José Carlos Abissamra Filho
Arthur Sodré Prado, Fernando Gardinali e Guilherme Suguimori Santos
Autoras: Ana Gabriela Braga e Camila Cardoso de Mello Prando
Provocadas pelo ofício de professoras e inspiradas por bell hooks([1] ) – especialmente em Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade(2013) –, juntamo-nos para ensaiar reflexões acerca dos fundamentos das práticas pedagógicas feministas nos espaços das salas de aula.
As práticas pedagógicas propostas pela autora têm como base a interação entre pedagogias anticolonialista, crítica e feminista, “cada uma das quais ilumina as outras” e implicam “questionar as parcialidades que reforçam o sistema de dominação” (2013, p. 20), que “silenciam as vozes de indivíduos dos grupos marginalizados” (2013, p. 110).
Desde nosso lugar de fala – enquanto professoras universitárias, criminólogas e feministas – os temas da liberdade e da transgressão produzem um desdobramento para além do campo pedagógico: eles se inscrevem no nosso próprio campo de conhecimento e ganham relevância quando encarados desde considerando nossa posição de criminólogas críticas que lutam pela construção de uma sociedade democrática que necessita destruir os muros de segregação, sejam os da prisão, sejam os da academia.
As perspectivas críticas criminológicas têm em comum a proposta de construírem uma teoria engajada, na qual ciência e militância não são compreendidas como antíteses, mas como experiências indissociáveis – embora distintas – e em permanente diálogo. Da mesma forma, o pensamento e, principalmente, o movimento feminista têm provocado fissuras no projeto de revestir a produção científica de neutralidade e objetividade (Hooks, 2013, p. 91).
Inspiradas em práticas pedagógicas feministas, este texto é uma primeira aproximação entre o campo da criminologia e das epistemologias feministas aplicadas aos processos de ensino e aprendizagem. Nossa proposta é a de que a interação entre o campo criminológico e feminista seja interpelada desde o seu modo de dizer e ensinar a criminologia e o direito penal.
Dos corpos do controle aos corpos do saber na academia
“Para além do pensamento crítico é importante que entremos na sala de aula ‘inteiras’, não como espíritos desencarnados” (Hooks, 2013, p. 255).
Somos convocadas a responder a uma demanda de nosso tempo histórico na constituição de outra universidade, interpelada a partir da sua margem e pelos que habita(va)m à margem. Novos sujeitos e suas vivências, antes radicalmente apartados dos espaços de poder da academia, têm nos questionado diariamente sobre seus lugares silenciados, sobre o sequestro de seus saberes e de seus modos de dizer. As políticas de cotas raciais e sociais, bem como as novas configurações de mobilidade social, têm reconfigurado – ainda timidamente – a composição atual das universidades.([2] )
Posicionalidades apagadas surgem agora produzindo desconfortos no campo do direito, habituado a não ter sua validade científica questionada. Nas últimas décadas, o espaço da academia, em especial das Faculdades de Direito, até então composto hegemonicamente por homens brancos, passa a ser ocupado por outros corpos, que começam a disputar lugares antes negados, o que nos desafia a sair de um lugar supostamente universal do saber.
Na divisão política e epistemológica entre corpo e mente (Grosz, 2000), a mente aparece como lugar privilegiado e desencarnado do conhecimento, o qual tem sido espaço de apropriação masculina e branca, em especial nos campos de saber e poder do direito. Por outro lado, o corpo é o lugar subalternizado das mulheres brancas – em alguma medida –, e das populações negras e indígenas – especialmente. Nessa equação, é suposto que as mentes, liberadas pelo tempo não despendido nas tarefas de cuidado e nos trabalhos braçais-corporais, sejam aquelas que produzem o conhecimento sobre os corpos que trabalham, que cuidam, que cumprem pena. A constituição epistemológica entre sujeito e objeto do conhecimento se consolida pelo atravessamento dessa distribuição de poder e de saber de forma desigual entre os corpos.
Enfrentar e subverter a dicotomia corpo e mente, bem como a relação entre sujeito e objeto do conhecimento, é uma tarefa que ainda se está por se construir no campo criminológico crítico. Essa tarefa tem sido provocada de modo mais sistemático nos últimos anos, quando os corpos do controle e objetos do saber criminológico passaram a ocupar os espaços institucionais de saber e a questionar seus lugares de objeto do conhecimento, bem como o sequestro de suas falas pelos aparatos formais de produção de conhecimento.
O desafio que carrega a crítica criminológica, como parte de seu legado político de engajamento e enfrentamento das violências e como reflexão epistêmica de sua produção, precisa ser encarado sob diversas dimensões. E uma delas é a dimensão da prática pedagógica.
Segundo bell hooks, “a noção tradicional de estar na sala de aula é de um professor atrás de uma escrivaninha ou em pé à frente de uma classe, imobilizado. Estranhamente isso lembra o corpo de conhecimento firme e imóvel que integra a imutabilidade da própria verdade” (2013, p. 184). De uma verdade anunciada desde um lugar de experiências e perspectivas privilegiadas que são apagadas, descorporificadas, para serem tomadas como um lugar universal.
A compartimentalização mente-corpo reforça a oposição público-privado, a elaboração teórica e o estar no mundo (Hooks, 2013, p. 29). No entanto, é o corpo vivo, relacional, limitado, contextualizado, presentificado em sala de aula que desafia à a reflexão e as bases de produção do conhecimento. Logo, as práticas pedagógicas engajadas do campo criminológico precisam encontrar o lugar da distribuição da fala, dos relatos das experiências e da escuta que leva a sério os repertórios dos corpos que falam aquilo que não é parte do catálogo dos que dizem a ciência criminológica.
A valorização da experiência: a subversão da dicotomia entre emoção e razão na sala de aula
“Reconhecendo a subjetividade e os limites de identidade, rompemos essa objetificação tão necessária numa cultura de dominação” (Hooks, 2013, p. 186).
Emoção e razão é o duplo que corresponde à cisão entre corpo e mente na produção do conhecimento moderno ocidental. Se na produção científica a subordinação e exclusão da emoção do terreno da ciência têm importantes implicações (Harding, 1993), também no espaço de aprendizagem e ensino elas repercutem nas distribuições de fala e validação de conhecimento.
A emoção costuma estar associada, nas salas de aula, ao lugar da desrazão, da falta de seriedade e da ausência de rigor acadêmico. E nesse contexto as falas que se anunciam desde o lugar da experiência são escutadas como opostas ao lugar universal da mente e da razão – supostamente desincorporada – do docente em sala de aula. Nos tempos atuais de recomposição da população universitária, a crítica produzida por grupos hegemônicos aos relatos de experiência em sala de aula surge também como uma crítica ao essencialismo das políticas identitárias e aos supostos efeitos de exclusão e silenciamentos produzidos.
O que se silencia, no entanto, é o fato de estratégias essencialistas serem postas na prática pedagógica tradicional em que o professor é o sujeito ficcionalmente desincorporado que fala a partir da abstração e da razão. Tais essencialismos, no entanto, estão amparados – diversamente dos usos dos grupos marginalizados – “por estruturas de dominação institucionalizadas que não o criticam nem o restringem” (Hooks, 2013, p. 112).
A tarefa de uma pedagogia engajada é reconhecer que as práticas tradicionais se valem muitas vezes – sem nomear – de estratégias essencialistas para silenciar grupos marginalizados e subalternos em sala de aula. E daí promover práticas pedagógicas em que a “paixão da experiência” (Hooks, 2013, p. 123) não seja negada como parte do processo de aprendizagem, mas que seja tomada criticamente, levada a sério, e que componha junto ao conhecimento teórico uma troca intensa em uma comunidade de saber.
O reconhecimento da experiência – não essencialista – na promoção das práticas pedagógicas é uma forma de enfrentar a reinscrição de violência e dominação no contexto da produção discursiva, de resistir. São agora os corpos que falam, que experienciam, que sentem, que refletem, os que põem à prova as teorias pretensamente universais.
No campo criminológico esse enfrentamento tem uma especial importância porque é capaz de subverter a relação entre sujeito e objeto de conhecimento. São os corpos do controle penal, inseridos nos regimes de poder capitalista, patriarcal e racial, que desde suas experiências e as reflexões delas advindas – e para além delas – interpelam os dogmas criminológicos e reivindicam participar do processo de produção de conhecimento a ser validado institucionalmente.
Militantes e teóricas envolvidas com o pensamento feminista “sempre reconheceram a legitimidade de uma pedagogia que ousa subverter a cisão entre mente e corpo e nos permite estar presentes por inteiro, e consequentemente, com todo o coração, na sala de aula” (Hooks, 2013, p. 256). E é a partir de nossos corpos e corações pulsantes que propomos repensar novas articulações entre liberdade, transgressão e educação.
Referências bibliográficas
Grosz, Elisabeth. Corpos Reconfigurados. Cadernos Pagu, n. 14, p. 45-86, 2000.
Harding, Sandra. A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista. Revista de Estudos Feministas, n. 1, p. 7-31, 1993.
Hooks, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo Martins Fontes, 2013.
Santos, Jocélio Teles dos (Org.). O impacto das cotas nas universidades brasileiras (2004-2012). Salvador: Centro de Estudos Afro-orientais, 2013.
Ana Gabriela Braga
Professora Doutora de Criminologia e Direito Penal (Unesp).
Camila Cardoso de Mello Prando
Professora Doutora de Criminologia e Direito Penal (UnB).
Notas
[1] Pseudônimo, de Gloria Watkins. Denominado por ela de sua “voz de escritora”, assinado sempre com iniciais em forma minúscula, forma seguida no presente texto.
[2] Acerca do impacto das cotas nas universidades brasileiras ver SANTOS, Jocélio Teles dos (Org.). O impacto das cotas nas universidades brasileiras (2004-2012). Salvador: Centro de Estudos Afro-orientais, 2013.
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