INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 282 - Maio/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Detalhe ou dispositivo de gestão da vida? Breves reflexões sobre gênero e processos de estado

Autora: Natália Corazza Padovani

Este texto decorre de um posicionamento teórico o qual, todavia, é antes político, afinal, a teoria feminista se desenvolve na sua relação com o movimento feminista que, já há muito tempo, não se acerca simplesmente da “mulher como sujeito político do movimento feminista”. Antes, como elucida Butler (2010), teorias e movimentos feministas se debruçam na análise profunda da gramática que configura a possibilidade de reconhecer no outro o “humano”. Desde o léxico em que estamos, e para utilizar o exemplo clássico de Butler, um feto só é reconhecido como sujeito a partir da definição de seu sexo, o qual possibilita sua nomeação “de menino ou menina” e, logo, as perspectivas de desejo imputadas a esse sujeito. Desse modo, não é possível dizer que as análises tecidas no âmbito dos estudos de gênero e sexualidade são decorrentes de posicionamentos “meramente teóricos”. Antes, estas análises decorrem da tensão com o léxico que sujeita e subjetiva. Que nos “identifica”. Léxico o qual só pode ser subvertido pelos feminismos. Isso porque, é pelos feminismos que os “sujeitos outros” são articulados nas análises. Tal afirmação, antes de ser teórica/analítica é, assim como meu texto, política/etnográfica.

A primeira vez que entrei em uma penitenciária feminina foi em 2003, quando, aos 19 anos, interessada em produzir uma pesquisa sobre um tema até então “canônico” no campo – o “trabalho prisional” – me apresentei aos gestores responsáveis pela implementação de oficinas de trabalho nas prisões paulistas. Na época, sequer havia pensado em localizar meu campo etnográfico naquelas instituições prisionais que merecem ser nomeadas com a especificação de gênero “feminina”. Não. Eu queria estudar prisão de verdade desde um objeto de estudo de verdade: eu queria estudar prisão, aquela que não precisa da especificação de gênero, pois, por ser masculina, é genérica. O que não era(não é) genérico, contudo, eram(são) os corpos relacionados de acordo com o meu  pedido de pesquisa à Secretaria de Administração Penitenciária. Aos 19 anos, branca, estudante de Ciências Sociais da USP, eu não poderia entrar sozinha em uma prisão. Segundo os gestores, ou melhor, as gestoras, pois quase todas elas eram mulheres, ao entrar em uma prisão, eu estaria correndo um risco desnecessário. Diziam elas que “os homens eram mais monstruosos que as mulheres e que, inclusive por isso, a maior parte das oficinas de trabalho eram implementadas nas prisões femininas, pois os empresários tinham menos medo de entregar às mulheres ferramentas e recursos de suas empresas”, mais do que isso, elas me diziam que “as diretorias de disciplina e produção das prisões femininas também sentiam-se mais seguras para entregar às mulheres objetos como tesouras, alicates, facas, do que aos homens”. Por que então eu correria o risco de estudar oficinas de trabalho em uma prisão, quando a maior parte delas estavam nas prisões femininas?

A resposta das gestoras não fazia referência às oficinas de trabalho, antes colocavam meu corpo, informado por gênero, sexo, classe, raça, em relação aos corpos que informam a produção da prisão e da prisão feminina, todos também tramados por gênero, classe, raça, sexo. A resposta das gestoras me falava de como gênero era capilarizado na organização do trabalho e de demais “direitos e deveres” listados na Lei de Execução Penal. Era o que eu iria compreender ao longo dos anos em que fiz trabalho de campo nas Penitenciárias Femininas da Capital e de Santana, ao me deparar com os processos de deferimentos e indeferimentos às visitas e visitas íntimas, por exemplo. Estas últimas só passaram a acontecer nas prisões femininas como direito reconhecido e a ser assegurado pelo estado (desde que heterossexuais) em 2001. Ao mesmo tempo, nos pátios daquelas instituições femininas, eu recebia a recorrente reclamação de que os companheiros de muitas das minhas interlocutoras que estavam, como elas, presos, não conseguiam receber a visita de seus filhos, já que os funcionários das prisões alegavam que as pessoas responsáveis em levar os filhos na visita não eram “parentes de primeiro grau” daqueles que cumpriam pena, mas, sim, suas sogras, mães das esposas detidas nas prisões femininas que eu visitava.

Os dispositivos de gênero e sexualidade, portanto, pormenorizavam a prática de governo dos sujeitos presos em prisões ou prisões femininas, geriam acerca dos direitos a serem acessados segundo as tecnologias que alinhavam sexo-gênero-desejo às prisões femininas ou àquelas chamadas, apenas de prisões. Assim, ao longo de todo período em que fiz trabalho de campo em prisões femininas, me deparei com o fato de que gêneros e sexualidades estruturavam o léxico que produzia a prática política da instituição prisional.

Assim foi que em 2003 eu entrei pelos portões da penitenciária feminina do Tatuapé, a qual ficava bem ao lado da antiga Febem daquele bairro. Procedimento de vizinhança nada contingente, afinal, crianças, jovens e mulheres são sujeitos sempre aproximados nas práticas de governamentalidade. Tal aproximação ficava ainda mais evidente ao atravessar os portões daquela penitenciária feminina. Suas grades eram todas pintadas de rosa e suas paredes revestidas por desenhos da Turma da Mônica ou de personagens do Walt Disney. As assistentes sociais e psicólogas que me abriam os portões daquela instituição durante minhas primeiras incursões etnográficas, me diziam sobre a delicadeza daqueles desenhos pintados pelas “reeducandas” para que seus filhos se sentissem mais à vontade nos dias das visitas familiares. E eu, aos 19 anos, caminhava cercada pelas informações que me faziam ver aquela não como uma prisão de verdade. Afinal, como as delegadas da Delegacia Especializada da Mulher de Campinas falavam para Larissa Nadai (2012) durante o campo que ela fizera ali para o mestrado, o trabalho da DDM não era trabalho policial de verdade. Trabalho policial de verdade era investigar homicídio, tráfico de drogas, não casos de violência doméstica. Do mesmo modo, as assistentes sociais que me levavam para conhecer as oficinas de trabalho daquela prisão feminina, relatavam das dificuldades em controlar a instituição durante os períodos em que muitas das “meninas” ficavam menstruadas, das dificuldades em atender suas demandas familiares e de “mães”, da compaixão que sentiam por aquelas que não eram criminosas de verdade, antes haviam sido “enganadas ou influenciadas por seus companheiros”, estes sim, “bandidos de verdade”. Ou, mais do que isso, haviam feito tudo por amor aos seus filhos. Antes de serem criminosas, portanto, eram elas, nas falas das assistentes sociais, psicólogas e demais gestores públicos: “mães”.

Minhas primeiras incursões etnográficas às prisões femininas me diziam que se o “trabalho” era elemento fundante do discurso “ressocializador” da prisão, a “maternidade” o era na prisão feminina.

Claro que tais discursos e narrativas tornaram-se cada vez mais polissêmicos ao longo dos pouco mais de dez anos em que fiz campo em (ou com) penitenciárias femininas. Contudo, tais polissemias não se descolavam dos dispositivos de gênero e sexualidade. As descrições etnográficas expostas em minha tese de doutorado sobre redes de afetos vivenciadas através das prisões femininas de São Paulo e Barcelona, por exemplo, elucidam que sexualidade/gênero assim como os vínculos familiares, afetivos ou lastros relacionais aparecem, nas penitenciárias femininas, como espaços privilegiados para regulações ou para a gestão da vida daquelas que cumprem pena, mas também para suas articulações, negociações e agências. Se a sexualidade é dispositivo fundamental de gestão das populações, é também ferramenta de articulação da manutenção da vida. Enfim, sustento material/afetivo pode se fazer mediante trocas sexuais. As redes que tramam trocas de afeto, sustento material e relações sexuais são constantemente tensionadas e articuladas perante assimetrias de poder e os agenciamentos possíveis. Por derradeiro, muitas das estórias vividas através das prisões femininas em que fiz campo (assim como das prisões masculinas sobre as quais pouco/nada tem sido analisado desde essas perspectivas) falam de como os dispositivos de gênero e sexualidade, e suas intersecções com as demais categorias da diferença, configuram a gramática possível da gestão e dos escapes a ela na vida produzida através das prisões. Gênero, portanto, não é um detalhe que pode ser ignorado pela produção de saber acerca das instituições de justiça e estatais, sejam elas genéricas masculinas ou as outras tantas femininas (Beauvoir, 1967). Mas este breve texto é apenas um convite à reflexão que não se encerra aqui.

Referências bibliográficas

Beauvoir, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967. v. 2.

Butler, Judith. Deshacer el género. Barcelona: Paidós, 2010.

Nadai, Larissa. Descrever crimes, decifrar convenções narrativas: uma etnografia entre documentos oficiais da Delegacia de Defesa da Mulher de Campinas em casos de estupro e atentado violento ao pudor. Dissertação (Mestrado). Instituto deFilosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2012.

Natália Corazza Padovani
Doutora em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas.
Pesquisadora Colaboradora do Núcleo de Estudos sobre Gênero e Sexualidade da Universidade Estadual de Campinas – Pagu.



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