José Carlos Abissamra Filho
Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos
No início de junho, a polícia civil paulista registrou mais um furto, dentre os cerca de 19 mil cadastrados mensalmente na Capital pela Secretaria de Segurança Pública em São Paulo. Tratava-se de furto simples de aparelho celular. Lavrado o auto de prisão em flagrante, a autoridade policial arbitrou fiança no valor de R$ 1 mil, que acabou não recolhida.
A pessoa presa não foi apresentada à autoridade judicial competente para audiência de custódia, pois se tratava de um fim de semana, quando tais audiências, lamentavelmente, ainda não são realizadas em São Paulo. Nesse ponto, forçoso reconhecer, passou da hora de se dar integral cumprimento – e não apenas em algumas Comarcas do país e somente nos dias úteis – ao disposto no art. 7.º, 5, da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, e sua combinação com a Resolução 213/2015 do CNJ, que impõe a obrigatoriedade de apresentação de qualquer pessoa presa em flagrante delito, no prazo de até 24 horas, à autoridade judicial competente.
Levado, então, o caso ao plantão judiciário, o magistrado reputou regular o auto de flagrante e determinou que se aguardasse o recolhimento da fiança. Até aqui, nada a se destacar.
Pois bem. Ao analisar o pedido liminar, em habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública paulista para isentar o assistido do pagamento de fiança, já que pobre o detido, o Desembargador Damião Cogan não apenas indeferiu o pleito, mas, surpreendentemente, nos autos do habeas corpus, decretou a prisão preventiva do paciente, sem recurso ministerial (HC 0029463-31.2016.8.26.0000). Sim. Isso mesmo. Medida que desde a sua criação – que remonta a 1215 com a Magna Charta Libertatum, de João Sem Terra – foi concebida como instrumento de defesa para conter os arbítrios e ilegalidades do Estado, restou utilizada em sentido claramente contrário aos interesses do jurisdicionado.
A decisão teratológica acabou corrigida, dias depois, por meio de novo habeas corpus impetrado pela DPE/SP no STJ (HC 361.482), ocasião em que o Ministro Nefi Cordeiro, em decisão liminar, além de sustar a decisão de Segunda Instância, decretou a liberdade do paciente, isentando-o da fiança arbitrada. Sustentou o Ministro: “O Tribunal de segunda instância, contudo, sem recurso ministerial veio a deliberar, monocraticamente, pelo afastamento da mais benéfica cautelar de fiança e restabelecimento da prisão provisória, em clara situação de reformatio in pejus. É de se acrescer, que veio a pior condição ao processado a ser fixada em acesso recursal privativo da defesa, o habeas corpus. Deste modo, clara é a condição de decisão teratológica, pois violadora dos princípios da correlação e da non reformatio in pejus, expressamente fixados no análogo art. 617 do CPP”.
Embora o absurdo aqui retratado tenha sido prontamente afastado pelo STJ, chama a atenção que instrumento dos mais antigos da defesa, voltado à preservação do sagrado direito de ir e vir, tenha sido empregado em absoluto prejuízo de seu pretenso beneficiário. A solução fornecida pela Corte paulista, não há como negar, representou retrocesso atroz, inimaginável mesmo para aqueles que acompanham de perto o dia a dia da justiça criminal.
Mas, infelizmente, no campo das garantias e preservação de direitos, tão duramente conquistados ao longo da história com a internacionalização de direitos e, no Brasil, com a promulgação da Constituição cidadã de 1988, não raros são os retrocessos, especialmente em tempos em que parece ganhar força “um vale tudo” para fazer imperar o Estado punitivista.
Nesse cenário, vale lembrar, uma vez mais, o julgamento do HC 126.292, ocasião em que o STF, por maioria de votos, em fevereiro último, autorizou a execução provisória de decisão condenatória de Segunda Instância, ainda que pendentes de análise recursos nos Tribunais Superiores. A decisão afrontou duramente o princípio da presunção de inocência, garantia consagrada pela Constituição, sacramentada por diplomas internacionais e repetida inúmeras vezes em decisões judiciais como elemento fundador de um Estado de Direito. Preceito que parecia inabalável sofreu duro golpe da própria Corte Suprema, a quem cabe o papel de guardiã da Constituição.
Nesse particular, causa alento a recente decisão do Min. Celso de Mello – cujo voto restou vencido na polêmica decisão de fevereiro – o qual, agora, em 1.º.07.2016, concedeu medida liminar no HC 135.100/MG, para suspender a execução de mandado de prisão enquanto não transitar em julgado eventual condenação contra o paciente. Sustentou o Ministro decano: “A consagração constitucional da presunção de inocência como direito fundamental de qualquer pessoa – independentemente da gravidade ou da hediondez do delito que lhe haja sido imputado – há de viabilizar, sob a perspectiva da liberdade, uma hermenêutica essencialmente emancipatória dos direitos básicos da pessoa humana, cuja prerrogativa de ser sempre considerada inocente, para todos e quaisquer efeitos, deve prevalecer até o superveniente trânsito em julgado da condenação criminal”.
Não há dúvida, direitos e garantias fundamentais estão sob ataque. Decisões, muitas até comemoradas pela opinião pública, sob o argumento de que evitariam impunidades, geram, na realidade, manifesta insegurança, vulnerando garantias historicamente conquistadas, que constituem alicerces do Estado de Direito.
Inadmissível que o habeas corpus, concebido para evitar ou fazer cessar a violência ou coação à liberdade de locomoção, decorrente de ilegalidade ou abuso de poder, seja utilizado para prejudicar o paciente, como ocorreu na decisão do TJSP.
Ao mitigar a secular garantia, a pretexto de resguardar pretensa segurança pública, o tribunal paulista retirou do cidadão a mais importante proteção frente ao arbítrio estatal.
O IBCCRIM manifesta sua profunda preocupação diante da decisão preferida em sede de liminar no HC 0029463-31.2016.8.26.0000, representativa de verdadeiro retrocesso jurídico, ousadia inaceitável num Estado que ainda se proclama como Democrático de Direito.
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