INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 286 - Setembro/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Os danos constitucionais causados pela práxis do Direito Penal das drogas

Autor: Cristiano Avila Maronna

A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, diz o art. 156 do Código de Processo Penal, mas a aplicação prática da Lei 11.343/2006 obriga a pessoa flagrada com drogas a provar a finalidade de uso pessoal, sob pena de ser enquadrada como traficante.(1) Passados 10 anos desde sua entrada em vigor, as evidências indicam que o Judiciário brasileiro insiste em interpretar a Lei de Drogas em desconformidade com a Constituição Federal.

O chamado Direito Penal das drogas é um dos muitos exemplos das permanências autoritárias nas práticas judiciárias, que resistem às tentativas de (re)democratizar o Direito brasileiro.

O processo de redemocratização pelo qual se aprovou a anistia a crimes políticos, promulgou-se uma Constituição elaborada por um Congresso Constituinte livre e soberano e se restabeleceu o sufrágio universal para a escolha do Presidente da República, parece não ter alcançado parcela significativa do Poder Judiciário. Nossas práticas judiciárias e, muito especialmente, nossa cultura jurídica, permaneceram quase infensas aos influxos advindos de uma visão crítica do Direito e do papel exercido por seus operadores.

Pensada a partir do ponto de vista das classes sociais dirigentes, essa política criminal paleorrepressiva – em que a war on drugs é a principal protagonista na atualidade – é a expressão visível de um método de gestão das classes subalternizadas em um contexto de quase nenhuma tolerância e ordem em excesso, típico de estados autoritários. A questão social continua sendo caso de polícia e diante da ausência de políticas públicas capazes de dar concretude aos direitos sociais opta-se pela repressão penal, que aprofunda a exclusão e a desigualdade.

Não surpreende que a Marcha da Maconha tenha sido, durante alguns anos, sistematicamente proibida por decisões judiciais que alegavam risco de incitação ao crime e instigação ao uso de drogas. Somente em 2011, graças a ações propostas pela Procuradora-geral da República interina Deborah Duprat, a Suprema Corte impôs intepretação conforme a Constituição tanto ao art. 286 do Código Penal, quanto ao art. 33, § 2.º, da Lei 11.343/2006, para deles excluir qualquer significado que enseje a proibição de manifestações e debates públicos acerca da descriminalização ou legalização do uso de drogas (ADPF 187 e ADI 4.274).

Apesar de a Lei 11.343/2006 ter vindo ao mundo como uma positiva novidade, uma vez que a posse para uso pessoal não mais seria punida com prisão, a repressão ao tráfico de drogas foi incrementada, aumentando penas e restringindo direitos.(2) Foi necessário que a jurisprudência do STF se manifestasse no sentido de garantir direitos, para dizer que o tráfico de drogas não é incompatível com a liberdade provisória (HC 104.339, Pleno, rel. Min. Gilmar Mendes), com o regime inicial aberto de cumprimento de penas (HC 111.840, Pleno, rel. Min. Dias Toffoli), e mesmo com a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos (HC 97.256, rel. Min. Ayres Britto, que redundou na Resolução 5/2012, do Senado Federal). E, mais recentemente, para afastar as regras previstas para crimes hediondos e equiparados quando se trata do chamado “tráfico privilegiado” (HC 118.533, Pleno, rel. Min. Carmen Lúcia).

Na disfuncional mecânica de aplicação da Lei de Drogas, admite-se a presunção de tráfico violadora da regra do ônus da prova, como se depreende da Súmula 528 do STJ: “Compete ao juiz federal do local da apreensão da droga remetida do exterior pela via postal processar e julgar o crime de tráfico internacional”.

De acordo com o raciocínio sustentado pela Segunda Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal e cristalizado na Súmula 528 do STJ, quem importa droga ilegal pratica tráfico internacional de drogas (art. 33, caput ou, dependendo do entendimento, § 1.º, inc. I, nos dois casos combinados com o art. 40, inc. I). Isso porque o mero ato de importar drogas aperfeiçoaria o crime referido, sendo desnecessária a prova da destinação mercantil ou ânimo de lucro. Com base nesse entendimento, indivíduos que importaram pequenas quantidades de sementes de maconha para iniciar autocultivo com vistas a subsidiar o consumo pessoal estão sendo denunciados como traficantes internacionais.

Trata-se, a toda evidência, de interpretação desconforme a Constituição, uma vez que ao presumir a traficância, viola-se a presunção de não culpabilidade (art. 5.º, LVII, da CF), por meio da qual não se pode tolerar que finalidade diversa do consumo pessoal seja legalmente presumida.

A única possibilidade de interpretação conforme a Constituição da mencionada Súmula limita-se à acusação de tráfico internacional em casos de importação de drogas respaldada em indícios concretos de traficância. Quando ausentes indícios de tráfico, a importação deve subsumir-se ao art. 28 da Lei 11.343/2006, seja porque o caput menciona a conduta de quem “adquirir” drogas para consumo pessoal (o que incluiria o ato de importar drogas para consumo pessoal), seja porque o seu § 1.º incrimina a conduta de quem “para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade” de drogas. Há que se avaliar, em cada caso, se há tipicidade material ou se na hipótese incide o princípio da insignificância.(3)

Além da presunção de tráfico, destaca-se o protagonismo da quantidade como critério definidor da tipicidade, muito embora exista enorme carência de dados e pesquisas a respeito de padrões de consumo de drogas no Brasil. Em função da inexistência de dados cientificamente embasados, não é possível identificar, na jurisprudência, padrões quantitativos de cada droga capazes de definir um critério diferenciador entre usuários e traficantes. A quantidade é decisiva na classificação jurídica da conduta, mas, paradoxalmente, não há parâmetros objetivos extraíveis do conjunto de julgados envolvendo drogas, o que reforça a conclusão de que o âmbito de discricionariedade (subjetividade) que envolve essa definição é excessivo e favorece o arbítrio.

No que diz com a fixação de critérios objetivos de lege ferenda, na esteira do posicionamento externado pela Plataforma Brasileira de Política de Drogas a respeito do assunto,(4) receia-se que os limites sejam fixados em patamares muito baixos (em função da ausência de dados científicos a respeito dos padrões de consumo de drogas no Brasil), de modo a acentuar a presunção de tráfico. Além disso, ainda que os limites quantitativos sejam fixados em patamares adequados, mesmo nos casos em que o limite é ultrapassado, deve-se exigir a prova da traficância, porque a responsabilidade penal é – e deve ser –, sempre, subjetiva (nullum crimen, nulla poena sine culpa).

Também merece referência a relevância da percepção dos policiais envolvidos na ocorrência a respeito da destinação da droga – se para consumo pessoal ou para tráfico – na definição da tipicidade por parte do julgador, o que estabelece uma grave limitação ao direito à prova.(5) A avaliação policial sobre a destinação das drogas apreendidas funciona, aos olhos do livre convencimento judicial, como uma espécie de “rainha das provas”, muito embora, também nessa seara, inexistam provas empíricas capazes de confirmar a veracidade daquilo que no jargão jurídico é chamado de “tirocínio policial”.

A interpretação restritiva (e, por vezes, supressiva) de certas garantias, como é o caso da inviolabilidade do domicílio, também caracteriza a aplicação prática do direito penal das drogas. Tendo em vista que o tráfico de drogas é entendido como crime permanente, a invasão de domicílio nesses casos sempre seria lícita, o que, na prática, subverte completamente a garantia.(6) Em decisão recente (RE 603.616), o Pleno do STF, por maioria de votos, firmou a tese de que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”. A seletividade da intervenção penal acentua a distorção que faz a lei de drogas atingir de modo preferencial os mais vulneráveis,(7) de modo que, em relação a eles, a garantia da inviolabilidade do domicílio se mostra, na prática, inefetiva.

Ao fim e ao cabo, todas as esperanças estão depositadas no STF, que deve retomar o julgamento do RE 635.659, no qual se discute a inconstitucionalidade da incriminação da posse de drogas para uso pessoal, à míngua de alteridade. Malgrado o voto do relator, Min. Gilmar Mendes, propor a “administrativização” do art. 28 da Lei 11.343/2006 em relação a todas as drogas, os Ministros Edson Fachin e Roberto Barroso restringem a declaração de inconstitucionalidade apenas à maconha. Não parece haver razão jurídica para tal distinção, muito embora seja a tendência política da Suprema Corte no momento atual.

Em tempos de jurisprudência defensiva, por meio da qual os tribunais criam pretextos para restringir o acesso à Justiça Penal (vitimizando os mais pobres e necessitados), merece reflexão o resultado prático dessa mecânica de aplicação do Direito Penal das drogas: corrupção em larga escala em todos os níveis do funcionalismo público (com destaque para a polícia), índices de violência alarmantes (incluindo as altas taxas de letalidade e óbito policiais) e o superencarceramento, que levou o Brasil a se tornar a quarta maior população prisional do planeta (mais de um quarto dos presos respondem por tráfico de drogas, quase 70% no caso das mulheres encarceradas).(8)

Notas

(1) “Outra distorção (...) é a inversão do ônus da prova (...), afinal, se o portador não conseguir demonstrar que é para consumo pessoal (...), termina, muitas vezes, indevidamente punido pelo crime de tráfico” (Nucci, G. Leis penais e processuais penais comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 331).

(2) “A falta de efetiva punição ao usuário de drogas (...) pode levar, se houver rejeição à ideia lançada pelo legislador, os operadores do Direito, com o beneplácito da sociedade, ao maior enquadramento dos usuários como traficantes (...) prejudicando enormemente o âmbito da punição justa em matéria de crime envolvendo o uso de drogas ilícitas” (Nucci, op. cit., p. 313).

(3) No sentido de uma interpretação conforme a Constituição: “1. O Plenário do STF (RE 635.659-RG) discute a constitucionalidade da criminalização do porte de pequenas quantidades de entorpecente para uso pessoal. 2. Paciente primário e de bons antecedentes que solicitou pela internet reduzida quantidade de entorpecente para uso próprio. Possível violação aos princípios da intimidade, vida privada, autonomia e proporcionalidade. 3. Liminar deferida. (...) 9. Muito embora tenha ocorrido a suspensão do julgamento (diante do pedido de vista do Ministro Teori Zavascki), penso que o pronunciamento da Corte pode interferir na solução deste habeas corpus. 10. No caso de que se trata, o paciente, primário e de bons antecedentes, está sendo processado por importar da Holanda, pela internet, 05 (cinco) sementes de maconha e 0,52g de substância psicotrópica de uso proscrito no Brasil (“Sálvia ‘x’ – Salvironina ‘A’). Além disso, tendo em conta que o paciente importou em seu próprio nome e endereço tais substâncias pois “não tinha noção de que estava importando produto proibido”, o próprio magistrado da causa considerou que as condutas se subsumem, unicamente, ao art. 28 da Lei de Drogas. 11. Diante do exposto, considerando as particularidades da causa, sobretudo a reduzida quantidade de substância entorpecente para uso próprio, defiro a liminar para suspender a tramitação da ação penal na origem” (STF, HC 131.310, rel. Min. Roberto Barroso).

(4) Disponível em: .

(5) “A palavra e a avaliação dos policiais merece crédito, mas a garantia do devido processo legal pressupõe a avaliação feita por um juiz ‘neutro e desinteressado’, sobrepondo a avaliação de um ‘policial envolvido no empreendimento muitas vezes competitivo de revelar o crime’ – Justice Robert H. Jackson, redator da opinion da Suprema Corte dos Estados Unidos, caso Johnson v. United States 333 U.S. 10 (1948)” (STF, RE 635.659, excerto do voto do relator, Min. Gilmar Mendes).

(6) Cf. Tornaghi, Helio. Instituições de processo penal. 2.ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1978. v. 3, p. 268-269, segundo quem a regra do art. 303 do CPP de “duvidosa conveniência (...) interessa ao direito penal substantivo (...) no processo, o fato de o crime estar ocorrendo tem relevância apenas para a fixação da competência (...) uma coisa é a flagrância do crime e outra a prisão em flagrante”. Daí por que não se pode interpretar mencionada regra ampliativamente, de modo que se permita prender, em qualquer lugar e a todo tempo, alguém que seja suspeito de estar praticando um crime permanente.

(7) Sobre o perfil dos presos em flagrantes e condenados por tráfico de drogas no Brasil, vide: Tráfico de drogas e Constituição (UFRJ/UNB, 2009); e Prisão provisória e lei de drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo (NEV/USP, 2011).

(8) Infopen, jun. 2014. Departamento Penitenciário Nacional/Ministério da Justiça.

Cristiano Avila Maronna
Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP.
2.º Vice-presidente do IBCCRIM.
Secretário-executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas (PBPD).



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