INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 281 - Abril/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

A Lei Maria da Penha completa nove anos: é possível trilhar caminhos para além de sua dimensão simbólica?

Autor: Isadora Vier Machado e Maria Lígia G. Granado Elias

No dia 22 de setembro do presente ano, a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, completa dez anos de vigência. Em breve, o Brasil também sediará a 4.ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres. Não nos esqueçamos, ainda, que, em 2015, a legislação penal brasileira passou a contar com uma nova qualificadora para o delito de homicídio, quando a Lei 13.104/2015 instituiu a qualificadora do feminicídio. Em seguida à aprovação, veio a sanção, pela Presidenta da República, sob a declaração: “Não aceitem a violência dentro e fora de casa. Denunciem, e vocês terão o Estado brasileiro ao seu lado” (Prado, 2015).

Esse quadro nos antecipa de modo resumido o panorama que vivemos, hoje, em termos de políticas de enfrentamento às violências domésticas e familiares contra mulheres no país. Uma cena em que as estratégias legais e as iniciativas políticas se entrecruzam e, em boa medida, se confundem, dando origem a novas perspectivas de acesso à justiça (Santos, 1986).

Então, diante da proposta de “ter o Estado ao lado das mulheres”, é que segue instaurada a controvérsia. A alternativa pela criminalização do feminicídio, somada ao processo de implementação da Lei Maria da Penha, tem levantado um conjunto de análises que põem em xeque as estratégias empreendidas pelos chamados movimentos feministas brasileiros. Ao mesmo tempo, vozes favoráveis, sob os mais diversos argumentos, aos processos de judicialização (cf. Rifiotis, 2007: 238) atribuem, muitas vezes, à dimensão simbólica um viés positivo – de mudança no imaginário popular.

O propósito deste texto é resumir e publicizar nossos argumentos, anteriormente trabalhados, em favor das sobreditas iniciativas. É importante ressaltar que não somos a favor da criminalização per se, e menos ainda creditamos a essa medida um papel solucionador dos problemas, porém, vemos nesse movimento uma atitude propositiva com conteúdo político importante para as mulheres, e essa dimensão é que procuraremos discutir aqui.

A sanção da Lei 13.104/2015 é acompanhada de críticas à falta de técnica jurídica e principalmente à sua representação no cenário de enfrentamento à forma mais extrema de violência contra as mulheres, como uma estratégia vazia e ineficaz (v., por todas, Karam, 2015). O consolidado de críticas à Lei do Feminicídio perpassa, sobretudo, uma discussão a respeito: (I) Da falência do sistema penal; (II) Da presença de um conjunto de falhas técnicas no corpo legal; (III) Da ausência de proteção específica aos homens, instituindo critérios desiguais na lei penal. Em síntese, essas mesmas alegações foram construídas mediante a aprovação da Lei Maria da Penha, há praticamente uma década.

Passamos, portanto, a tecer algumas considerações a respeito dessas inferências, a fim de perquirir até que ponto são intransponíveis ou não, para, adiante, debater a legitimidade das estratégias judicializantes dos movimentos feministas brasileiros, tendo em vista que a violência contra as mulheres constitui um fato social imerso em complexas relações de poder nas estruturas sociais e que, portanto, essa dimensão – aquilo que podemos chamar de dimensão política – deve ser iluminada em nossas análises.

Primeiramente, é imperioso firmar nossa concordância com a falência pragmática do sistema penal. Compartilhamos do entendimento de que ele não logra cumprir com sua promessa garantidora, porque viola diversos direitos, em razão da operacionalidade seletiva dos bens jurídicos. Não cumpre, tampouco, com sua função preventiva, porque a pena é incapaz de prevenir ou ressocializar, apenas reproduz a criminalidade e as relações sociais de dominação, com o intento de controlar seletivamente a criminalidade. Enfim, não cumpre, em geral, com sua promessa resolutória, porque não consegue, em boa parte dos casos, se sustentar como modelo válido de solução de conflitos, excluindo a vítima de uma posição atuante e participativa, causando-lhe ainda mais prejuízos (cf. Andrade, 2003).

Porém, é preciso lembrar que a inserção de determinadas categorias em lei (tais quais violência doméstica e familiar ou feminicídio) atende, notadamente, à reivindicação por uma mudança nominativa que contemple a existência do fenômeno e produza o juízo de valor correspondente no plano legal.

O segundo ponto, e, a nosso ver, um dos equívocos que maculam as leituras dos episódios de violência doméstica e conjugal, é que o sistema penal é desqualificado enquanto solução para o problema. Não temos dúvida de que, enquanto solução, esse meio não é – e jamais será – eficaz. Desenvolveu-se, ao longo dos anos, contudo, como uma importante estratégia de enfrentamento mais ou menos eficaz, que tem dado espaço, especialmente na América Latina, a reais possibilidades de desconstrução de paradigmas, a longo prazo, como fez, por exemplo, a Lei Maria da Penha, ao introduzir, junto de sua diminuta dimensão criminalizante, propostas preventivas e educativas (Machado, 2013: passim). Foi desse modo, inclusive, que as políticas nacionais começaram a substituir o termo combate pelo termo enfrentamento à violência.

No que toca às falhas técnicas, acreditamos que podem ser reputadas às negociatas que pautam o trabalho legislativo das mulheres nesse empenho pela categorização legal das várias formas de violência que costumeiramente sofremos em nossa sociedade. Veja-se, como exemplo, a supressão da categoria “gênero” no texto final da Lei do Feminicídio, com sua conseguinte substituição pelo “sexo feminino”. Destacamos que, ao contrário do que se supõe, tal supressão não decorre de uma falta de conhecimento técnico das parlamentares responsáveis pela proposta, pelo contrário, ilustra exemplarmente aquilo para o qual gostaríamos de chamar a atenção: estamos lidando com fatos sociais complexos, com sistemas complexos de dominação e poder. A lamentável troca da categoria “gênero” por “sexo” não deslegitima o feminicídio, na verdade, demonstra como houve manobras para diminuir a sua potência, o seu alcance, que vai além de uma posição meramente simbólica.

Do mesmo modo, não merece atenção a afirmativa de que as leis em questão instituem parâmetros desiguais entre homens e mulheres. O fenômeno da morte de mulheres por razão de gênero não atinge de modo equivalente os homens, já que mais de 40% do número de morte de mulheres na última década foi perpetrado por companheiros ou ex-companheiros (Waiselfisz, 2012).

Acreditamos que a produção normativa por mulheres e em favor de mulheres toma as estratégias judicializantes como um instrumento central, porque estas possuem um papel político importante para a construção do status da cidadania igual para todas(os), em determinadas circunstâncias. Esse papel, de reprovação, não é apenas um papel simbólico ou subjetivo na construção de um imaginário comum que reprova um crime. A questão é que a reprovação pública possui efeito concreto no aumento de segurança, confere possibilidades, direitos, e isso vai além de um sentimento subjetivo, passando por uma verdadeira redistribuição de poder. A questão tem efeito prático na medida em que aumenta as salvaguardas das mulheres, e essas salvaguardas são construídas de modo público, amplo, quiçá, diminuindo a deferência, o temor e a benevolência das mulheres em relação àqueles que devem ser seus iguais (sejam homens ou mulheres), e, principalmente, diminuindo o poder dos agressores.

Não estamos ingenuamente supondo que a questão se resolve com isso. Se, por um lado, a medida não corresponde a uma solução, e também carrega em si ambiguidades e limitações, por outro, constitui-se em um passo, uma medida, uma possibilidade de construção de novas formas de poderes, de cidadania e, portanto, de diminuição da dominação das mulheres.

Nancy Hirschmann (2003), autora feminista que discute o tema da liberdade, desenvolve uma abordagem em que a liberdade é compreendida como o ato de fazer escolhas, no entanto, não basta definir liberdade como a prerrogativa de escolher, é fundamental levar em conta o contexto em que a escolha é feita, e mais, a formação das escolhas envolve tanto as condições materiais em que estas são feitas como as condições internas de identidade e autoconcepção que dão origem aos desejos e vontades de quem escolhe (cf. Hirschmann, 2003, p. 199).

Tendo em vista a discussão sobre a lei que desenvolvemos neste artigo, a preocupação de Hirschmann com o contexto em que as escolhas são feitas e formadas nos coloca dois elementos importantes para pensarmos as dimensões materiais e políticas da lei. O primeiro elemento corresponde a perceber as barreiras, as desvantagens ou vantagens, o alto ou baixo custo de determinadas escolhas para os diferentes indivíduos em diferentes posições sociais, e a lei impacta materialmente nessa estrutura social, colocando novas possibilidades e incentivos. O segundo sentido é o de considerar o contexto como um elemento importante na formação da identidade, das autoconcepções individuais, ou seja, sua influência na formação das identidades, das preferências e escolhas dos sujeitos. Dessa forma, mesmo que a formação do sujeito possa ser compreendida como algo subjetivo, os efeitos da lei não são puramente simbólicos, mas impactam direta e materialmente na formação dessa subjetividade e portanto, da liberdade.

Ante tudo o que expusemos, esperamos ter contribuído para a construção de uma visão reflexiva a respeito da Lei Maria da Penha enquanto processo político complexo, diante de uma estrutura social que concebe o corpo das mulheres como território de ocupação, violência e morte (Segato, 2006).

Referências bibliográficas

Andrade, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

Hirschmann, Nancy J .The subject of liberty: toward a feminist theory of freedom. Princeton: Princeton University Press, 2003.

Karam, Maria Lúcia. Os paradoxais desejos punitivos de ativistas e movimentos feministas. Justificando. Disponível em: [http://justificando.com/2015/03/13/os-paradoxais-desejos-punitivos-de-ativistas-e-movimentos-feministas/]. Acesso em: 27 maio 2015.

Machado, Isadora Vier. Da dor no corpo à dor na alma: uma leitura do conceito de violência psicológica da Lei Maria da Penha. 282 f. Tese (Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas). Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2013.

Prado, Débora. Conquista: com sanção presidencial, feminicídio é tipificado no Código Penal brasileiro. Disponível em: [http://www.compromissoeatitude.org.br/conquista-com-sancao-presidencial-feminicidio-e-tipificado-no-codigo-penal-brasileiro/]. Acesso em: 10 maio 2015.

Rifiotis, Theóphilos. Derechos humanos y otros derechos:aporias sobre procesos de judicialización e institucionalización de movimentos sociales. In: Isla, Alejandro (org.). En los márgenes de la ley. Inseguridad y violencia en el cono sur. Buenos Aires/Barcelona/México: Paidós, 2007.

Santos, Boaventura de Sousa. Introdução à sociologia da administração da Justiça. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 21, Coimbra, 1986.

Segato, Rita Laura. Que es un feminicídio. Mora, n. 12, Instituto Interdisciplinario de Estudios de Género, Universidad de Buenos Aires, 2006.

Waiselfisz, Julio Jacobo. Mapa da violência 2012. Caderno complementar 1 – homicídio de mulheres no Brasil. São Paulo: Instituto Sangari, 2012. Disponível em: [http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_mulher.pdf]. Acesso em: 11 jun. 2015.

Isadora Vier Machado
Mestre em Direito, Estado e Sociedade pela UFSC (2008).
Doutora em Ciências Humanas pela UFSC (2013).
Professora adjunta de Direito Penal do curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Maria Lígia G. Granado Elias
Mestre em Sociologia Política pela UFSC (2008).
Doutora em Ciência Política pela USP (2014).
Pós-doutoranda do programa de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM).



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