INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 286 - Setembro/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

O aceno do Papa Francisco para as mulheres presas

Autora: Kenarik Boujikian

Apenas o Estado é que está autorizado ao uso máximo da força, consubstanciado no Brasil na pena prisional, pela qual se tem a subjugação absoluta do corpo, da vida e do tempo de uma pessoa. Entretanto, a este mesmo Estado é possível alguma medida de reparação, quando o subjugar do ser humano ao sistema penal se mostre em algum ponto desnecessário ou inadequado ou, ainda, desumano aos fins que a própria norma estabelece.

Nesse sentido, o indulto é o instituto posto às mãos do Presidente da República, como exercício do poder máximo do Estado, detentor exclusivo do uso da força, para proceder à reparação, por meio de uma política criminal que, de alguma forma, tenta reverter o quadro de violência que a própria pena passa a representar.

Ele é da tradição do direito brasileiro e há alguns anos diversas entidades, tendo à frente o Grupo de Estudos e Trabalho “Mulheres Encarceradas”, têm mostrado a importância do decreto de indulto contemplar o recorte de gênero, como forma de remediar as consequências nocivas do encarceramento de mulheres, sendo que o primeiro pedido se deu em 2004 e foi acolhido parcialmente.

Neste primeiro semestre de 2016, o movimento pelo indulto para as mulheres cresceu significativamente, pois mais de 200 entidades, de enorme representatividade e legitimidade, apontaram para a imprescindível necessidade de reduzir os danos que a prisão das mulheres vem causando. Para ser mais específica, o pedido das entidades foi de: expedição de decreto que concedesse indulto e comutação de penas, em comemoração ao dia da mulher, que contemplasse as que tiveram condenação por tráfico de entorpecentes, com pena de ao menos cinco anos (referencial da pena mínima do crime previsto no art. 33, caput, da Lei de Drogas), o que nunca foi contemplado nos decretos anteriores.

Indulto nesses moldes se faz justo, tendo em vista as especificidades da prisão da mulher, levando-se em conta as consequências da prisionalização para o âmbito social, familiar, para além do pessoal. O indulto não será um instrumento de política criminal eficaz, se não contemplar os casos de tráfico de entorpecentes, já que a maioria das mulheres está presa por essa espécie de delito.

Vale a pena dar uma breve pincelada sobre o perfil das encarceradas: elas constituem pequena taxa da população carcerária (7%), cerca de 38 mil em 2014. A maioria não está envolvida em crimes violentos. Muitas estão presas por pequenos furtos e estelionatos e cerca de 70% por crime previsto na Lei de Drogas, normalmente com pequena quantidade de entorpecente, enquanto os homens, em maioria, estão detidos por roubo. Temos alto percentual de mães presas (70%), que se encarregam de cuidar dos filhos pequenos e são chefes de família. Há um aumento do aprisionamento feminino, que se dá em razão de entorpecente. Elas são jovens, pois 50% estão na faixa etária de até 29 anos. Muitas são vítimas de violência doméstica. De cada três mulheres presas, duas são negras, ou seja, representam 67%, enquanto que para o IBGE o percentual de mulheres negras fora dos muros é da ordem de 51%. Elas são abandonadas quando estão presas. As prisões que ocupam estão distantes das cidades de origem e a maioria encontra-se em estabelecimento misto. O envolvimento delas na criminalidade se relaciona com a sobrevivência, para manter o mínimo de subsistência para si e sua família.

O crescimento exponencial do aprisionamento feminino no Brasil está na ordem de 570% na última década e meia e é motivado por delito relacionado ao tráfico de entorpecentes, mas não é um fato exclusivo do Brasil, tanto que levou a uma preocupação de ordem internacional.

Diversos documentos da órbita da ONU e OEA recomendam que se preste maior atenção às questões das mulheres que se encontram na prisão, inclusive no tocante aos seus filhos. Nesse sentido, dentre outros, a Convenção Sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher; o Conjunto de Princípios para a proteção de todas as pessoas submetidas à detenção ou prisão – adotada pela Assembleia Geral da ONU de 1988; a Recomendação da Assembleia Geral da ONU, Resolução 58/183, que determinou que se prestasse maior atenção às questões de mulheres que se encontram em prisão, inclusive no tocante aos filhos; as Regras de Bangkok – normativa da ONU de 2010, especialmente direcionada para o tratamento das mulheres presas, traduzidos no Brasil só em 2016, em razão de uma parceria da Pastoral Carcerária com o Conselho Nacional de Justiça e outras instituições (demora que não deixa margem de dúvidas sobre o descaso com as políticas de encarceramento de mulheres).

É fato que há o elemento de gênero nos últimos decretos desde 2004, porém sempre com impedimento à concessão para o crime de tráfico de entorpecentes, o que revela que a política criminal referente ao indulto, estabelecida até hoje, não contempla, em termos concretos, as mulheres presas, como se vê pelo número de mulheres indultadas em 2014. A Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo informou que em 2014 foram indultados 6.510 homens e apenas 142 mulheres; a Secretaria de Estado de Defesa Social – SEDS, de Minas Gerais, informou que foram concedidos 1.211 indultos para homens e 54 para mulheres. A Susep – do Estado do Rio Grande do Sul, por sua vez, disse que foram 622 homens que se beneficiaram com o indulto e 19 mulheres.

São números pífios, que retratam a ineficácia do indulto concedido até então, especialmente porque esses três estados da federação, que prestaram a informação diretamente à Associação Juízes para a Democracia, são os que concentram significativamente a população encarcerada do Brasil.

E qual a razão para que o indulto não seja concedido para as mulheres encarceradas que estão condenadas por tráfico de drogas? No plano da política de drogas, certamente ainda não se apercebeu que o indulto pode ser um importante passo para a alteração de rota para esta política.

O presidente dos EUA, Barack Obama, iniciou em 2015 uma nova página no encarceramento massivo relacionado a drogas, antecipando a soltura de presos, pois se deu conta de que os custos do sistema prisional são altíssimos, que o aprisionamento em massa não levou à superação ou diminuição do tráfico de drogas, que grande maioria da população atingida é de negros e hispânicos, que foi produzida uma superpopulação carcerária.

O Equador adotou em 2008 indulto que incluía pessoas presas pela primeira vez por transporte de drogas, com até 2kg de substância e que já tivessem cumprido pelo menos 10% de sua sentença. A Costa Rica incluiu o critério de gênero para análise de proporcionalidade das penas e de atenuantes causados por vulnerabilidade das mulheres em lei de 2013, passando a aplicar redutores de penas em função da extrema pobreza, chefia de lar, responsabilidade sobre crianças e adolescentes, idosos ou pessoas com deficiência – uma iniciativa reconhecida pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) como boa prática a ser implementada por outros países.

Operadores do sistema de justiça têm maior reverência em relação às leis ordinárias do que a própria Constituição. Nesta vertente, pode-se conferir inúmeras decisões de indeferimento de concessão de indulto para condenados por tráfico de entorpecentes aduzindo que tal delito, ainda que na forma privilegiada, não permite o indulto, em razão da vedação estabelecida na Lei de Crimes Hediondos.

Mas é certo que não existe restrição constitucional, e tampouco é permitida a interpretação restritiva na matéria de competência dos poderes da República e, finalmente, a lei ordinária não pode subtrair poderes da Presidência da República.

Nesse sentido a lição de Alberto Silva Franco, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM, que, em resposta à consulta pontual formulada pelo GET “Mulheres Encarceradas“, em fevereiro de 2016, acerca da possibilidade de concessão de indulto para as condenadas ao tráfico de entorpecentes, esclareceu que não há inconstitucionalidade em sua concessão:

Com a acuidade peculiar, o Min. Assis Toledo enfatizou que no art. 84, XII, a Constituição prevê expressamente o indulto e atribui à competência discricionária do Presidente da República. Ora, tal poder discricionário encontra seus limites no próprio Texto Constitucional, não podendo sofrer restrições pelo legislador ordinário. E a Constituição, quando quis fazer restrições, mencionou a anistia e a graça, deixando de lado o indulto, por ela própria previsto expressamente no citado art. 84, XII. Assim é porque parece ilógico tornar, no art. 84, XII, a palavra indulto como abrangente de graça e, logo adiante, no mesmo Texto Constitucional (inc. XLIII do art. 5.º) inverter o raciocínio para entender que a graça abrange o indulto. Por outro lado, se o legislador tivesse empregado, neste último preceito, a palavra graça em sentido amplo, com o significado de ‘direito de graça’ ou ‘poder de graça’, ou indulgentia principis, não teria certamente mencionado a anistia, que é uma das modalidades do mesmo poder de graça ou de clemência. Por último, cabe, aqui, relembrar-se a observação de Aloysio de Carvalho (não há sinonímia entre graça e indulto) para concluir que não seria compreensível sustentar-se que o legislador constitucional tivesse empregado duas expressões graça (art. 5.º, XLIII) e indulto (art. 84, II) com o mesmo ou com sentido invertido, estabelecendo uma enorme confusão, inexistente na legislação e na doutrina brasileira. Destarte, não estaria o Presidente da República impossibilitado, em princípio, de conceder o indulto, nos termos do art. 84, II, da Constituição Federal, em relação a qualquer crime, seja do Código Penal, seja do microssistema aludido no item A, nem o legislador infraconstitucional, poderia, através de lei ordinária, estabelecer limites ao Presidente da República no seu poder de indultar. Caso o fizesse, a lei ordinária teria flagrante inconstitucionalidade. O Presidente da República não ficará assim obstado de conceder indulto, ou até mesmo de comutar pena, no que tange aos crimes que participam do microssistema criminalizador constante da Constituição Federal (art. 84, XII, da CF) (...). E se, no seu poder discricionário, pode ele incluir no indulto todo e qualquer fato típico arrolado na lei infraconstitucional que versa sobre tráfico ilícito de entorpecentes, nada impede que possa nele incluir situações concretas que alberguem condenados por tal delito”.

Toda vez que penso na realidade dos presos por tráfico de entorpecentes, não consigo deixar de lembrar de Cintia, jovem de 24 anos, mãe de uma criança de cerca de 4 anos, primária, sem antecedentes criminais, presa em flagrante em fevereiro de 2012, com menos de 1 grama de crack. Deve ser mesmo uma grande traficante, pois em sua casa, onde a apreensão ocorreu, encontraram verdadeira fortuna: 1 cédula de 50 reais; 8 moedas de 10 centavos; 4 moedas de 5 centavos; 3 moedas de 25 centavos; 1 moeda de 50 centavos; 1 moeda de 1 real; 9 cédulas de 2 reais; 7 cédulas de 5 reais e 1 cédula de 20 reais!!!! Ainda, a polícia registrou no documento de vida pregressa, que instrui o flagrante, que ela não possuía carro e nem depósito em bancos, a casa dela era de moradia popular e ela dava suporte econômico para a única filha.

Cintia foi condenada por crime que não possui a elementar da violência, a uma pena de cinco anos de reclusão, em regime fechado, sem redução e sem substituição de pena. Saiu em livramento condicional, apenas no final de 2015, quando a filha já tinha mais de sete anos e depois que o Estado havia gasto mais de 100 mil reais com a sua prisão, cálculo à vista do tempo que ela permaneceu presa, já que em média cada preso tem o custo mensal de cerca de três salários mínimos.

Como anotou o Min. Ricardo Lewandowski no julgamento do HC 118.552: “Permito-me insistir: a grande maioria das mulheres em nosso País está presa por delitos relacionados ao tráfico drogas e, o que é mais grave, quase todas sofreram sanções desproporcionais relativamente às ações”.

Lamentavelmente, nem a Lei de Drogas e nem o Código Penal são aplicados, como poderia e deveria sê-lo, no que diz respeito às medidas que o legislador estabeleceu para que a nociva prisionalização não fosse a única alternativa possível, que gera a caótica e bárbara situação das prisões, que o próprio Supremo Tribunal Federal reconheceu como de “estado de coisa inconstitucional”, dado o grau de violações de direitos que nelas são encontradas.

Este quadro dantesco está a exigir que o país repense a política de entorpecentes e o indulto para as mulheres é um caminho necessário, emergencial, para romper a trágica situação que se encontram as mulheres encarceradas.

O Conselho Nacional de Política Criminal de Penitenciária analisou o pedido das entidades e apresentou proposta extremamente sensível, de extremo rigor técnico para as mulheres encarceradas e, pela primeira vez, o referido Conselho, por seu presidente, Dr. Alamiro Velludo Salvador, deu publicidade à sua proposta e posição, de modo que questão dessa natureza tivesse a transparência necessária para que a sociedade pudesse saber qual a sua posição.

Papa Francisco tem nos dado lições fantásticas de humanidade, inclusive na área penal. Disse que o Estado e cada um de nós devemos superar “a convicção de que através da pena pública se podem resolver todos os tipos de problemas sociais, como se para as doenças mais diversas nos fosse recomendado o mesmo remédio. Não se trata de confiança em qualquer função social tradicionalmente atribuída à pena pública, mas antes da convicção de que mediante tal pena se possam obter aqueles benefícios que exigiriam a implementação de outro tipo de política social, económica e de inclusão social”.(1)

Ele esteve na Bolívia em 2015 (no II Encontro com os Movimentos Populares) e, no trajeto de um de seus compromissos, pediu que parassem o carro, pois ouviu uma cantoria que faziam para ele, no momento que passa por uma prisão de mulheres. O som das vozes femininas vem bonito e forte, embora elas estejam atrás dos muros e grades. Ele fez questão de parar para acenar àquelas mulheres, que se tornaram invisíveis para a sociedade.

Francisco fez o aceno para as mulheres presas. O mundo está se dando conta de que é necessária uma nova abordagem para a questão das drogas e para o tratamento das mulheres presas. O CNPCP se manifestou pelo acolhimento do pedido de indulto para as mulheres presas por tráfico. Todos os órgãos do poder executivo que se envolvem com a questão prisional, com a questão de direitos humanos e com as políticas para as mulheres, também demonstraram a importância de realização de uma política para as mulheres encarceradas, dadas as condições de vulnerabilidade em que elas se encontram. Inúmeras entidades representativas e com significativa legitimidade, de várias áreas, apresentam este pleito.

Que venha o indulto para as mulheres, ainda que não seja no dia das mulheres!

Nota

(1)  Disponível em:
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Kenarik Boujikian
Juíza do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Cofundadora da Associação Juízes para a Democracia.
Membro do GET “Mulheres Encarceradas”.



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