INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 281 - Abril/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Ativismo judicial e imparcialidade da jurisdição

Autor: Alexandre Fonseca Monteiro de Castro

A leitura de uma recente decisão monocrática proferida durante o plantão no STJ, denegando o pedido liminar de um Habeas Corpus, foi angustiante.

Não se tratava de um Habeas Corpus famoso, impetrado em caso midiático, mas em um caso “qualquer”, relevante apenas para o próprio paciente dos autos, pessoa que pode ter a vida completamente alterada, dependendo da decisão de mérito. Talvez seja também relevante para operadores do Direito, que, dependendo do resultado de mérito, haveria precedente desastroso do STJ. Trata-se do HC 330.093/MG.

No caso em questão, liminarmente se pedia a suspensão dos atos do procedimento originário até o julgamento do mérito do writ, pois o Magistrado de primeiro grau era supostamente parcial por ter substituído o Promotor de Justiça na produção de provas da acusação. Ao julgar o pedido liminar, alegou-se que o pedido não era plausível e assim o raciocínio foi explicado:

Entendo que os poderes instrutórios do juiz são compatíveis com o princípio da imparcialidade, pois ele não tem como saber quem será o beneficiado pelo resultado da diligência que ele houver eventualmente determinado”.([1] )

Após o trecho transcrito, a decisão foi ainda justificada com base no art. 234 do Código de Processo Penal. Apesar de a doutrina ser praticamente unânime, os tribunais brasileiros demonstram que ainda não superaram a grave ofensa que o exagerado ativismo judicial causa ao sistema acusatório de Processo Penal e, como consequência, ao princípio da imparcialidade do juízo.

O órgão julgador não deve e não pode buscar provas para a acusação, esta é a função do Ministério Público. Caso o faça, ele se tornará incorrigivelmente parcial. Um Juiz que substitui o Ministério Público na função de “elucidar os fatos” (leia-se, buscar as provas de autoria e materialidade do fato, ou seja, as provas de acusação), determinando produção de provas de ofício ou fazendo as perguntas para as testemunhas no lugar do Promotor de Justiça, é parcial para julgar o caso, afastando-se do sistema acusatório. Ora, o juiz acusador, no momento em que busca provas para acusação, jamais poderia apreciá-las com a necessária imparcialidade para se fazer um julgamento criminal justo. É natural que o Juiz dê mais valor às provas que ele mesmo coletou.([2] ) Por tal razão, Aury Lopes Jr. conclui que “somente haverá condições de possibilidade da imparcialidade quando existir, além da separação inicial das funções de acusar e julgar, um afastamento do juiz da atividade investigatória/instrutória”.([3] )

Cabe demonstrar a diferença entre a substituição do Promotor de Justiça pelo Juiz e as perguntas complementares formuladas pelo Juízo. Quando o juiz substitui o Promotor de Justiça na inquirição de testemunhas, não há qualquer dúvida que o julgador possa ter sobre o depoimento a ser esclarecida, pois ele próprio está o colhendo da forma como lhe interessa. É diferente, portanto, do momento em que o Ministério Público inquire a testemunha e, durante o depoimento, surgem alguns pontos obscuros que o juiz vê a necessidade de esclarecer.

Já é o suficiente para demonstrar o equívoco da decisão, ao permitir a atuação direta do órgão judicial na produção de provas substituindo o órgão do Ministério Público, acabando com o sistema acusatório. Mas há algumas falsas premissas das quais a decisão em questão parte que são ainda mais patentes e precisam ser discutidas.

Entendeu-se que a busca por provas de ofício pelo Magistrado não fere o princípio da imparcialidade porque “ele não tem como saber quem será o beneficiado pelo resultado da diligência que ele houver eventualmente determinado”. Ora, o raciocínio lógico demonstra o equívoco de tal premissa.

Por força de expressa disposição constitucional, vigora no sistema jurídico brasileiro o princípio da presunção de não culpabilidade. Como desdobramento do princípio, há ainda no processo penal o que comumente é conhecido como in dubio pro reo. Assim, como regra probatória do processo, cabe ao órgão da acusação comprovar a autoria do crime e sua materialidade, sendo certo que a ausência de provas beneficia o acusado. Logo, caso não haja prova nos autos, ou a prova seja de extrema fragilidade, o juiz deve absolver o réu. Ressalta-se que o juiz deve absolver o réu, não buscar novas provas. Consequentemente, quando o Juiz determina uma diligência para buscar provas, em regra, ele está beneficiando a acusação, pois não precisaria delas para absolver exatamente porque a ausência de provas seria o suficiente para a absolvição.

Também é completamente equivocada a premissa da qual parte a decisão plantonista de que o Magistrado não saberia quem será beneficiado pela diligência determinada por ele.

Ora, todas as diligências são determinadas por sujeitos que têm em mente um resultado a ser atingido. Eventualmente pode ocorrer de o resultado não ser o esperado e a prova colhida ser favorável à parte contrária, mas no momento em que se requereu uma diligência tinha-se em mente um resultado. Quando a Defesa arrola testemunhas, ela já espera qual será o teor dos vindouros depoimentos de suas testemunhas, ainda que possam ocorrer resultados não projetados ou esperados. Quando o Promotor de Justiça requer a quebra do sigilo bancário ele espera descobrir determinada irregularidade, ainda que a prova obtida acabe por demonstrar lisura nas relações bancárias do investigado; da mesma forma ocorre quando se requer a expedição de um Mandado de Busca e Apreensão. Ninguém planeja buscar provas aleatoriamente, todos os sujeitos processuais têm em mente o resultado que suas diligências alcançariam, ainda que eventualmente a prova colhida não seja aquela esperada.

O doutrinador Geraldo Prado já havia chegado a essa conclusão, quando afirmou: “Quem procura sabe ao certo o que pretende encontrar e isso, em termos de processo penal condenatório, representa uma inclinação ou tendência perigosamente comprometedora da imparcialidade do julgador”.([4] )

Assim, a premissa da qual parte a decisão monocrática proferida no plantão do STJ no HC 330.093/MG é equivocada e retrógrada. E é por isso que a leitura de uma decisão dessas, advinda do alto escalão do Poder Judiciário, é tão angustiante.

Alexandre Fonseca Monteiro de Castro
Bacharel em Direito pela UFMG.
Advogado criminalista.

Notas

[1] Decisão Monocrática denegando o pedido liminar do HC 330.093/MG, do STJ.

[2] Prado, Guilherme. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 137.

[3] Lopes Jr., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. vol. I, p. 132.

[4] Prado, Guilherme. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais cit., p. 137.



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