INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 281 - Abril/2016





 

Coordenador chefe:

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Coordenadores adjuntos:

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Conselho Editorial

O início do julgamento da inconstitucionalidade do crime de porte de drogas para uso próprio (art. 28 da Lei 11.343/2006)

Autor: Marcelo Almeida Ruivo

No dia 20.08.2015, o Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento do Recurso Extraordinário 635.659, que avalia a inconstitucionalidade do crime de porte de drogas para uso próprio. Trata-se de um assunto que pode ser tematizado pela dogmática penal, política-criminal e criminologia. Considerando que os votos prolatados até o momento demonstraram-se bem informados acerca do fenômeno da toxicodependência, assim como reconhecedores da ampla tendência criminológica e político-criminal internacional contemporânea, o objeto deste breve comentário cinge-se a questões dogmáticas. Para isso, adota-se divisão temática semelhante à metodologia do juízo de proporcionalidade, primando por uma fundamentação que radica nas especificidades disciplinares do direito penal.

1. A indefinição do bem jurídico – A compreensão exata do bem jurídico consiste em ponto fundamental ao julgamento da figura típica. Somente a partir da identificação do bem( [1] ) é que se pode proceder à avaliação do merecimento e do carecimento de proteção, das formas de ofensa e, eventualmente, do grau de dignidade de tutela penal.( [2] ) Duas são as hipóteses mais prováveis: saúde individual e saúde coletiva. Ainda que não se questione ser a saúde individual um valor antropologicamente reconhecido na sociedade brasileira, há sérias dúvidas acerca do seu merecimento e carecimento de tutela penal, bem como dos seus limites legítimos de proteção. O problema acentua-se quando a ofensa parte do próprio titular, pois decerto não basta ser um valor reconhecido para ser um bem jurídico digno de tutela penal. Veja-se que mesmo a vida humana não é merecedora de proteção na sua inteireza. Por exemplo, não existe, nas sociedades plurais e democráticas, qualquer interesse na punição daquele que tenta o suicídio, mas, sim, apenas daqueles que lhe instigam e auxiliam.( [3] ) Igualmente, o fato de o patrimônio ser absolutamente necessário à sobrevivência individual e coletiva no nosso modelo econômico não torna o titular exclusivo do bem impossibilitado de danificá-lo ou destruí-lo, desde que não ponha em perigo a vida e o patrimônio de outros.

Especificamente, quanto à saúde individual, questiona-se: (1) pode o titular ofender o seu próprio bem – colocar em perigo (v.g., trabalhar em excesso por mera ganância) ou lesionar (v.g., retirar uma costela, de cada lado, para fins estéticos) – ou consentir que lhe ofendam?, (2) qual a razão de o direito penal não proibir uma série de condutas sabidamente ofensivas à saúde individual (v.g., o abuso de álcool, de tabaco, de medicamentos, de hormônios, de alimentos com alto índice de glicemia e hipercalóricos)? A resposta da primeira questão é certamente afirmativa, caso se atente imediatamente aos princípios constitucionais da intimidade e da vida privada (art. 5.º, X, da CF) – bem destacados no voto do relator. Aliás, já se poderia referir mediatamente a autonomia e a liberdade pessoal para o livre desenvolvimento da personalidade (arts. 1.º, III, e 5.º, caput, da CF). Tais valores constitucionais concretizam-se em conceitos da dogmática penal relacionados à atipicidade, seja na autolesão, seja no consentimento do ofendido, que aparece cumulado na mesma pessoa do ofensor nos casos de autolesão. O fundamento da primeira questão permite aprimorar o entendimento da segunda. Embora seja indiscutível a ofensa à saúde individual, não se cogita a criminalização dessas condutas. Isso decorre do direito de disposição dos bens próprios, inerente à autonomia individual do ser humano na orientação da sua vida privada, com longa tradição filosófica. Por exemplo, Stuart Mill assevera que o “indivíduo é soberano”sobre si mesmo, sobre o seu próprio corpo e mente”.( [4] ) Nesse sentido, na dogmática jurídica, ressalta-se que a tarefa do direito penal seria apenas “evitar que alguém seja lesado contra a sua vontade”, e, portanto, aquilo que acontece segundo a sua vontade “não diz respeito ao Estado”.( [5] )

O voto do relator identifica a saúde pública como o bem jurídico, o que se lastreia inevitavelmente na soma das saúdes dos indivíduos e, portanto, coloca outra questão. Se o indivíduo está autorizado a ofender a sua saúde individual, por que não poderia ofender a saúde pública exatamente naquela quota-parte da sua saúde que lhe é disponível? Desconsiderar a noção concreta de bem individual disponível para acolher uma noção abstrata supraindividual – ainda que inevitavelmente referenciada na pessoa – arrisca solapar o direito individual de decisão da vida privada. O valor de dimensões maiores não pode encobrir as parcelas disponíveis da qual é composto.

2. A indefinição da forma de ofensa do eventual bem jurídico-penal – O problema da incerteza quanto ao tipo de ofensa típica e à consumação do crime decorre da imprecisão do bem jurídico, mas também do efetivo conhecimento da técnica de tutela. O voto do relator trata, por vezes, do princípio da lesividade – tradução do conceito alemão de Schadensprinzip –, em outras, do risco à saúde e, ainda, dos crimes de perigo abstrato. Para entender os limites de legitimidade constitucional dos crimes de perigo abstrato, mais adequado é convocar um princípio de especificidade técnica superior à lesividade. O princípio da ofensividade – para além de ser critério expresso na Constituição (art. 98, I, da CF)( [6] ) – é amplamente referido na doutrina nacional e italiana, situada na base do Código Penal brasileiro. Determinadas categorias penais, pacíficas entre nós, seriam incompreensíveis sem esse princípio (v.g., crimes pluriofensivos, tentativa inidônea, crime impossível). Inclusive, a Corte Constitucional italiana( [7] ) e o Supremo Tribunal Federal( [8] ) já decidiram corretamente com base na ofensividade. A lesividade, por sua vez, não tem o mesmo estatuto constitucional da ofensividade e explica apenas uma parte das condutas ofensivas previstas na lei penal, os delitos de dano. Isto é, os crimes podem apresentar duas dimensões ofensivas ao bem jurídico: dano ou lesão (parcela contemplada pela lesividade) e perigo de dano ou lesão.

A constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato não advém apenas do interesse político-criminal na tutela de bens supraindividuais, antes das próprias categorias da dogmática penal. A dimensão técnica da ofensividade afirma que não há crime sem lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico. Os crimes de perigo abstrato são delitos em que a redação do perigo – ao qual o bem jurídico está submetido – não está especificamente determinada no tipo, diferentemente do perigo concreto ou concretamente descrito (v.g., perigo de contágio de moléstia grave – art. 131 do CP). O fato de o perigo de lesão ser abstratamente previsto no tipo (v.g., gestão fraudulenta – art. 4.º, caput, da Lei 7.492/1986) não significa a retirada da exigência de verificação do resultado de perigo de lesão, permitindo que a condenação criminal pudesse se fundar na mera realização da conduta ou no perigo apenas legalmente presumido. A técnica de tutela do perigo abstrato não se ancora no mero “risco de lesão”, na “potencialidade ofensiva” ou na mera desobediência à lei, senão na efetiva existência do resultado ofensivo de perigo de lesão. Portanto, é necessária a comprovação de que houve, ao menos, «possibilidade não insignificante de dano ao bem»,( [9] ) de modo que o crime não se consuma diante da simples realização da conduta, sem qualquer produção do resultado perigoso ao bem jurídico. Deve-se aceitar a prova da inexistência do perigo no fato em concreto, pois, caso contrário, deixaria de ser a punição da desvaliosa criação do perigo para ser a simples presunção de algum perigo ao bem jurídico.

O conhecimento do bem jurídico e da ofensividade permite olhar o problema com mais precisão. Questionamento interessante diz respeito ao grau de perigo de lesão à saúde coletiva que a conduta de portar drogas para consumo próprio deve possuir para superar o perigo penalmente insignificante. Independentemente do bem jurídico e do parâmetro quantitativo ou qualitativo da droga que se estabeleça, admitir a ofensa de dano ou de perigo de dano não afirma a legitimidade da intervenção penal na matéria.

3. A especificidade da análise da proporcionalidade no direito penal – É elogiável a proposta de convocação da proporcionalidade, cuja avaliação não deve suplantar as particularidades disciplinares do direito penal. Ao contrário, a melhor execução da tarefa pressupõe, ainda que implicitamente, o rigor oferecido pelos conceitos de bem jurídico, ofensividade, técnica de tutela, resultado delitivo e etc. Aliás, a tridimensionalidade do juízo de proporcionalidade – concretizada em adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito da medida – encontra fecundo paralelismo nas categorias penais do merecimento, do carecimento e da dignidade da tutela penal.( [10] ) Primeiro, averigua-se se o bem jurídico é merecedor de tutela penal – já que nem todos os bens previstos na Constituição merecem resguardo penal – e se o direito penal seria adequado para a proteção.( [11] ) A saúde, quer na dimensão individual, quer na dimensão coletiva, merece proteção jurídica, mas não proteção especificamente penal quando se trata de uma autolesão. A inadequação do direito penal ao cumprimento da finalidade de diminuição do uso de drogas é patentemente fundamentada nos votos.( [12] ) Segundo, mesmo que eventualmente viesse a ser considerado o bem merecedor de tutela penal e a intervenção penal adequada, dever-se-ia passar para a segunda análise. Seria o bem carecedor de tutela especificamente no grau restritivo penal e igualmente o direito penal necessário para a sua proteção? Nem a saúde do usuário carece de proteção penal – já que se situa em espaço de intimidade e da vida privada –, nem o direito penal é meio necessário para resguardar a saúde pública neste caso. Conforme demonstram as melhores investigações criminológicas, se o direito penal é inadequado e ineficiente na proteção da saúde do usuário da droga, por rigor lógico também não pode ser considerado um meio necessário. Ademais, necessárias para tal fim são outras medidas – v.g., o irrestrito acolhimento do dependente químico nos serviços de saúde estatais – que a criminalização acaba por impedir. Por fim, é o momento da avaliação da eventual dimensão de tutela que deveria ser conferida – em que grau de dignidade seriam legítimas a restrição da liberdade e a proteção do valor –, o que, na gramática dos direitos fundamentais, significa o juízo de proporcionalidade em sentido estrito.( [13] ) A partir dos dados oportunamente trazidos nos votos dos Ministros Mendes, Fachin, Barroso, conclui-se que a intervenção na liberdade individual é demasiada em relação à suposta proteção do bem jurídico. Para além disso, o altíssimo custo da atividade estatal e o exagerado índice de encarceramento não conseguiram atingir a diminuição do consumo, que meios terapêuticos diversos da justiça criminal poderiam auxiliar.

É exatamente por tudo isso, e, ainda mais, pelo direito penal não poder servir de guardião de interesses morais e de repressor de escolhas pessoais no desenvolvimento da personalidade, que o reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/2006 parece ser a decisão mais adequada à preservação dos princípios do direito penal e dos direitos constitucionais do cidadão.

Marcelo Almeida Ruivo
Doutorando em Ciências Jurídico-Criminais na Universidade de Coimbra, bolsista da FCT (Portugal) e DAAD (Alemanha).
Professor de Direito Penal nas Faculdades de Direito da Ulbra (Torres) e do IPA (Porto Alegre).
Pesquisador junto ao Max-Planck-Institut (2011-2012, 2014 e 2016).

Notas

[1] A categoria do bem jurídico confere apenas condições de dizer se é um valor tutelável pelo direito penal, já o estudo das formas de violação e de proteção do bem depende da subsequente análise da ofensividade.

[2] Para uma exposição detalhada de cada um dos elementos enunciados, ver Ruivo, Marcelo Almeida. Criminalidade financeira: contribuição à compreensão da gestão fraudulenta. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 43-45.

[3] Da mesma forma, por exemplo, Pereira, Rui. Descriminalização do consumo de droga. Lieber discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, 2003. p. 1.161; v. Hirsch, Andrew. Paternalismo direto: autolesões devem ser punidas penalmente? RBCCRIM, v. 67, 2007, p. 18.

[4] Mill, John Stuart. On liberty. Oxford: OUP, 2008. p. 14, 17 e 104. Especificamente, em sentido crítico ao “paternalismo” penal, Lacey, Nicola. State punishment.London: Routledge, 1994. p. 146-147; Husak, Douglas, Overcriminalization, the limits of the criminal law, Oxford: Oxford Univ. Press, 2008. p. 88 e ao “paternalismo legal”, Feinberg, Joel. Harmless wrongdoing, The moral limits of the criminal law, New York: Oxford University Press, 1990, v. 3. p. 16-17.

[5] Roxin, Claus. Strafrecht, Allgemeiner Teil,v. 1, 2006, p. 24, n. 32.

[6] Ruivo, Marcelo Almeida. Criminalidade financeira, cit., nota 2, p. 72 e ss., sobretudo n. 220.

[7] Corte Costituzionale, Sentenza 5-8 luglio 2010 (Cassazione Penale, 2010, v. 11, p. 3.746).

[8] STF, ROHC 81.057-8, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 29.04.2005, Ement. 2189-2.

[9] D’Avila, Fabio. Ofensividade e crimes omissivos próprios.Coimbra: Coimbra Ed., 2005. p. 170, no mesmo sentido, Ruivo, Marcelo Almeida. Criminalidade financeira cit., nota 2, p. 159.

[10] Detalhadamente em Ruivo, Marcelo Almeida. Criminalidade financeira, cit., nota 2, p. 37-54.

[11] Ruivo, Marcelo Almeida. Criminalidade financeira, cit., nota 2, p. 44-45.

[12] Também, no sentido da inadequação do direito penal, v. Hirsch, Andrew. Paternalismo direto, cit., nota 3, p. 19 e, da excessiva punição, Husak, Douglas. Overcriminalization, cit.,nota 4, p. 16.

[13] Ruivo, Marcelo Almeida. Criminalidade financeira, cit., nota 2, p. 43 e 52.



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