de fumar a droga.(4) O problema é que a categorização do uso de crack enquanto epidemia, além de incerta sob o ponto de vista científico,(5) afasta a análise sobre suas causas, conforme bem explica Nery Filho: “falar de epidemia remete ao poder médico, que quase personaliza no crack o equivalente a um vírus... Uma bactéria... Um microrganismo, deixando de concebê-la como uma molécula química que não tem vida biológica. O trânsito do crack se faz entre pessoas, por pessoas. Não há outro ‘vetor’ senão os próprios humanos e suas vicissitudes. Não gosto do termo epidemia, porque parece excluir o social e o psíquico enquanto determinantes fundamentais do uso. O consumo do crack é sintoma da expansão da miséria e exclusão e não o inverso, suas causas”.(6)

Além disso, o pânico moral dá ensejo às every day theories que acabam sendo incorporadas à práxis forense. Dentro desse contexto, fatores científicos, como as composições químicas análogas do crack e da cocaína, a possibilidade de tomada de decisões racionais pelos usuários, o consumo médio diário de “pedras” pelo usuário brasileiro, o peso de cada porção, dentre outros, cedem lugar a chavões e frases de efeito que subsidiam condenações de usuários como se traficantes fossem, com a imposição de severas penas, além de influenciarem no tratamento desigual entre o traficante de crack e o das demais drogas. Condenados por outros crimes, caso relacionados ao crack, também arcam com maior rigor repressor, afinal, “roubou porque é noia”.

Assim, apesar de não existir no país fundamento legal que diferencie o tratamento em razão do tipo de droga, a própria lógica seletiva do sistema, impulsionada pelo sensacionalismo em torno da questão, encarrega-se da tarefa. Não há, porém, qualquer sinal de reversão desse paradigma nos próximos anos.

2016

Conforme mencionado, muito embora existam indícios de tratamento desigual para o crack, a Lei 11.343/2006 foi elaborada antes da repercussão nacional sobre a droga. Basta, porém, consultar os projetos legislativos em trâmite no Congresso Nacional para perceber a forte tendência de escalada punitiva, inclusive no sentido de emendar a Lei de Drogas a fim de criar uma espécie de Anti-Drug Abuse Act brasileiro, com trinta anos de atraso e mesmo diante de todas as mazelas já reconhecidamente provocadas por este.

O Projeto de Lei 5.444/2009, por exemplo, tem como objetivo acrescer o § 5.º ao art. 33 da Lei 11.343/2006, o qual aumentaria a pena de dois terços até o dobro, no caso de o tráfico se referir a “cocaína para fumar, vulgarmente denominada ‘crack’”. No mesmo sentido, o PL 4.052/2012 (apensado ao PL 5.444/2009) e o Projeto de Lei do Senado Federal 137/2014. Por sua vez, o PL 440/2011 visa a acrescentar o § 8.º ao art. 28 da Lei 11.343/2006, de acordo com o qual o Magistrado poderá determinar, a seu critério, a imediata internação do usuário de crack para tratamento especializado de recuperação.

O cenário que se desenha é, de fato, preocupante, apesar de não se tratar de algo inédito na história da war on drugs. Em verdade, a demonização de usuários ou traficantes de determinados tipos de substâncias, quando oriundos de camadas populacionais pobres, não é exclusividade do crack, já tendo sido verificada em relação a outras drogas. Basta lembrar que no Brasil, há alguns anos, propalou-se o início de uma suposta “epidemia” de óxi, o mesmo ocorrendo nos EUA em relação à metanfetamina.

Degeneração social, “mortos-vivos”, violência e irracionalidade sempre permearam a questão das drogas, variando, de tempos em tempos, a substância escolhida como “destruidora da nação”, bem como aqueles que exclusivamente arcam com o peso das respostas penais forjadas sob o argumento do pavor. Retomando Hulsman,(7) enquanto houver inquisição, bruxas e demônios continuarão a assombrar o imaginário popular. Resta saber até quando acreditaremos nas fogueiras.

Notas

(1) Levine; Harry G.; Reinarman, Craig. The crack attack – politics and media in the crack scare. In: Levine; Harry G.; Reinarman, Craig (orgs.). Crack in America – demon drugs and social justice. Berkley: University of California Press, 1997. p. 22-23, tradução nossa.

(2) Musto, David F. The american disease – origins of narcotic control. Nova Iorque: Oxford University Press, 1999. p. 274.

(3) Alexander, Michelle. The new Jim Crow – mass incarceration in the age of colorblindness. Nova Iorque: The New Press, 2012. p. 54.

(4) Vale lembrar que duas características dos usuários de crack no Brasil coincidem com marcadores de desvantagem sociais e históricos já determinados no nascimento, quais sejam, o fato de os usuários não serem brancos e a baixa escolaridade (Bastos, Francisco Inácio; Bertoni, Neilane (orgs.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Editora ICICT/FIOCRUZ, 2014. p. 149).

(5) “Não podemos afirmar se há ou não no país uma epidemia do uso de crack e/ou similares, uma vez que uma epidemia só pode ser caracterizada tecnicamente a partir de resultados obtidos de uma série histórica de registros de estimativas/contagens do fenômeno sob análise” (Bastos, Francisco Inácio; Bertoni, Neilane (orgs.). Pesquisa Nacional sobre o uso de crack cit., p. 145).

(6) Macrae, Edward; Tavares, Luis Alberto; Nuñez, Maria Eugênia. Diálogo com Dr. Antonio Nery Filho. In: Macrae, Edward; Tavares, Luis Alberto; Nuñez, Maria Eugênia (orgs.). Crack: contextos, padrões e propósitos de uso. Salvador: EDUFBA, 2013. p. 29.

(7) Hulsman, Louk; Celis, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas – o sistema penal em questão. Trad. Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro: Luam, 1983. p. 64.

Rafael Folador Strano
Mestre em Criminologia e Direito Penal pela FDUSP.
Defensor Público do Estado de São Paulo.



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