INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 286 - Setembro/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

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Conselho Editorial

Crítica à estipulação de critérios quantitativos objetivos para diferenciação entre traficantes e usuários de drogas: reflexões a partir da perversidade do sistema penal em uma realidade marginal

Autor: Bruno Shimizu e Patrick Cacicedo

Com uma década de vigência, é possível afirmar que a Lei 11.343/2006 encerrou a intensificação de um violento processo de controle social por meio da criminalização de condutas relacionadas às drogas tornadas ilícitas. A despeito do objetivo declarado de proteção e prevenção, foi o aspecto repressivo que deixou a marca da Lei de Drogas na realidade concreta na última década.

O aumento de pena para o tráfico de entorpecentes foi acompanhado pelo incremento da política de guerra às drogas, que a pretexto de salvar vidas, exterminou milhares, naquilo que Nilo Batista classificou como política criminal com derramamento de sangue.(1) Por outro lado, a guerra às drogas tem se mostrado como um dos principais combustíveis para o processo de encarceramento em massa levado a efeito no Brasil nos últimos anos. De acordo com dados do Infopen, em 2014, 27% da população prisional total encontrava-se presa por crimes de drogas. Em relação às mulheres, o relatório demonstra que 63% das encarceradas no Brasil estavam presas como traficantes.(2)

Tanto o extermínio quanto o encarceramento massivo tiveram como alvo uma parcela da população específica: os jovens negros das áreas mais pobres das cidades. Referida política de guerra às drogas também referendou igualmente um controle territorial por um poder violento e notadamente militarizado, com constante vigilância sobre a população-alvo.

Especificamente no que se refere ao encarceramento em massa, já é senso comum que se atribua a uma falha legal esse efeito: a adoção de critérios primordialmente subjetivos para diferenciação entre traficantes e usuários. Afirma-se que os critérios legais permitem que usuários sejam presos frequentemente como se fossem traficantes, pois para definir se a droga se destinava ao consumo pessoal, determina a lei que “o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.

Como muitos dos critérios são nitidamente subjetivos, a atuação das agências policiais e judiciais acaba por utilizar arbitrariamente as condições pessoais, o local e os antecedentes para a classificação da conduta. Dessa forma, o estereótipo do traficante de drogas, produzido pelo próprio sistema punitivo, funciona como o elemento central de enquadramento da conduta típica.

A criminalização secundária do tráfico de drogas tem duas características centrais: os órgãos persecutórios não investigam as condutas e apresentam acusações com parco lastro probatório, em regra apenas o depoimento dos policiais que efetuaram as prisões em flagrante; o Poder Judiciário supre a precariedade das acusações com o arbitrário julgamento com base no estereótipo do acusado.

Diante desse quadro, numa tentativa de alterar o panorama de criminalização supradescrito, especialistas sugerem a adoção de um critério objetivo para a diferenciação entre usuários e traficantes, que seria a quantidade de drogas.(3) A discussão ganha corpo especialmente diante do julgamento no STF do Recurso Extraordinário 635.659, cujo objeto é a constitucionalidade do crime de porte de drogas para consumo pessoal.

Contudo, a perspectiva de que o estabelecimento de um critério objetivo indicativo da traficância poderia atenuar o encarceramento em massa e a violência intrínseca à guerra às drogas traduz um paradigma alienante, que aposta no discurso diferenciador entre o traficante e o usuário, inexistente na realidade empírica. Nas prisões, o que se verifica é que a pessoa presa por tráfico, quase invariavelmente, é usuária de drogas que, seja para sustentar o próprio uso, seja pela precariedade socioeconômica, acaba se envolvendo pontualmente na mercancia, ocupando os estratos mais baixos do negócio. Do ponto de vista econômico, constituem mão de obra descartável e facilmente substituível, cumprindo a função de arcar com o ônus da criminalização. Por outro lado, o “traficante empresário”, figura social e geograficamente distante das periferias, que lucra e investe no mercado de drogas a partir de operações financeiras e logísticas, encontra-se absolutamente invulnerável ao sistema penal, tendo-se em vista sua seletividade estrutural.(4)

Tomando-se por base o fato de que a diferenciação entre traficante e usuário é meramente circunstancial, sendo que a diferenciação objetiva por meio de critérios quantitativos não dá conta dessa complexidade presente na realidade empírica, resta a conclusão de que, estando o sistema penal baseado sobre alicerces ideológicos discriminatórios e classistas, o estabelecimento de critérios objetivos de reforço do discurso diferenciador entre traficante e usuário poderá significar, mais que uma medida inócua, um verdadeiro retrocesso quando se tem por objetivo o enfrentamento do encarceramento em massa da pobreza.

Por um lado, o estabelecimento de um marco quantitativo, que sempre tende a ser demasiadamente baixo, certamente permitirá aos juízes e aos demais operadores do sistema penal procederem a uma interpretação perversa do critério, criando verdadeira “presunção de traficância” sempre que apreendida quantidade maior de droga que a estabelecida legal ou jurisprudencialmente. Por outro lado, mesmo nos casos de apreensões menores, parece claro que não haverá proibição ao juízo de considerar o réu como traficante, desde que lastreado em outras provas que indiquem o dolo de traficância. Na realidade dos fóruns criminais, verifica-se que os juízes nunca, ou quase nunca, condenam alguém por tráfico com base exclusivamente na quantidade de droga apreendida. Utilizam, sim, outros elementos como provas de traficância, sendo que, em sua maioria, tais elementos são, na verdade, apreciações discriminatórias, como a baixa capacidade econômica do réu (que, portanto, não seria consumidor, mas traficante), o local da apreensão (comunidades periféricas, automaticamente designadas como “pontos de venda de drogas”), entre outras presunções preconceituosas injustamente lidas pelo sistema de justiça como indícios de tráfico. Nesse diapasão, pode-se suscitar a hipótese segundo a qual o critério objetivo será utilizado pelos juízes apenas como prova contrária ao acusado flagrado com quantidade maior de drogas. Nos demais casos, a quantidade pequena de drogas apreendida poderá ser compensada, a fim de capitular-se o caso como tráfico, mediante o apontamento de outras provas, em sua maioria discriminatórias.

Semelhante resultado foi verificado na experiência mexicana, o país com a realidade socioeconômica mais próxima à brasileira que adotou o critério objetivo quantitativo para distinção entre traficante e usuário.(5) O resultado não foi por acaso, pois a política criminal de drogas cumpre igualmente um papel bem semelhante ao nosso naquele país.

Parece ingênuo acreditar que o encarceramento em massa e a guerra às drogas sejam atribuíveis a falhas da legislação, ignorando-se que isso constitui uma opção política. Nesse sentido, o discurso diferenciador, que carece de respaldo fático, não faz mais que permitir e induzir a demonização da figura do traficante, permitindo novas e mais violentas incursões do poder penal sobre seu corpo e sua vida.

O real enfrentamento dos problemas causados pela política de drogas passa necessariamente pelo debate sobre o proibicionismo, o que pressupõe que a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal, ou o reconhecimento da inconstitucionalidade de sua criminalização, apenas será um passo em direção ao fim da guerra às drogas se não vier acompanhada do recrudescimento do tratamento penal da população que vem sendo presa como traficante. Tal recrudescimento, contudo, parece ser consequência natural do falacioso discurso diferenciador que, a fim de proteger o consumidor de drogas, demoniza o traficante, geralmente ainda mais vulnerável, explorado por um mercado ilegal e exterminado pelo braço armado do sistema penal.

Notas

(1) Batista, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro, v. 5/6, 1998.

(2) Ministério da Justiça. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: Infopen, jun. 2014, p. 68-69.

(3) Cf. Instituto Igarapé. Nota técnica: critérios objetivos de distinção entre usuários e traficantes de drogas. Disponível em: . Acesso em: 10 jul. 2016.

(4) Cf. Zaccone, Orlando. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 122.

(5) Hernandez, A. P. Drug legislation and the prison situation in Mexico. In: Tijanero, J. H.; Angles, C. Z. Transnational Institute, Washington Office on Latin America. Systems overload – drug laws and prisons in Latin America, 2011. Mexico: the law against small-scale drug dealing. Transnational Institute, 2009.

Bruno Shimizu
Doutor e mestre em Direito Penal e Criminologia pela USP.
Defensor Público coordenador auxiliar do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Presidente da Comissão de Sistema Prisional do IBCCRIM.

Patrick Cacicedo
Doutorando e mestre em Direito Penal e Criminologia pela USP.
Defensor Público coordenador do Núcleo Especializado de Situação Carcerária da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Membro da Comissão de Sistema Prisional do IBCCRIM.



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