INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 286 - Setembro/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

O Direito Penal da guerra às drogas

Autor: Luís Carlos Valois

1. Introdução

Vivemos em uma sociedade individualista, de consumo e de exaltação ao prazer. A criminalização do comércio de determinadas drogas, arbitrariamente selecionadas, apesar de toda irracionalidade, tem uma história que passa despercebida para quem, hoje, tem a prisão, a violência e a morte como naturais em um combate policial contra determinadas substâncias.

O Direito Penal foi forjado para legitimar a punição de uma relação comercial antes tida como uma relação qualquer, um fato social comum (Mill, 2001), violando a sua própria natureza garantista. Por isso que, fechado, em seus debates internos sobre determinadas circunstâncias de cada tipo penal, o Direito Penal só servirá como legitimador de interesses morais duvidosos, base da criminalização das drogas.

Assim, há que se quebrar o círculo vicioso de utilização do Direito Penal – posto que a falência da guerra às drogas só tem trazido como solução mais Direito Penal – primeiramente desmistificando a natureza científica de suas disposições, que parecem mais uma estratégia de guerra do que algo criado para o aprimoramento da sociedade.

2. Forjando um tipo penal

A Convenção para a Repressão do Tráfico Ilícito das Drogas Nocivas, realizada em Genebra, em junho de 1936, marca o surgimento de diversos padrões mantidos constantes desde então, influenciando, engessando e tornando igual o Direito Penal em todo o mundo no que diz respeito às drogas.

Primeiro, marca a morte da soberania dos países com relação à questão das drogas. O arcabouço burocrático internacional de comitês e subcomitês se consolida a ponto de acabarem-se os debates prévios a cada convenção (McAllister, 2000), pois, a partir de então, o comitê respectivo já traria um esboço de tratado devidamente aprovado pelo burocrata de plantão.

A burocracia se autoalimenta, e aquela Convenção já era resultado da iniciativa da Comissão Internacional de Polícia,criada em 1923, e posteriormente transformada na Interpol (Idem). Não por acaso nascia para o mundo a figura do traficante de drogas, que iria ocupar o imaginário policial e social até hoje, demonizado paulatinamente a cada reunião.

O chefe da delegação norte-americana na Convenção, Harry Anslinger, era um policial – psicótico, neurótico e traumatizado (Hari, 2015) – comandante da polícia de drogas dos EUA, buscando “uma perfeita identidade entre os critérios imperantes nos Estados Unidos e os defendidos pela autoridade internacional” (Escohotado, 2008, p. 75), na época a Liga das Nações.

Era a polícia criando o fato, o agente e as circunstâncias que ela mesma deveria policiar e reprimir. A imagem de um sistema em que as leis são feitas de forma científica, para serem julgadas por um Judiciário imparcial, e executadas por uma polícia isenta, cai por terra. Nada de científico foi considerado na história da proibição das drogas, mas somente interesses econômicos somados a concepções policiais e morais.

O Direito Penal, que deveria ser um limite ao jus puniendi, construído pela própria polícia, transforma-se em instrumento do desejo de punir.

No entanto, o que realmente marcou o nascimento do Direito Penal da guerra às drogas foi o debate travado sobre a necessidade de se especificar o dolo de comércio como elemento do tipo tráfico. Para os americanos, a necessidade de se comprovar o dolo seria um obstáculo à condenação.

Nas palavras de Arnold Taylor, “alegando que a exigência em relação ao dolo tornaria impossível a condenação em muitos processos de narcóticos, os delegados americanos e canadenses lideraram o combate para a retirada de tal determinação do projeto” (1969, p. 293).

Assim nasceram os atuais 18 verbos da conduta típica do tráfico, para tornar qualquer pessoa que se aproxime de uma substância proibida um potencial traficante, para desobrigar a polícia de buscar outras provas contra o suposto comerciante e, enfim, para deixar nas mãos da polícia o poder de julgar quem efetivamente será o traficante.

Esses verbos, do atual art. 33 da Lei 11.343/2006, generalizam a definição de crime em completa violação do princípio da legalidade, que manda serem os tipos penais claros e objetivos. A norma, ao dizer bastar, para a condenação, a pessoa possuir drogas em desacordo com determinação legal, ou seja, retirando a necessidade de se provar qualquer desígnio do possuidor, evidencia um Direito Penal policial, facilitador de prisões, e não um instrumento de justiça.

O tipo penal de associação para o tráfico também nasce naquela Convenção, pois, como também defendeu a delegação dos EUA, os líderes dificilmente chegam perto das drogas e “seria impossível condená-los sem a possibilidade de acusá-los de associação” (Idem, Ibidem).

3. Sempre mais rigor

Na Convenção de 1936, o Brasil sequer tinha uma delegação. Mandou um representante, escolhido dois dias antes, certo de suas “cordiais relações e certa intimidade” com a delegação dos EUA, país que considerava ter “o melhor modelo para a nossa polícia repressiva” (apud Souza, 2002, p. 32).

Assim, sem qualquer estudo, despreparados e submissos, absorvemos a criminalização de uma conduta, que possui ação, elemento subjetivo, nexo causal e resultado, mas que pode ser punida apenas com a imputação de uma posse. No caso, o Direito Penal se moldou para a punição do comércio de drogas de uma forma tão cínica que admitiu 18 condutas sem a mínima necessidade, já que bastava o trazer consigo e o comercializar sem autorização legal para configurar o que se quis abranger com tantos verbos.

É o que Nilo Batista denomina de panpenalismo: “toda alteração no sentido da ‘multiplicação dos verbos’ é sintomática para panpenalismo da proposta, para o delírio de uma ilicitude contínua e inescapável” (1997, p. 137).

Aceito o padrão punitivista para o trato da questão das drogas, coube a nós por aqui, a fim de agradar os irmãos do Norte, agravar cada vez mais esse odioso crime. Daí a inclusão do comércio de drogas como crime assemelhado a crime hediondo foi um pequeno passo.

O amadorismo e o casuísmo de nossas legislações ficam claros quando assistimos a um debate sobre a elaboração de uma lei. Na Assembleia Constituinte não foi diferente: “A Nação está precisando moralizar os seus costumes, punir rigorosamente os criminosos violentos, que praticam atos libidinosos, que praticam o contrabando, o tráfico de tóxicos, que desagregam as famílias brasileiras, tudo isso tem de ser coibido” (Brasil, 1987, p. 15).

O legislador sequer imagina que a violência atribuída ao comércio das drogas tornadas ilícitas só existe porque estas foram tornadas ilícitas, mas que na relação comercial em si não há qualquer violência.

Contudo, foi nesse contexto, de uma moral tão seletiva quanto a prática da polícia na rua, que a compra e venda de determinadas folhas, pós ou líquidos foi equiparada a crimes como o homicídio, o latrocínio e o estupro, misturando em nossas penitenciárias pessoas que praticaram atos violentos com outras que estavam negociando, de forma voluntária, determinada mercadoria, em direta afronta ao texto constitucional (art. 5.º, XLVIII).

O sistema penitenciário, a bem da verdade, nunca entrou na consideração de ninguém, nem da polícia, nem do Legislativo, nem do Judiciário. Funciona como um buraco negro onde são jogados os problemas sociais e uns e outros bodes expiatórios, que tiveram o azar de cair na malha esfarrapada do sistema repressivo. Todos são esquecidos. Os problemas, apenas por instantes. É o efeito narcotizante do Direito Penal e do sistema penitenciário.

4. Conclusões

O encarceramento tem diminuído a legitimidade do Direito Penal e das instituições, já tão abaladas, facilitando o crescimento de outras – organizações criminosas – financiadas pelas mesmas substâncias escolhidas como proibidas, tornadas mais caras e lucrativas justamente pela proibição, mas o que tem importado é apenas a aparência de moralidade.

Manter a hipocrisia de uma política (polícia) direcionada a um imaginário mundo sem drogas custa caro, não só em valores financeiros, mas em vidas e em desorganização social. Contudo, como os que estão morrendo, encarcerados ou na guerra do dia a dia, não interessam ao Estado, este pode continuar fazendo de conta que se preocupa com o que chama problema das drogas, encarcerando.

O próprio bem jurídico dito tutelado, a saúde pública, expõe ao ridículo o Direito Penal, na medida em que o Estado que encarcera é o primeiro a demonstrar descaso para com a mesma saúde pública. E pior, encarcera quem vende um produto em um local onde esse produto também é vendido, e encarcera em locais que são uma das principais provas do descaso para com a saúde pública.

Um Direito Penal que se pretende ciência deve urgentemente denunciar a farsa da proibição das drogas, capaz de tudo e de alcançar todos que se aproximam de uma substância, ampliando o poder punitivo até o limite da arbitrariedade, igualando uma relação comercial a uma morte violenta e tornando irracionais a prática e o estudo de algo que deveria servir como instrumento de Justiça. O Direito Penal das drogas é instrumento de guerra.

Referências bibliográficas

Batista, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 5, n. 20, p. 129-146, out-dez 1997.

Brasil. Anais da Assembleia Constituinte (1987). Atas e Comissões. Brasília: Senado Federal. Centro Gráfico, 1987.

Escohotado, Antonio. Historia general de las drogas. Madri: Espasa, 2008.

Hari, Johann. Chasing the scream: the first and last days of the war on drugs. Nova York: Bloomsbury, 2015.

McAllister, William B. Drug diplomacy in the twentieth century: an international history. Nova York: Routlege, 2000.

Mill, John Stuart. Sobre a liberdade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

Souza, Jorge Emanuel Luz. Sonhos da diamba, controles do cotidiano: uma história da criminalização da maconha no Brasil republicano. 193f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia. 2012.

Taylor, Arnold H. American Diplomacy and the Narcotics Traffic, 1900-1939: a study in International Humanitarian Reform. North Caroline: Duke University Press, 1969.

Luís Carlos Valois
Mestre e Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Universidade de São Paulo – USP.
Membro da Associação de Juízes para Democracia – AJD.
Porta-voz da Law Enforcement Against Prohibition – LEAP.



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