INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS

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Boletim - 281 - Abril/2016





 

Coordenador chefe:

José Carlos Abissamra Filho

Coordenadores adjuntos:

Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos

Conselho Editorial

Me ne frego: a presunção de inocência apunhalada pelo STF

Autor: Salah Hassan Khaled Junior

Me ne frego é um lema fascista italiano. Seu significado pode ser traduzido como “pouco me importa”. A frase indica a necessidade de ir avante: a superação e o desdém pelos riscos, bem como a eleição do combate como valor que supera todos os demais. No fascismo não há lugar para os fracos e para a fraqueza. Não há sequer lugar para o indivíduo: o Estado é tudo. Ele representa o bem comum, que está acima dos interesses individuais.

Quando o Supremo Tribunal Federal relativizou a presunção de inocência com a decisão de 17 de fevereiro de 2016, fez mais do que apunhalar um direito fundamental: tristemente recepcionou um legado autoritário de processo penal, inadvertidamente ou não. Ao negar o HC 126.292, o STF decidiu pela possibilidade de cumprimento de sentença condenatória após o julgamento de apelação. A maioria dos ministros – em apertado placar de 7x4 – se deixou seduzir pela vontade de satisfazer a “opinião pública” e, de forma velada, disse que pouco importava se era necessário vulnerar direito fundamental para combater o mal, ou o que é percebido como manifestação do mal. Um trecho do voto do relator não deixa margem para dúvida: conforme o Ministro Teori Zavascki, é preciso “atender a valores caros não apenas aos acusados, mas também à sociedade”.

Por mais que o Ministro possa acreditar que de algum modo corresponde a anseios sociais ou atende à “vontade popular” – uma missão que certamente não lhe cabe –, a inaceitável argumentação de primazia de supostos direitos da sociedade sobre direitos individuais consiste em um dos núcleos do discurso autoritário. Ela literalmente produz uma espécie de cisão entre “bons” e “maus”: aceita que para os “inimigos” pode ser reservado um tratamento degradante, uma vez que supostamente representam uma ameaça para os demais. A forma com que esse ideal é recepcionado na releitura do STF é clara: foi (re?)afirmada uma distorcida presunção de culpabilidade que permite a execução antecipada de decisões condenatórias, ainda que exista recurso pendente para instâncias superiores. A conexão entre fundamento explicitado e solução adotada não deixa margem para dúvida: a segregação do acusado é percebida como um expediente necessário para a “segurança” da sociedade. A decisão simplesmente reescreve o art. 5.º, LVII, com atribuição violenta de sentido que ultrapassa completamente o limite interpretativo legal e constitucionalmente admissível: apunhala a presunção de inocência e “reinventa” o trânsito em julgado, em prejuízo do acusado.

O entendimento remete ao esplendor máximo da maquinaria inquisitória, cuja lógica era de gradação contínua e permanente de culpabilidade: não era possível que alguém fosse equivocadamente considerado objeto de suspeita e cada confirmação dos indícios originais no curso do processo fortalecia a “verdade” inicial. Cada etapa percorrida provocava alguma espécie de punição e consolidava a imagem preestabelecida, que sempre era confirmada no resultado final.

É preciso se acautelar contra devaneios autoritários. Não interessa se as aventuras são empreendidas em nome do “bem” e da “segurança”: o que importa é o potencial que os argumentos em questão representam para vulnerar a democracia e os direitos fundamentais que são inerentes a ela. Em pleno cenário democrático-constitucional, permanecemos reféns de um pensamento simplificador e binário, altamente capacitado para a destruição de vulneráveis. Em outras palavras, é espantoso constatar que o fascismo penetra no Supremo, Corte cuja tarefa maior deveria consistir na defesa incondicional de direitos fundamentais.

Existe uma história por trás do discurso que opõe a sociedade e seus inimigos. Ela conforma um legado autoritário que demonstra que o utilitarismo empregado em nome de um suposto “bem comum” é indissociável de regimes e propósitos autoritários. As intenções salvacionistas de defesa da “sociedade” de seus “inimigos” remetem literalmente a milhares de anos atrás. Propósitos supostamente nobres produziram incontáveis cadáveres ao longo dos últimos séculos de história: o extermínio massivo de indesejáveis decorreu diretamente do exercício verticalizado de um poder punitivo discursivamente justificado pela intenção de tutela do bem-estar social.

As sementes do tratamento diferenciado de inimigos podem ser encontradas em Roma, especificamente na Monarquia e no Império: com a cognitio e a cognitio extraordinem surgiram as bases do que viria a ser o processo inquisitório alguns séculos depois. Preservado pela Igreja após a queda do Império Romano, o aparato foi reintroduzido no século XIII para salvar o mundo do pecado, combatendo a heresia e assegurando o eventual triunfo da totalidade cristã, que não deixava margem alguma para a sobrevivência de quem era considerado desviante da “verdadeira” fé.

A Inquisição foi fundada precisamente com base na dicotomia entre a sociedade e seus inimigos, como pode ser percebido na obra de Nicolau Eymerich, o Directorum Inquisitorum, que sistematiza os postulados do algoritmo inquisitório em um manual: “[...] é preciso lembrar que a finalidade mais importante do processo e da condenação à morte não é salvar a alma do acusado, mas buscar o bem comum e intimidar o povo (ut alii terreantur). Ora, o bem comum deve estar acima de quaisquer outras considerações sobre a caridade visando o bem de um indivíduo”.([1] ) Semelhantes ideias são esboçadas por Francisco Campos na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal de 1941: “Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum”.([2] ) Discuti de forma aprofundada a relação entre os dois projetos político-criminais acima em minha tese de doutorado, publicada pela editora Atlas com o título de “A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial”.([3] )

A proximidade entre a dicotomia acima exposta e o trecho extraído do voto do Ministro Teori Zavascki é impressionante: horizontes antidemocráticos ganham ares de legitimidade com base em uma grosseira simplificação que autoriza uma cruzada contra as liberdades individuais em nome do bem-estar social. Por mais que possa soar sedutora a ideia, a história mostra o quanto é catastrófica a assunção dessas premissas.

Eu poderia convocar os mortos. Chamá-los para o diálogo e tentar ouvi-los, como fazia o grande historiador francês Michelet. Mas há uma alternativa melhor. Deixar que o próprio Vicenzo Manzini estruture boa parte do relato. Como orgulhoso herdeiro da tradição inquisitória e arquiteto dogmático do fascismo italiano, certamente ele é mais capacitado do que qualquer um para desvelar as entranhas de uma estrutura processual penal autoritária que literalmente se perpetua por milhares de anos sem qualquer sinal de esmorecimento. A proximidade entre a letalidade dogmática de Manzini e o “novo entendimento” do STF é facilmente perceptível, como procurarei demonstrar nos próximos parágrafos.

Todo projeto persecutório é anunciado como promessa de salvação. Sempre são construídas justificativas que remetem ao núcleo autoritário anteriormente referido. Sua serventia é visível: permite a legitimação do ilegitimável como urgente remédio para as mazelas do corpo social. Perceba como semelhante estrutura de pensamento também povoa o imaginário fascista de Manzini: para ele, o processo inquisitório se desenvolveu como verdadeira necessidade social, sobre a base do processo acusatório, conservando dele as formas que eram compatíveis com sua estrutura. Ele considera que o processo inquisitório oferecia melhores meios que o acusatório para uma eficaz repressão da delinquência e estava em maior conformidade com o espírito dos tempos e do regime que sucedeu às chamadas liberdades municipais.([4] ) O cenário retratado por Manzini relata a implementação da maquinaria inquisitorial de forma plenamente justificada: “imposto por evidente necessidade, o processo inquisitório prevaleceu sem discussão na prática italiana dos séculos seguintes, até o século XIX”.([5] )

Manzini considera que o processo inquisitório era mais minucioso, extenso e complexo que o acusatório.([6] ) Suas “vantagens” para o combate ao inimigo em nome do “bem comum” são inúmeras, como ele relata detalhadamente. O instituto da custódia preventiva não tinha uma disciplina fixa, ficando ao arbítrio do juiz, que procedia de acordo com a qualidade das pessoas, da gravidade do delito etc.([7] ) O interrogatório do acusado podia ser precedido ou seguido de tortura, que era inclusive empregada contra testemunhas reticentes ou suspeitas.([8] )

De fato, o engenho inquisitório era repleto de qualidades para expurgar o pecado do mundo: juntamente ao processo inquisitório formal foi introduzido um procedimento inquisitório sumário, para os casos em que a responsabilidade do imputado parecia evidentemente confirmada pelos resultados da inquisição geral.([9] ) Em tais casos o acusado era condenado sem realização de interrogatório, não sendo sequer admitida defesa.([10] ) O defensor era autorizado a atuar minimamente, sendo seriamente ameaçado caso se excedesse em sua função. Muitas vezes não havia sequer defesa se delito era punível com pena de detenção ou mais grave.([11] ) Esse procedimento foi aplicado rotineiramente aos delitos considerados gravíssimos – como os de lesa-majestade e heresia – e inclusive chegou a ser autorizado para todos os delitos.([12] )

Logicamente, Manzini não se contentou em expressar sua admiração pela arquitetura inquisitória. Literalmente reconstruiu seus postulados e estruturou uma lógica fascista de processo penal que não só é recepcionada irrestritamente pelo Estado Novo no Brasil como ainda povoa o imaginário fascista de nossos juristas, inclusive das mais altas cortes do país, aparentemente. Vejamos alguns de seus elementos centrais.

Manzini considera que o interesse fundamental que determina o processo penal é o de chegar à punibilidade do culpado, ou seja, de tornar realizável a pretensão punitiva do Estado contra o imputado, enquanto resulte ser culpado.([13] ) O sentido que Manzini atribui ao sistema penal é claro: o Estado tem o poder e o dever de realizar a pretensão punitiva derivada de um delito, para o qual está preordenado o processo penal.([14] ) Para ele, o processo penal é duplamente caracterizado como meio de tutela de interesse social de repressão da delinquência e meio de tutela de interesse individual e social de liberdade.([15] ) Mas Manzini é incisivo: o interesse de repressão da delinquência predomina sobre o interesse de liberdade: seu sentido está em fazer valer a pretensão punitiva do Estado através da imputação penal. Segundo ele, é equivocado dizer que as normas processuais penais são voltadas para a tutela da inocência, no sentido de que a inocência deve ser presumida enquanto a sentença condenatória não transitar em julgado; para o autor, a presunção de inocência não pode ser sustentada na ideia de que a obrigação de provar cabe ao acusador, pois a prova de delinquência pode ser obtida por iniciativa do juiz e a acusação já está provada em si mesma pelos indícios que a fundamentaram.([16] )

Manzini se orgulharia da decisão tomada pelo STF? É muito provável que sim. O Código Rocco de 1930 não consagrou a presunção de inocência, refletindo de forma programática o espírito fascista de seu tempo. Não há como negar que as ideias de Manzini eram condizentes com a Itália daquela época. E são suficientemente assustadoras, mesmo conectadas ao contexto que as originou. O que dizer então da decisão do STF? Me ne frego? Como no fascismo, devemos apostar no apoio das massas para autorizar o depósito massivo de seres humanos nos calabouços ilegais que chamamos de prisões, dando vazão ao nosso incontrolável ódio pelos que são tragados pelo sistema penal?

Creio que não. Não pode ser assim. Em última análise, é preciso fazer uma clara opção entre um processo acusatório e democrático, fundado na dignidade da pessoa humana – e, logo, na presunção de inocência –, e um processo de inspiração inquisitória e fascista, fundado na lógica de persecução ao inimigo. Infelizmente, o STF optou pelo último. Com essa lamentável decisão, nos distanciamos ainda mais da conformidade constitucional do processo penal: agredimos barbaramente um direito fundamental que é essencial para uma instrumentalidade que deve ser pautada pela intenção de redução de danos. O Brasil é um país ainda mais autoritário com essa surpreendente reviravolta de posicionamento. Não é dizer pouco. Lamento pelo Estado Democrático de Direito. O fascismo avança a cada dia. Perdemos a noção de limite. O STF reafirmou o legado autoritário do processo penal, não demonstrando o menor pudor em apunhalar direito fundamental sob a alegação de “estar ouvindo a sociedade”. O desprezo pela presunção de inocência é semelhante ao de Manzini, como acredito ter demonstrado. Mais um capítulo da trágica história que brevemente relatei foi escrito. Temo pelos próximos episódios, como devem temer todos que amam a democracia. O fascismo insiste em nos roubar a esperança. E sem ela é difícil (sobre)viver.

Salah Hassan Khaled Junior
Professor da Universidade Federal do Rio Grande – FURG.
Doutor em Ciências Criminais (PUCRS).

Notas

[1] Eymerich, Nicolau. Manual dos inquisidores. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993. p. 122.

[2] Brasil. Códigos Penal, Processo Penal e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 349.

[3] Khaled Jr., Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.

[4] Manzini, Vicenzo. Tratado de derecho procesal penal: tomo I. Buenos Aires: EJEA, 1951. p.49.

[5] Idem, ibidem, p. 51.

[6]Idem, p. 54.

[7]Idem, p. 58.

[8]Idem, p. 65.

[9]Idem, p. 80.

[10]Idem, p. 81.

[11]Idem, p. 62.

[12]Idem, p. 81.

[13]Idem, p. 250.

[14]Idem, p. 285.

[15]Idem, p. 251.

[16]Idem, p. 253.




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