José Carlos Abissamra Filho
Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos
Autor: Marília Montenegro Pessoa de Mello, Fernanda Fonseca Rosenblatt e Carolina Salazar L’armée Queiroga de Medeiros
A Lei Maria da Penha (LMP) surgiu no cenário jurídico nacional como resposta a fortes demandas populares exigindo um maior rigor Estatal contra a violência doméstica contra a mulher.(1) A lei aumentou o referencial quantitativo em abstrato da pena do crime de violência doméstica (art. 129, § 9.º, do Código Penal), diminuiu o rol de penas restritivas de direitos aplicáveis em substituição às penas privativas de liberdade, e inseriu uma agravante genérica no Código Penal. Possibilitou, ainda, a utilização da prisão preventiva quando o crime envolvesse violência doméstica e familiar contra a mulher, ampliando o rol de possibilidades das prisões cautelares, além de afastar expressamente a aplicação da Lei 9.099/1995.
Várias pesquisas apontam que os principais crimes praticados contra as mulheres no contexto doméstico são ameaça e lesões corporais leves.(2) Tais resultados, inclusive, foram confirmados pelas autoras em pesquisa de campo realizada no 1.º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife, onde os crimes com maior incidência são: ameaça (52,3%); crimes contra a honra (25,7%); lesão corporal leve (14,7%); e contravenções penais (2,1%).
Como a maioria dos crimes praticados é, notadamente, de menor potencial ofensivo, o afastamento da Lei 9.099 implicou a impossibilidade das medidas despenalizadoras. Ademais, o flagrante voltou a ser autorizado, de modo que passou a ser tangível uma pessoa presa por esses crimes.
Apesar das conclusões criminológicas acerca dos efeitos deletérios do cárcere no âmbito da LMP, a prisão foi reinventada.(3) Na mesma pesquisa de campo realizada na cidade do Recife, constatou-se que em 33,2% dos casos analisados o réu esteve preso durante o processo e, ao término da ação, com a prolação da sentença, em apenas 10,1% dos processos o réu foi condenado. Ressalte-se que nenhuma dessas condenações levou à privação da liberdade dos acusados, que tiveram suas penas suspensas ou substituídas por penas restritivas de direitos. A tendência, pois, é atuar em nome de uma suposta prevenção mediante uma contenção provisória, que consiste efetivamente em uma pena antecipada, ocasionando uma inversão do sistema penal onde tudo é motivo para a privação de liberdade.(4)
Ademais, os últimos dados divulgados pelo Ministério da Justiça(5) revelam que cerca de 2% da população carcerária do Estado de Pernambuco é composta por pessoas condenadas pela prática de crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. Tal impacto carcerário, para alguns, pode ser considerado irrisório, mas é conveniente sopesar que são crimes de menor potencial ofensivo que ocasionam essas prisões. No mais, quando se faz uma análise relacional da violência doméstica com outros crimes, constata-se que aquela, em números de encarceramento, só perde para os crimes tidos como alvo do sistema penal, como roubos e furtos, homicídios, crimes do Estatuto do Desarmamento e da Legislação de Entorpecentes (somados, estes crimes representam aproximadamente 80% das incidências nas prisões pernambucanas). Em representatividade, a violência doméstica ganha do latrocínio, das extorsões, das apropriações indébitas, do estelionato, das receptações, da quadrilha e de todos os crimes praticados contra a Administração Pública computados conjuntamente.(6)
Logo, a proibição de utilização dos institutos despenalizadores deixou de contemplar a crise do atual sistema punitivo. Não obstante as críticas(7) que possam ser tecidas aos institutos despenalizadores, o fato é que eles surgiram com a finalidade de descentralizar e minimizar a pena de prisão e é inegável que qualquer aprisionamento é menos vantajoso que sua aplicação.
A legislação enrijeceu bastante o texto legal e agravou a situação para o agressor. Com a vedação da aplicação da Lei 9.099/1995, surgiu a regra do cárcere necessário, proporcionando, assim, a expansão do Direito Penal; valeu-se, pois, de estratégias repressivas voltadas para um modelo de justiça que reproduz as desigualdades sociais e não soluciona os problemas que se propõe erradicar.
O problema da LMP não se limita à constatação dessa revitalização da prisão, mas também na afetação de quem a lei mais visa proteger: as mulheres em situação de violência. Inicialmente, destaca-se o estigma que macula a aura de um condenado e se estende, “de cortesia”, a sua família, que, por relacionar-se intensamente com o estigmatizado, chega a sofrer praticamente as mesmas privações na vida em sociedade que aqueles possuidores da categoria negativa de criminoso.(8) No caso da violência doméstica e familiar contra a mulher, essa proximidade é inegável; em sua maioria, inclusive, trata-se de parceiros íntimos de longa data.(9)
Por conseguinte, a mulher que já carrega o estigma da pobreza e da raça,(10) típico dos familiares selecionáveis pela justiça criminal, suporta ainda o forte estigma de ser companheira, mãe ou filha de um condenado.
Ademais, a crença de que, com a punição do agressor, a vítima poderá encontrar sua paz, é tão falaciosa quanto os ideais de ressocialização. A mulher ao ver o sofrimento do condenado no cumprimento da pena, sente-se uma violadora e não mais uma vítima, já que vislumbra o mal causado ao agressor muito mais gravoso que aquele que ele lhe causou.(11)
O aspecto da afetividade, inclusive, quando se trata de violência familiar contra a mulher, jamais pode ser ignorado. As mulheres tendem a não dissolver os vínculos familiares existentes após a intervenção punitiva. São, assim, incompreendidas por comparecer aos dias de visita na prisão e taxadas como irracionais e indecisas.(12) Ademais, quando parceiros íntimos, há ainda a privação do exercício habitual de sua sexualidade. Como depende de liberalidades da administração do presídio, apesar de sua previsão legal, a visita íntima praticamente não é possibilitada.
Ressalte-se, enfim, outro tipo de desamparo que assola a mulher: o de cunho econômico. O desfalque financeiro é ainda mais agravado quando a própria mulher se vê responsável pela promoção da defesa legal de seu familiar e pelo envio de mesadas à prisão; sem mencionar os custos adicionais gerados pelas viagens nos dias de visita.
Diversas pesquisas apontam que as mulheres violadas, ao tornarem público o conflito doméstico e familiar, normalmente não querem retribuir o mal causado pelo agressor, criminalizando-o e punindo-o. Elas desejam apenas romper o ciclo de violência e restabelecer o pacto familiar e a paz no lar.(13) Até mesmo aquelas que querem a separação, no caso de violência conjugal, não almejam a persecução penal do agressor; preferem que a coesão familiar seja mantida, especialmente quando há filhos envolvidos.(14)
A condição de vítima da mulher perpetua-se com a condenação de seu agressor; o vitimizador, no entanto, agora é o sistema penal. Paradoxalmente, portanto, o próprio instrumento reservado à proteção feminina irá penalizá-la. Nesse diapasão, necessário atentar para algumas pesquisas que apontam para a realidade de ocultação dos dados relativos à violência doméstica contra a mulher, que, ciente da rigorosidade da Lei, não procura o auxílio estatal.(15)
Ora, se o sistema penal não consegue solucionar os problemas que se propõe erradicar e as mulheres, vítimas da violência, em grande parte, não desejam a persecução penal de seus agressores, resta, unicamente, a irracionalidade da utilização de medidas punitivas. Assim, é importante que se ampliem as discussões a respeito das melhores formas de enfrentamento desses conflitos domésticos, especialmente as que consigam romper com as barreiras do sistema penal.
Notas
(1) Medeiros, Carolina; Mello, Marília. O simbolismo da Lei “Maria da Penha” no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher. In: Teixeira João Paulo Allain; Andrade, Louise Dantas de (Orgs.). Jurisdição, processo e direitos humanos. Recife: APPODI, 2014. p. 19-22.
(2) CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Relatório anual. Brasília, 2010; Campos, Carmen Hein de; Carvalho, Salo de. Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica: a experiência brasileira. In: Campos, Carmen Hein de (org.). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
(3) Garland, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan, 2008. p. 59-60.
(4) Zaffaroni, Eugênio Raul. O inimigo no direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
(5) Depen – Departamento Penitenciário Nacional. Censo penitenciário 2012. Brasília, 2012.
(6) Idem. Ibidem.
(7) Carvalho, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo: o exemplo privilegiado da aplicação da pena. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 47-49.
(8) Goffman, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988.
(9) Soares, Bárbara Musumeci. A “conflitualidade” conjugal e o paradigma da violência contra a mulher. Dilemas, v. 5, n. 2, p. 191-210, abr.-jun. 2012.
(10) Izumino, Wânia Pasinato. Justiça criminal e violência contra a mulher: o papel da justiça na solução dos conflitos de gêneros. São Paulo: Annablume/FAPESP, 1998.
(11) Mello, Marilia Montenegro Pessoa de. Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica. Rio de Janeiro: Revan, 2015
(12) Larrauri, Elena. Mujeres y sistema penal: violencia domestica. Montevidéo-Buenos Aires: IBdeF, 2008.
(13) Gregori, Maria Filomena. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e práticas feministas. São Paulo: Paz e Terra/ANPOCS, 1993.
(14) Moraes, Aparecida Fonseca; Sorj, Bila. Os paradoxos da expansão dos direitos das mulheres no Brasil. In: Moraes, Aparecida Fonseca; SORJ, Bila (coords.). Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009.
(15) Lemgruber, Julita. A mulher e o sistema de justiça criminal: algumas notas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 9, n. 36, p. 370-382, out.-dez. 2001.
Marília Montenegro Pessoa de Mello
Doutora em Direito pela Universidade
Federal de Santa Catarina.
Professora de Direito da UNICAP e da UFPE.
Coordenadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.
Fernanda Fonseca Rosenblatt
Doutora em Criminologia pela University of Oxford (Inglaterra).
Professora de Direito da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.
Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros
Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.
Professora de Direito da UNINASSAU e da AESO.
Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.
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